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A ficção contaminou a Política no documentário "HyperNormalisation"

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Era uma vez o colapso econômico da antiga União Soviética. Diante da inevitável decadência do modelo comunista de Estado, seus dirigentes partiram para uma inédita tática de “gestão da percepção”: manter a aparência de normalidade através de narrativas ficcionais que minavam a percepção das pessoas, criando aversão à política fazendo-as tocarem a vida como se nada estivesse acontecendo. Isso chama-se “HiperNormalização”, tática copiada pelo Ocidente desde Ronald Reagan nos anos 1980 – levar conceitos do teatro de vanguarda e dos roteiros hollywoodianos para o centro da Política a tal ponto que a diferença entre realidade e mentira passa a ser desprezada pelas pessoas e pelo próprio jornalismo. Dessa maneira, Trump “surpreendentemente” chegou a poder nos EUA. Esse é o tema do documentário da BBC “HyperNormalisation” (2016), realizado pelo britânico Adam Curtis. A história de como a política foi derrotada pela ilusão enquanto as pessoas apolíticas desistiram de mudar o mundo, refugiando-se no ciberespaço. Enquanto isso, corporações e o sistema financeiro administram tranquilamente o deserto do real.

Era o ano de 2002 e o Primeiro Ministro inglês Tony Blair e o presidente dos EUA George Bush estava possuídos pela ideia de que o mundo deveria se livrar de Saddam Hussein. Estavam determinados em achar qualquer coisa que provasse as más intenções do ditador iraquiano.

Então o chefe do MI-6, o serviço de inteligência britânico, contou empolgado a Blair que tinha conseguido acesso direto ao programa de armas químicas de destruição em massa de Hussein. Disse que a fonte confirmava tudo! O Iraque estava produzindo grandes quantidades de gás Sari e VX, letais para o sistema nervoso. Estavam sendo carregados em “esferas ocas de vidro”.

Mas alguém do MI-6 notou que os detalhes relatados pela fonte eram idênticos às cenas do filme A Rocha (1996) com Sean Connery e Nicolas Cage.

As diferenças entre realidade e ficção ficam ainda mais tênues quando percebemos que os anos que antecederam aos atentados nos EUA em 2001 tiveram um inédito pico de produção de filmes hollywoodianos sobre destruição em massa perpetrados por aliens, monstros e terroristas como, por exemplo, Independence Day ou Godzilla. E Nova York era sempre a cidade icônica das catástrofes.

Essas são algumas das histórias narradas pelo documentário HyperNormalisation(2016), documentário BBC do britânico Adam Curtis (O Século do Ego, All Watched Over by Machines of Loving Grace). O tema geral do documentário é mostrar como, desde a década de 1970, governos, financistas, jornalistas e utopistas tecnológicos abandonaram o mundo real e não só construíram como também passaram a viver nesse mundo falso simplista, esquemático e maniqueísta. Um mundo administrado por corporações e mantido estável pela política.


Esse mundo simplista passou a ser administrado pela “gestão da percepção”, uma versão hiper-realizada da antiga engenharia de opinião pública – enquanto no passado, através das técnicas clássicas de retórica, mobilizava-se uma engenharia de relações públicas para inculcar ideologias, ideias ou conceitos, agora com a “HiperNormalização” criam-se “climas de opinião” e “ondas de choque” cujo eixo central e apagar as fronteiras entre ficção e realidade – mais precisamente, entre as narrativas de entretenimento (filmes, animações, literatura, minisséries etc.) e os acontecimentos pautados pelo noticiário da grande mídia.

Aversão à política e individualismo


Dividido em nove episódios, Curtis mostra como a estratégia de HiperNormalização surgiu na antiga União Soviética nos anos 1970 para depois ser adotada pelas potências do Ocidente. Durante o colapso econômica da URSS, o governo soviético mantinha a aparência de normalidade como se tudo pudesse ser planejado a partir de imagens grandiosas, tal como as glórias olímpicas no esporte. Resignados e desiludidos com a política, os cidadãos tocavam suas vidas fingindo que tudo estava normal porque não encontravam alternativas para o futuro. O escritor Alexei Yurchak chamou isso de “HiperNormalização”, uma espécie de profecia-autorrealizável aceita por todos como real.

No Ocidente, a estratégia da HiperNormalização foi fundada em dois princípios: a aversão à Política porque é algo muito complexo e, em si, corrupta; e o refúgio no individualismo e em narrativas que, num “efeito bolha”, simplificavam o mundo por meio de narrativas esquemáticas inspiradas em produções de entretenimento.

Para Adam Curtis, a partir dos anos 1970 toda uma geração desistiu de transformar o mundo, refugiando-se no individualismo empoderado por um verdadeiro flashbacklisérgico dos anos 1960: a utopia tecnológica do ciberespaço nos anos 1980 (principalmente na visão utópica de John Barlow) como um mundo alternativo livre das restrições políticas e jurídicas, mas que escondia o poder crescente das corporações financeiras.


Desconexão do real


O mundo da especulação financeira que cresceu a partir do colapso econômico de Nova York de 1975 – com a crise fiscal, a cidade foi entregue à ideia de que os sistemas financeiros (e não mais o Estado) podiam gerir a sociedade. Donald Trump emerge nesse momento, adquirindo imóveis abandonados sob isenção de impostos, tornando Nova York uma cidade elitista.

Trump, ao lado do presidente Ronald Reagan nos anos 1980, seriam os precursores de um tipo de política totalmente desconectado da realidade com uma gestão de percepção capaz de distrair as pessoas das complexidade do mundo real – por exemplo, a criação do super-vilão Muammar Kadhafi como responsável por atentados em Roma, Viena e numa discoteca em Berlim naquela década.

Papel prontamente aceito pelo líder líbio, que não resistia aos holofotes da grande mídia. Como mais tarde nos anos 1990, na Guerra do Golfo, Saddam Hussein também aceitaria o mesmo papel na sua cruzada em se tornar um midiático líder do povo árabe.

Enquanto isso, antigos líderes da causa socialista nos EUA como a atriz Jane Fonda desistiam do mundo real: o documentário mostra um dos seus vídeos de exercícios aeróbicos na TV exortando as pessoas a cuidarem do seu próprio corpo porque “o mundo lá fora é complicado demais e, pelo menos, podemos controlar o próprio corpo”.



Acreditando na própria mentira


O mais incômodo no documentário HyperNormalisation não é tanto o fenômeno da “gestão da percepção”, mas principalmente como os líderes ocidentais parecem crer nas próprias narrativas criadas pelos seus assessores, relações públicas e serviços de inteligência.

Enquanto a Política transforma-se numa espécie de mundo autônomo de simulações no qual os seus líderes entram de tal forma nos papéis ficcionais que esquecem quem foram, no mundo real corporações e o sistema financeiro administram o equilíbrio sistêmico de lucros e desigualdade, livres de qualquer escrutínio de uma sociedade que desistiu do mundo real.

Para Curtis, esse mundo global, cuja estrutura foi imaginada pelo Secretário de Estado Henry Kissinger nos anos 1970, só foi possível com a divisão do mundo árabe e a manutenção dos conflitos no Oriente Médio.

Trump, Obama, Reagan, Blair, Bush, etc. seriam líderes que acreditam nas suas própria pantomimas. Personagens ficcionais criados para consumo massivo através da grande mídia e que simplificam a complexidade da política real ao participarem de narrativas ficcionais, muitas vezes extraídas de roteiros de sucessos hollywoodianos.


Jornalismo difícil


HyperNormalisation mostra ainda que fazer jornalismo nesse cenário torna-se cada vez mais complicado. Além da grande mídia virar uma correia de transmissão para essas narrativas simplistas, a própria essência, digamos assim, “hermenêutica” do jornalismo (encontrar a verdade por trás da mentira) é colocada em xeque – expor mentiras e falar a verdade sempre foi a crença dos jornalistas.

Porém, como encontrar a verdade se a própria matéria-prima das informações tornam-se não-acontecimentos? Nesse ponto, o documentário converge com as teorias do pensador francês Jean Baudrillard sobre a ordem dos simulacros e simulações. Para Baudrillard, os simulacros substituiriam a própria realidade a tal ponto que chegaríamos ao estágio final com o hiper-real: para toda a sociedade a distinção entre realidade e ficção passa a ser cada vez mais ociosa. Ninguém mais se importa com isso quando tanto uma coisa ou outra produz efeitos reais: guerras, atentados, ódio, crises, mortes etc.

Adam Curtis dá dois exemplo de como o jornalismo simplista foi muitas vezes derrotado pela realidade: primeiro, a queda do Muro do Berlim e o fim da União Soviética que pegou tanto a imprensa quanto escritores e acadêmicos de surpresa, de tanto o Ocidente estar mergulhado no simplismo hollywoodiano criado por Ronald Reagan.

E segundo, a vitória de Donald Trump na eleição presidencial: Trump derrotou o jornalismo porque para ele a diferença entre a verdade e a mentira é irrelevante. De tanto levar à sério suas pantomimas como fossem ações políticas reais, paradoxalmente sempre o consideraram uma piada.


HiperNormalização, polarização e ódio


Para Curtis, não é surpreendente que Vladimir Putin o admira. Por trás do presidente russo está Vladislav Sukov, profissional que veio do mundo do teatro cuja gestão de percepção baseia-se em pegar ideias do teatro de vanguarda e colocá-las no centro da política.

Surkov transformou a política russa em uma confusa e constante troca de peças. E com isso minou a percepção do público para que nunca tivessem certeza do que estava acontecendo. Resultado: as pessoas criam crescente aversão à política, mas, paradoxalmente, voltam a interessar-se por ela através das narrativas simplistas e ficcionais que sempre catalisam sentimentos e emoções nos telejornais – a pobre menina twitteira de Aleppo, Síria; os terroristas feios, sujos e malvados do ISIS etc.

Por isso, a explosão da polarização política, ódio e intolerância, tão bem explorados por Trump e, como destaca Curtis, também nas diversas “Primaveras” que floresceram na Tunísia, Egito e outros países árabes – e, por que não dizer, também no Brasil onde a polarização política (que deu força a todo inconsciente cultural reprimido pela democracia – intolerância, racismo, misoginia, xenofobia etc.) foi o combustível para transformações políticas exigidas por aquele complexo mundo real distante da gestão de percepções: as demandas corporativas e financeiras de uma secreta geopolítica global. 

As mais de duas horas de HyperNormalisation são um verdadeiro bombardeio de informações e imagens documentais que suscitam uma série de subtemas que vão além do espaço dessa postagem. Entre esses subtemas está o papel do ciberespaço na gestão da percepção: como o conceito de Inteligência Artificial dos anos 1960-70 se transformou nos algoritmos atuais com os quais também se gerencia essa fuga individualista desesperançada de usuários apolíticos para a Internet e redes sociais.

Mas isso será tema de uma próxima postagem. Assista ao documentário completo abaixo. Legenda ocultas. Clique em "detalhes" para converter legenda em português.


Ficha Técnica

Título: HyperNormalisation
Direção: Adam Curtis
Roteiro: Adam Curtis
Elenco:  Adam Curtis, Donald Trump, Vladimir Putin, Patty Smith, Henry Kissinger
Produção: British Boradcasting Corporation (BBC)
Distribuição: BBC
Ano: 2016
País: Reino Unido

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O tautismo politicamente correto da Globeleza vestida

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“Mudança de pensamento”. “Reflexo das pressões feministas e das discussões sobre diversidade”. Alguns mais eloquentes falam em “vitória da sociedade”. São as repercussões de primeira hora da nova vinheta do carnaval da TV Globo na qual vemos uma nova Globeleza vestida, decretando o fim da tradicional nudez maquiada por camadas de tintas coloridas e adereços metálicos imortalizados pela estética retro-futurista do designer digital Hans Donner. Esse suposto avanço deve ser colocado na perspectiva de uma emissora pós-impeachment que vive a tensão de ter que aparentar ser imparcial e progressista. Mas o tautismo (autismo + tautologia) crônico da emissora transforma qualquer demanda da sociedade em um signo vazio no interior de um sistema linguístico autônomo sem qualquer referencia no mundo real. A vinheta é binária e circular. Não consegue superar o simbolismo da Globeleza que sempre foi expressão de um projeto nacional secreto no qual a Globo teria um papel decisivo - criar uma embalagem supostamente moderna para o único produto que o Brasil teria a oferecer para o mundo: suas belezas naturais e hiperssexualizadas, desfrutáveis para todo o planeta a um preço módico pela diferença cambial.

Para uma emissora que já chegou a 100% de audiência com a novela Selva de Pedraem 1972 e o Jornal Nacional dando 80% na década de 1980, os tempos atuais são bem diferentes para a Globo. Em um momento no qual a emissora chega a comemorar 17% de audiência para o principal telejornal da rede, a emissora está diante de um novo desafio: o de manter a aparência de imparcialidade.

Além da concorrência da Internet, dispositivos móveis, plataformas de streaminge uma nova geração que aponta para um futuro no qual a TV aberta é simplesmente irrelevante, a Globo também se depara com outra questão: nos últimos dez anos a Globo teve que assumir a liderança de um golpe político que culminou com o impeachment no ano passado. Foi praticamente obrigada a assumir o papel de um partido diante da inépcia de uma oposição política que teve de ser levada a reboque através pauta jornalística diária com denúncias seletivas e profecias auto-realizadoras de crises.

A Globo politicamente venceu, mas sabe que essa vitória pode ter sido de Pirro: apenas adiou uma inexorável decadência pelas transformações tecnológicas e geracionais. Por isso, atualmente a emissora está possuída pela necessidade diária de provar que sempre foi imparcial, e que assim continuará, mesmo com o atual governol que ajudou a colocar no poder.

Ao lado do gigantismo e o monopólio de décadas, soma-se essa urgência da Globo em criar uma imagem de imparcialidade diante de uma opinião pública (em todos o espectro político) que sempre teve para ela um olhar de desconfiança.


A resposta tautista


E como viemos discutindo em postagens anteriores, a resposta a tudo isso sempre foi tautista (Autismo + Tautologia) -  de forma autista a emissora fecha-se em copas diante das ameaças externas. Isso não quer dizer que a Globo fique cega aos cenários externos. Apenas que a realidade externa passa a ser interpretada a partir dos seus próprios termos – a tautologia.

É a partir dessa perspectiva que deve ser interpretada a nova cartada da Globo em se adaptar aos novos tempos ameaçadores a sua hegemonia. Pela primeira vez é feita uma mudança significativa na vinheta de Carnaval e, logo de cara, o “choque”: depois de quase 30 anos, a Globeleza está vestida, e não mais nua sob camadas de pinturas coloridas.

Por todos esses anos a figura da Globeleza sempre foi criticada por ser o símbolo da exploração do corpo da mulher “mulata”, da redução a fetiche e objeto sexual carnavalesco, enquanto no restante da programação da emissora a raça negra não tem qualquer tipo de protagonismo – na verdade vendo suas telenovelas e programas de entretenimento, parece que vivemos em algum país europeu perdido na América do Sul...

Mas agora, a Globeleza não só ostenta roupas, mas também ilustra os diversos carnavais de todo o País como o Frevo, Axé, Maracatu e Bumba Meu Boi, além de mulheres de outras etnias.

Por que depois de anos de hiperssexualização, a Globeleza está agora vestida? Alguns falam de “fruto após uma longa luta travada pelos movimentos sociais” ou “reflexo da pressão das organizações de feministas e movimento negro pela intensificação das críticas nos últimos anos”.

Mudança de mentalidade da emissora? Consciência negra e feminista numa emissora marcada historicamente pelas opções mais conservadoras e politicamente retrógradas? Isso até faz lembrar o otimismo do comunista e escritor Dias Gomes que via na Globo a oportunidade de levar mensagens progressista para as massas em plena telenovela do horário nobre...


Globeleza é o secreto projeto nacional da Globo


A vinheta de carnaval da nova Globeleza nada mais é do que outra resposta tautista de uma emissora assombrada pelo seu passado, presente e futuro.

Para o artista digital austríaco Hans Donner, que por décadas conferiu a identidade visual metálico e futurista da Globo, a Globeleza era a síntese entre a sua estética indefectível  sci fi e os estereótipos da natureza e sexualidade com os quais a emissora sempre se projetou no mercado internacional.

O brilho metálico, glitter, purpurinado entre grafismos e adereços futuristas sobre um corpo nu da dançarina negra era o simbolismo máximo de um projeto de País que a Globo secretamente sempre concebeu: o brilho futurista de uma suposta modernidade como adereço de uma vitrine que oferece o País como tesouro de riquezas naturais desfrutáveis para todo o planeta.

Porém, o futurismo sci fi de Hans Donner virou um futurismo retro. As bancadas dos telejornais mais pareciam naves espaciais e as vinhetas da emissora uma grande space opera. Tudo desconectado das transformações culturais, sociais e tecnológicas desse início de século.

Em 2014 a nova estética do programa Fantástico já apontava para essa aposentadoria da estética Hans Donner: saiam as mulheres metálicas e os sólidos geométricos voando em círculos no vazio para entrar uma estética mais “orgânica” com a cara do “funk” e a nova “Classe Média C”.

Além disso, outro fantasma vem assombrando a Globo, desde a sua vitória de Pirro política: o fantasma da parcialidade - e se depois de defender colérica e histericamente a necessidade do impeachment, todos começarem a perceber que o telejornalismo da emissora agora está “pegando leve”? Como fica a credibilidade de um dos seus principais produtos se a pauta perder a contundência e ficar nas “notícias diversas”?

O fim da estética retro-futurista de Hans Donner

A Globeleza binária


É óbvio que a “nova” Globeleza é um tipo de reposta às discussões sobre diversidade, igualdade de gênero e as lutas contra o machismo e a violência doméstica. Porém, uma resposta tautista.

A resposta da Globo é simplesmente binária: vestida/não vestida. Como resposta tautológica, ela é circular. É a chamada “circularidade do código”: o fato da Globeleza estar vestida não significa uma positividade pelo seu conteúdo (empoderamento feminino, por exemplo), mas negativamente pela simples oposição binária tipo 0/1 com outro termo do sistema linguístico. É uma reposta comutável, modulável.

Os signos do sistema linguístico da emissora são arbitrários, isto é, não guardam nenhuma relação natural entre significante e significado, o signo e o seu significado correspondente no mundo real.

O sistema tautológico somente seria superado se o próprio simbolismo da Globeleza desaparecesse – a própria personagem fosse suprimida e substituído por outro paradigma simbólico para o Carnaval.


Sob a aparência politicamente correta e imparcial de supostamente estar antenada com as transformações culturais brasileiras, a Globo mantém de forma tautista o sistema linguístico fetichista e regressivo da Globeleza. Pelo princípio do tautismo o input que entra no sistema será sempre traduzido a partir da descrição que a Globo tem de si mesma.

E no caso do Carnaval, a principal vitrine brasileira para o planeta, a descrição que a emissora faz de si mesma é através de um colonizado e secreto projeto nacional. À Globo a História teria reservado o papel de criar uma embalagem modernosa e, desculpe o trocadilho, globalizada para aquilo que unicamente o Brasil teria a oferecer para o mundo: suas belezas naturais e hiperssexualizadas, desfrutáveis a um preço módico pela diferença cambial.

Essa tensão da convivência entre o tautismo e a necessidade de parecer imparcial é sentida nos telejornais. Por exemplo, depois de anos transformando boas notícias em más em relação às ações da prefeitura petista de Haddad em São Paulo, com o tucano João Dória Jr. os âncoras repetem histericamente o mantra “estamos de olho!” para cada medida anunciada pela nova administração.

Visto nessa perspectiva, a nova Globeleza vestida é mais um ato para mascarar o tautismo crônico. É o feminismo e a afirmação da diversidade traduzida pelos próprios termos da chamada “Vênus Plantinada”.


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Inteligência Artificial como novo espelho individualista em "HyperNormalisation"

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Certo dia um cientista do MIT criou um “computador terapeuta” chamado Eliza. Na verdade uma brincadeira, uma parodia sobre as tentativas frustradas em fazer uma Inteligência Artificial. As pessoas digitavam o que estavam sentindo e Eliza repetia a última frase, reformulando como fosse uma pergunta. Os “pacientes” começaram a levar à sério, passando horas diante de Eliza digitando seus problemas, desejos e motivações mais íntimas. Uma brincadeira que, sem querer, criou o paradigma que reformularia toda o conceito de Inteligência Artificial e abriria o campo dos algoritmos que controlam as atuais redes sociais e mecanismos de busca na Internet. Essa é uma das histórias do documentário “HyperNormalisation” (2016) de Adam Curtis. Analisado pelo “Cinegnose” em postagem anterior, vamos agora destacar como a fuga das pessoas para o ciberespaço, para escapar das complexidadse do mundo real, criou um outro aspecto da “HiperNormalização”: a Inteligência Artificial como um espelho individualista feito para criar a falsa sensação de estabilidade e segurança. Mas, às vezes, aspectos do “deserto do real” invadem essa bolha virtual.

Em postagem anterior discutíamos o novo documentário do britânico Adam Curtis chamado HyperNormalisation (2016), transmitido em nove episódios pela BBC - clique aqui. O  documentário discute como a crescente aversão não só à Política, mas à própria complexidade dos problemas reais fez nos últimos 40 anos os indivíduos se retraírem no ciberespaço, Internet, redes sociais como uma bolha ou espelho de si mesmos.

Mais além, como financistas, utopistas tecnológicos e políticos criaram, através da mídia e gestão da percepção, uma versão simplificada do mundo real: a “HiperNormalização”. E o que é pior, de como os próprias lideranças políticas acabaram acreditando nessa narrativa ficcional (muitas vezes inspirada em roteiros de filmes hollywoodianos), tornando tênues as fronteiras entre realidade e ficção. Uma versão não só simplificada do mundo, como também conciliadora – enquanto as pessoas têm corações e mentes capturadas por essas narrativas, grandes corporações e o mundo das finanças continuam gerindo tranquilamente o equilíbrio sistêmico do “deserto do real”.

Dando continuidade a essa discussão, nessa postagem vamos discutir como o documentário HyperNormalisationaborda o ciberespaço e Internet como partes decisivas nesse movimento generalizado de abandono do mundo real.


Maçãs e gestão de riscos


Esse abandono foi impulsionado pelo desejo por estabilidade e segurança. O documentário relata o exemplo do computador Alladin da empresa de gestão de riscos BlackRock, na pequena cidade chamada East Wenatchee, no Estado de Washington. Entre pomares, Larry Fink construiu no final dos anos 1990 uma empresa de gestão de riscos baseada em um gigantesco computador, o Alladin, alojado em uma série de grandes galpões usados para armazenar maçãs.

O objetivo era o computador prever com certeza o risco de qualquer negócio ou investimento, monitorando todos os tipos de eventos mundiais e comparando-os com dados dos últimos 50 anos. Em seguida o computador detecta possíveis desastres no futuro.

Os algoritmos do software do BlackRock são tão bem sucedidos (manipula 7% dos ativos financeiros mundiais) que atualmente o Federal Reserve estuda se Alladin não deve ser promovido à condição de “SIFI”(Instituição Financeira Sistemicamente Importante) sob direta supervisão governamental.

Adam Curtis cita esse exemplo de como o conceito de Inteligência Artificial desenvolvido nos anos 1960-70 transformou-se no desenvolvimento de algoritmos capazes de transformar Big Data das redes que estabiliza tanto o “deserto do real” da economia quanto o ego dos indivíduos que abandonaram esse “deserto” e se protegeram no ciberespaço. Uma espécie de Prozac informático.

HyperNormalisation mostra como nos anos 1960 havia um otimismo generalizado entre utopistas tecnológicos de que os computadores um dia poderiam pensar como seres humanos. Passaram anos tentando programas as regras que comandam o pensamento humano. Mas sem sucesso.


A “psicoterapeuta” Eliza


Até que um dia nos anos 1980, um cientista da computação do MIT chamado Joseph Wisembaum ficou tão desiludido que resolveu fazer uma parodia desse fracasso dizendo para todos que tinha feito um computador terapeuta: simplesmente as pessoas poderiam digitar os seus problemas que o programa chamado Eliza daria as respostas para o “paciente”. Uma brincadeira que, sem querer, fez Wisembaum tropeçar no paradigma que reformularia toda o conceito de Inteligência Artificial e abriria o campo dos algoritmos que governam as redes sociais e mecanismos de busca na Internet.

O “paciente” sentava na frente da tela e digitava o que estava sentindo. Eliza simplesmente repetia a última coisa que o usuário havia dito, reformulando sob a forma de pergunta. Wisembaum descobriu que todos que usam o Eliza ficavam absorvidos pelo programa: sentavam horas dizendo para a máquina seus sentimentos mais íntimos e incríveis detalhes da vida pessoal.

“O computador não te olha feio, não se irrita e nem tenta transar com você!”, confessou uma usuária. Para Curtis, o que o Eliza exprimiu foi a era do individualismo, que faz as pessoas se sentirem seguras ao verem sua personalidade refletida, como um espelho.

O que lembra um outro episódio, dessa vez na Universidade de Stanford: o desenvolvimento das técnicas de pesquisa em Marketing dos Valores e Estilo de Vida (VALS) no anos 1980, no qual foram enviados formulários de perguntas para consumidores via correio. O retorno foi surpreendente (86%). As pessoas perguntavam: “vocês têm outros questionários para eu preencher?”. As pessoas simplesmente adoraram falar de si mesmas, confessando seus desejos, incertezas, pensamentos e motivações.


Novo conceito de Inteligência Artificial


Hoje a Internet e redes sociais são desdobramentos em escala gigantesca do insightpossibilitado pelo programa “Eliza”. É o novo conceito de Inteligência Artificial: os agentes inteligentes – algoritmos de grandes corporações que monitoram o Big Data para criar correlações e padrões para prever o que as pessoas irão querer no futuro.

Uma bolha que nos protege diante da complexidade do mundo real, ao mesmo tempo em que somos vigiados. Mas não é apenas uma questão de invasão de privacidade. Trata-se da própria redefinição do conceito de “Inteligência” como uma espécie de auto-abdicação humana.

O documentário cita Jaron Lanier, cientista do Vale do Silício e o criador do conceito de “realidade virtual”, e seu alerta sobre a inteligência das redes e aplicativos: através dos olhos dos “agentes inteligentes” somos uma versão de Inteligência caricatural de racionalidade.

Para Lanier, noções como “inteligência coletiva”, “nuvem”, “algoritmo” ou qualquer outro objeto cibernético é aceito como uma “superinteligência” por que reduzimos os nossos padrões e expectativas sobre a inteligência. As pessoas se degradariam o tempo todo para fazerem os aplicativos parecerem espertos. Por exemplo, a ideia de amizade em redes de relacionamento é reduzida. Uma pessoa se orgulha em dizer que possui milhares de amigos no Facebook. Essa afirmação só poderia ser verdadeira se a ideia de amizade for reduzida. Ignora-se que a verdadeira amizade deve expor à estranheza inesperada do outro.

Além de simplificarmos a noção de inteligência, simplificamos a realidade ao nos fecharmos em bolhas criadas por algoritmos que supostamente antecipam nossas escolhas. Um modelo de “agente racional” deteriorado pois parte do princípio de que apenas agimos para obter o que queremos, e nada mais.


Para quem trabalhamos na Internet?


E Lanier acrescenta: “nunca está claro para quem trabalhamos, para nós ou para outra pessoa”. Espontaneamente enviamos para as redes milhares de vídeos, imagens e relatos diários de nossos desejos e motivações. Acreditamos que tudo é apenas uma “nuvem” abstrata, mas que tem aspectos bem reais: enviamos dados para nosso comportamento social, de consumo e mesmo político sejam previstos por aquelas corporações e sistemas financeiros que estão lá, tranquilas no “deserto do real” gerindo o equilíbrio planetário.

O homem por trás de tudo isso foi um cientista chamado Judea Pearl. Segundo Adam Curtis, é o pioneiro do conceito moderno de Inteligência Artificial. Seu feito foi utilizar as chamadas “Redes Bayesianas” de opinião, redes causais de gráficos de dependência probabilística. Metodologia padrão de construção dos sistemas é o modelo algorítmico dos conhecimentos extraídos das redes digitais pelas grandes corporações para prever comportamentos e tendências sociais e políticas.

Isso fica claro com o depoimento de um engenheiro do Google dado ao historiador George Dyson:
“Nós não estamos escaneando livros para serem lidos por pessoas. Estamos fazendo isso para serem lidos por uma Inteligência Artificial. Enquanto acompanhamos o Google escaneando livros, uma visão tecnocêntrica incentiva programas a tratarem livros como combustível para um imenso moinho, trechos descontextualizados para um grande banco de dados, ao invés de expressões distintas de escritores individuais.” (Lanier, Jaron. “The First Church of Robotics”, New York Times, 09/08/2010).
Porém, esse mundo abstrato começou a ser invadido por aspectos do mundo real. Por uma estranha e terrível ironia, o primeiro vídeo de decapitação terrorista publicado on line foi do próprio filho de Judea Pearl, Daniel Pearl. Ele era jornalista do Washington Post e tinha sido sequestrado por extremistas islâmicos no Paquistão. Registraram o que seria sua confissão, antes de ser decapitado diante da web cam.



Ficha Técnica

Título: HyperNormalization
Direção: Adam Curtis
Roteiro: Adam Curtis
Elenco:  Adam Curtis, Donald Trump, Vladimir Putin, Patty Smith, Henry Kissinger
Produção: British Boradcasting Corporation (BBC)
Distribuição: BBC
Ano: 2016
País: Reino Unido

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Algo engraçado aconteceu a caminho da Lua

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Se no passado falar que o homem jamais pousou na Lua era coisa de velhos e iletrados incapazes de acompanhar a marcha do Progresso, hoje acabou se transformando em um verdadeiro subgênero audiovisual com filmes, documentários e minisséries para TV e cinema. Dessas dezenas de produções, uma se destaca: A Funny Thing Happened on the Way to the Moon (Algo Engraçado Aconteceu a Caminho da Lua, 2001) do jornalista investigativo Bart Sibrel – ele até chegou a levar um soco de Buzz Aldrin ao tentar fazê-lo jurar sobre a Bíblia que havia caminhado na Lua. O documentário foge dos temas clichês - anomalias nas fotos da Nasa e o “hoax” do diretor Stanley Kubrick envolvido na conspiração. Sibrel destaca o contexto da corrida espacial nos anos 1960, a flagrante vantagem tecnológica da URSS sobre os EUA naquele momento e algumas questões: como, depois de uma década de fracassos envolvendo explosões, incêndios e astronautas carbonizados na plataforma de lançamento, de repente a NASA empreende uma ousada e bilionária missão que, de cara, consegue colocar homens caminhando na Lua? Por que acreditamos? Só porque vimos na TV? Mas, e se tudo foi encenado sem a TV saber? Siebrel supostamente comprova a farsa com imagens de um vídeo da Nasa não editado no qual vemos astronautas da Apollo 11 simulando, na órbita da Terra, estarem a meio caminho da Lua enquanto ouvem a transmissão da direção da filmagem.

Na autobiografia publicada em 2004 intitulada My Life, o ex-presidente Bill Clinton lembrava da época do pouso da Apolo 11 na Lua em 1969:
Apenas um mês depois de os astronautas Buzz Aldrin e Neil Armstrong deixarem seu colega Michael Collins a bordo do módulo de comando Columbia e caminharem na Lua, um velho carpinteiro perguntou-me se acreditava em tudo aquilo. Eu disse: “claro, eu vi na TV!”. Ele discordou. Disse que não acreditava um minuto naquilo, que os “caras da TV” poderiam fazer tudo parecer real. Na época pensei que era um velho idiota. Durante meus oito anos em Washington eu vi algumas coisas na TV que me fizeram pensar se aquele carpinteiro não estava à frente do seu tempo. (CLINTON, Bill, My Life, 1st edition, p.156).
Quando o homem pousou na Lua esse humilde blogueiro tinha seus sete anos. Lembro-me que por toda uma década apenas as gerações mais velhas questionavam a realidade daquelas imagens borradas que assistíamos na TV. Os mais jovens ridicularizavam: coisas de velhos tecnofóbicos incapazes de aceitar os progressos da Ciência ou de analfabetos.

Mas os anos se passaram e as teorias conspiratórias em torno do Projeto Apollo e da NASA só cresceram. Deixaram de ser monopólio de velhos alérgicos ao progresso ou sub-letrados para se tornar praticamente um subgênero audiovisual na jovem cultura pop.

James Bond e a rover lunar


Tudo começou já em 1971 quando no filme de James Bond Os Diamantes São Eternoshá uma breve cena onde 007 rouba uma rover lunar de um estúdio, no qual astronautas encenam um pouso na Lua, para fugir de seus inimigos.

James Bond (Sean Connery) em "Os Diamantes são Eternos" (1971)

Naquela mesma década foi produzido o filme que é o pai de todas as conspirações espaciais: Capricorn One (1978), sobre um pouso ficcional em Marte e a perseguição aos astronautas que pretendem revelar toda a verdade para a imprensa – clique aqui.

A partir disso temos uma profusão de documentários, mockumentaries e filmes ficcionais como Dark Side of The Moon (2002), Man On The Moon (2004), Room 237(2012), Moonwalkers (2015), Operation Avalanche (2016), para ficar apenas em algumas produções desse século.

Anomalias nas fotografias oficias da NASA, a suposta participação do diretor Stanley Kubrick na produção dos falsos pousos lunares e a necessidade dos EUA politizarem a corrida espacial par enfrentarem a ameaça comunista da União Soviética são temas recorrentes nesses filmes.

Porém, da safra atual de produções desse subgênero uma se destaca: A Funny Thing Happened on the Way to the Moon (Algo Engraçado Aconteceu a Caminho da Lua, 2001) produzido pelo diretor e jornalista investigativo Bart Sibrel. Como ele diz, “capaz de apostar a própria vida para provar que o homem nunca foi na Lua”.

Sibrel é insistente e chega a aborrecer os astronautas da missão Apollo com practical jokes(“pegadinhas”) como no famoso episódio envolvendo Buzz Aldrin: fingindo que queria entrevistá-lo em um hotel para um programa infantil da TV japonesa, Sibrel estava à espera com uma Bíblia, pedindo para que ele jurasse sobre ela que havia caminhado sobre a Lua. Recebeu um soco de Aldrin direto na sua cara.

Bart Sibrel

Como é de se esperar, Sibrel é uma figura ridicularizada no meio científico, espacial e mainstream jornalístico. Mas o documentário de 2001 está acima da média dentro desse subgênero das teorias das conspirações.

Sibrel foge dos lugares comuns como as supostas anomalias nas fotos da NASA e o indefectível hoax sobre Kubrick. O documentário faz uma abordagem histórica, política e econômica, destacando o contexto da corrida espacial nos anos 1960, a flagrante vantagem tecnológica da URSS sobre os EUA naquele momento e uma questão simples: como, depois de uma década de fracassos envolvendo explosões, incêndios e astronautas carbonizados na plataforma de lançamento, de repente a NASA empreende uma ousada e bilionária missão que, de primeira, consegue colocar homens caminhando na Lua?

Como o Projeto Apollo conseguiu colocar homens na Lua ignorando o cinturão de radiações Van Allen que envolve a Terra, mortal para a vida humana? Só recentemente a NASA enviou sondas para medir o nível de radiação dessa região do espaço. Mas por que, se o homem já esteve lá?

Vamos elencar os principais argumentos desse documentário. São no mínimo interessantes e alguns deles historicamente fundamentados. Pelos menos fogem da média das produções desse subgênero atual.


(a) Tanques de guerra infláveis


Ao longo da História de rivalidades e guerras, generais astutos têm demonstrado o poder estratégico da ilusão e informações falsas como método para alcançar a vitória. O documentário cita a experiência das Forças Armadas dos EUA em fabricar ilusões como forma de criar vantagem sobre o inimigo.

Dá o exemplo do insólito episódio do Ghost Army na Segunda Guerra Mundial: no norte da Normandia uma unidade do exército norte-americano com pouco mais de mil homens desembarcou para por em movimento um verdadeiro road show em plena Segunda Guerra mundial usando tanques e caminhões infláveis, amplificadores com sons pré-gravados de movimentação de tropas e caminhões e diversas ações cênico-teatrais, incluindo efeitos especiais cenográficos. Munidos de compressores de ar e alguns soldados-atores eram capazes de criar em uma hora falsos comboios militares que aparentavam ter 30.000 homens. O objetivo era criar impacto psicológico nas tropas nazistas.

Iniciado com a colocação em órbita de um primeiro satélite artificial (o Sputnik), a corrida espacial para os EUA era uma forma de enganar a União Soviética sobre a reposta militar dos EUA na Guerra Fria, em especial o sistema de defesa antimísseis. O problema é que em meados das décadas de 1960 já não era mais possível enganar os russos.

Os sucessivos sucessos soviéticos no espaço ( o primeiro satélite, o primeiro homem, o primeiro animal, a primeira sonda na Lua), conflitos raciais internos, milhares de vidas perdidas na guerra do Vietnã e bilhões de dólares dos contribuintes gastos no Projeto Apollo era um cenário amargo demais para o Governo. Era necessário mais uma vez lançar mão da ilusão: chegar à Lua era uma questão muito mais de credibilidade do que de verdade.


(b) Primeira transmissão de TV não independente


Foi verdade! Eu vi na TV! É a resposta imediata às teorias conspiratórias sobre o Projeto Apollo. Sibrel chama a atenção que naquele momento, pela primeira vez, a televisão não fazia uma cobertura independente de um evento. Todos os sons, imagens e fotos foram estritamente controlados e previamente examinados pelo Governo Federal.

É estranho que passadas tantas décadas, o que se tem de um evento de tamanha magnitude histórica são as mesmas fotos e imagens que circulam ano após ano. Estranha-se a escassez de fotos do pioneiro chefe da missão, Neil Armstrong: há apenas uma foto de corpo inteiro na Lua e o seu reflexo em um capacete. Excetuando-se conferências de imprensa da Nasa e aparecimentos ocasionais em aniversários e comemorações, ele nunca deu entrevista diante de uma câmera.

O documentário sustenta que não só as imagens de TV (na época objeto de reclamação das emissoras por apenas poderem transmitir as imagens borradas de segunda mão a partir do telão de da sala de controle) como os próprios dados recebidos pelos operadores em Houston foram simulados um ano antes, com o lançamento do satélite Tetra, especialmente projetado para reconstituir dados procedentes de uma suposta viagem a Lua e aterrissagem.

Esses dados foram reemitidos para Houston, enquanto a missão Apollo circulava a órbita terrestre. Mesmo se os russos quisessem localizar a nave norte-americana em algum ponto entre a Terra e a Lua seria tão impossível quanto achar uma agulha no Oceano Pacífico.

O mais irônico em tudo isso é que em 2009 a Nasa admitiu que teria apagado as gravações originais da viagem da Apollo 11 e outras 200 mil fitas “para economizar dinheiro”. A ironia: a Nasa restaurou as cópias da viagem espacial usando imagens de outras fontes, como as da CBS News. As mesmas imagens de segunda mão feitas a partir das imagens controladas no telão de Houston...


(c) O estranho sucesso do Projeto Apollo através do Cinturão Van Allen


Na corrida espacial dos anos 1960, os soviéticos sempre estiveram muito à frente. Seus astronautas tinham, com folga, 500% mais de horas no espaço que os EUA. Apenas um mês antes da Apollo 11, os soviéticos lançaram uma nave não tripulada para a Lua para obter as primeiras amostras de solo. Em dado momento nos anos 1960 o programa espacial soviético estava desenvolvendo cerca de 30 projetos diferentes de lançadores e espaçonaves.

Porém, na primeira tentativa de um voo tripulado à Lua pelos EUA, tudo deu certo. Mesmo atravessando o fatal cinturão de radiação Van Allen – região situada entre 15.000 e 20.00 km do planeta com partículas eletricamente carregadas letais ao homem, de origem tanto solar quanto do campo magnético terrestre.

Desde 1961 (e até hoje, com as únicas exceções das Apollo 11 a 17) todas as viagens tripuladas ficaram muito abaixo desse campo de radiação. Para os astronautas terem sobrevivido seria necessário um revestimento de chumbo tão denso que impediria a decolagem do foguete Saturno 5.

Em 1998 a Space Shuttle fez o voo mais alto desde as naves da Apollo, chegando perto do cinturão, provando que as radiações eram mais perigosas do que os cientistas tinham pensado – nos anos 1960 a Nasa havia declarado que o Cinturão Van Allen não era assim tão perigoso a ponto de impedir uma viagem à Lua.

A proximidade com a região do Cinturão foi o suficiente para os astronautas do ônibus espacial começarem a sentir estranhos efeitos: mesmo com os olhos fechados na cabine pressurizada e em seus pesados trajes, viram fortes reflexos de luzes, como disparos, da radiação que entrava no interior da nave, dos trajes e dos seus crânios. Na época o noticiário da CNN mostrou cientistas da Nasa surpresos com um fato até então desconhecido por eles. Mas a Nasa já não esteve lá, a caminho da Lua, décadas atrás?


(d) O mágico não repete o mesmo truque


Na época as emissoras de TV reclamaram por serem forçadas a usar imagens de segunda mão nas transmissões ao vivo, sem permissão de conexão direta o que degradou dramaticamente a qualidade das imagens - talvez esse fosse o efeito pretendido.

Os próprios telespectadores reclamaram e a partir da Apollo 12, a opinião pública de desinteressou da repetição daquelas mesmas imagens borradas e com muitos cortes. O mágico estava cometendo o erro de repetir o mesmo truque - as viagens bem sucedidas e precisas como um relógio suíço estavam ficando muito overactinge aborrecidas. Era necessário injetar mais drama ao roteiro.

Então veio o acidente da Apolo 13 e o risco de morte dos astronautas – agora o público levaria mais a sério a exploração da Lua e seria reconectado com o drama.


(e) Astronautas simulam estar distantes da Terra


No documentário, Bart Sibrel alega ter acidentalmente encontrado a peça que comprovaria toda a farsa: após solicitar por cinco anos imagens e relatórios dos arquivos da Nasa para a produção do documentário, uma “pedra preciosa” foi descoberta pouco antes de concluir o filme – uma fita da Apollo 11, crua e sem edição, com os astronautas no interior da nave em órbita da Terra encenando parte da missão. A agência espacial teria enviado a fita “por engano”, junto com outros materiais do acervo.

O documentário mostra as sequências dessa fita. Além dos diálogos duplicados com Houston (um dos canais de transmissão era exclusivo para transmitir as ordens do “diretor” da filmagem), há um momento em que engenhosamente simulam observar a Terra bem distante: uma bola azul na vastidão do Universo. O truque foi apagar todas as luzes do interior da cabine, fechar as janelas para evitar a luz do Sol e filmar apenas uma escotilha, à distância do fundo da nave, com a Terra ao fundo pegando parte da sua superfície.  Fingiam estar no meio do caminho para a Lua quando, na verdade, orbitavam a Terra.

E por que mesmo com o desinteresse crescente do público e a desconfiança das emissoras, a farsa continuou até 1972?

Para Sibrel, para que toda a operação fosse realizada a Nasa se cercou de contratantes em uma cadeia produtiva extremamente especializada e fragmentada para garantir que apenas poucos tivessem conhecimento do Todo – e da verdade. Os contratos tiveram que ser obrigatoriamente cumpridos, mantendo a simulação em funcionamento (e aprimoramento) por três anos e bilhões de dólares gastos dos contribuintes com cada suposto retorno à Lua.

Desde então, a agência espacial dos EUA está refém dessa história. Tanto que, num ato de provocação, a Rússia abriu em 2015 uma investigação sobre a veracidade da viagem dos EUA à Lua. O representante do governo no Comitê de Investigações Vladimir Markin afirma que foi também requerido um inquérito sobre o desaparecimento das imagens originais da primeira exploração lunar.


Ficha Técnica

Título: A Funny Thing Happened on the Way to the Moon
Direção: Bart Sibrel
Roteiro: Bart Sibrel
Elenco:  Anne Tonelson (narração), Buzz Aldrin, Neil Armstrong, Michael Collins, Wernher Von Braun
Produção: independente
Distribuição: AFTH, LLC
Ano: 2001
País: EUA

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Um fim do mundo gnóstico e budista em "O Livro do Apocalipse"

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Os filmes-catástrofes hollywoodianos sempre tiveram um papel bem freudiano: criar o objeto fóbico de medo para oferecer um bode expiatório capaz de espiar o mal estar da sociedade. Para quê? Para manter as pessoas na linha esquecendo dos seus problemas de obediência e disciplina com as obrigações que a sociedade cobra. Como fazer uma releitura dos clichês hollywoodianos desse subgênero? O filme sul-coreano “O Livro do Apocalipse” (“In-yu-myeol-mang-bo-go-seo, 2012) nos oferece uma surpreendente abordagem alternativa de zumbis, ameaça de robôs e meteoros que caem na Terra, temas tradicionais dos filmes apocalípticos ocidentais. Humor negro, “non sense”, Budismo e Gnosticismo se combinam em três contos onde o objeto fóbico é invertido: zumbis, robôs e alienígenas transformam-se em oportunidades para as pessoas repensarem a si mesmas e a sociedade.

A partir do clássico O Planeta dos Macacos (1968), o cinema Ocidental se esmerou com muito mais frequência em oferecer especulações sobre o fim do mundo e distopias apocalípticas: catástrofe nuclear, praga zumbi, distopias robóticas, invasões aliens, meteoros caindo na Terra, entre outras inumeráveis alternativas para exterminar a raça humana.

Em postagem anterior observávamos que os filmes-catástrofes hollywoodianos  têm uma característica fóbica: a criação do medo coletivo por qualquer aspiração de mudança. Como Freud observava, todo objeto fóbico foi no passado uma fonte de prazer. A culpa o transformaria em objeto de medo e ameaça.

Por isso, o filme-catástrofe oferece a possibilidade de “naturalizar” as crises: monstros, aliens, zumbis, robôs e cataclismos cósmicos viram bode expiatório para espiar o mal estar da sociedade. Por isso, em todo o filme-catástrofe é ao mesmo tempo um julgamento moral (quem morrerá e quem sobreviverá?) e a oportunidades de famílias ou pais separados reconquistarem afetos mútuos.

Mas do que renovação em um subgênero tão saturado, o filme sul-coreano O Livro do Apocalipse (In-yu-myeol-mang-bo-go-seo, 2012) é um comentário satírico com humor negro e algumas doses de séria reflexão filosófica e até mesmo gnóstica.

Os diretores Yim Pil-sung e Kim Jee-woon  ao mesmo tempo satirizam e fazem uma reflexão desse verdadeiro cerne ideológico dos filmes-catástrofes no Ocidente: moralismo e manutenção da ordem familiar e social mediante busca de inimigos que pretendem nos exterminar.


O Livro do Apocalipseé uma antologia de três variações distintas sobre o tema apocalipse: a praga zumbi; os robôs e a ameaça da Inteligência Artificial; a colisão de um gigantesco meteoro com a Terra. São três temas-clichê dos filmes-catástrofe ocidentais, mas com uma surpreendente releitura que subverte a ideologia ocidental: a manutenção da ordem dos papéis sociais através do mesmo fóbico.

A dupla de diretores sul-coreanos oferece inesperadas variações subversivas sobre temas hollywoodianos tão batidos: zumbis que não querem comer cérebros, mas subverter os papéis sociais; um robô que não quer destruir a humanidade, mas ajuda-la a alcançar a iluminação budista; e um meteoro que vai bater na Terra não como catástrofe cósmica ou plano maligno alienígena, mas resultante de uma prosaica compra em um estranho site de venda on line.

O Filme


A primeira estória chama-se “Brave New World”. Uma conto ao mesmo tempo violento e cômica da propagação de um agente patógeno que produz uma pandemia zumbi e o fim da civilização. O ponto de partida é como as nossas práticas alimentares podem nos matar. Tudo começa quando um jovem geek (Ryo Seung-bum) come uma maçã podre que depois vai parar na lama tóxica do lixo da sua casa, vazando depois para toda a cadeia alimentar – não demora muito para aquele lixo ser reciclado e transformar-se em alimento para o gado.

A infecção logo atinge seres humanos que passam a ter estranhas mudanças de comportamento: as pessoas contaminadas passam a ser mais impulsivas, desobedientes e assertivas. O próprio protagonista geek, outrora introvertido e tímido, torna-se agressivo e extrovertido.

O auge do episódio é quando, em um telejornal, os convidados do debate sobre a pandemia zumbi (divididos entre a hipótese de arma química da Coréia do Norte ou conspiração do Ocidente) começam a manifestar os primeiros sintomas: cada um manda às favas o debate e começa a fazer o que dá na telha: cantar, tocar flauta etc.


O segundo episódio, “Criatura Celestial”, é filosoficamente mais sério: situada em um futuro próximo no qual as atividades básicas humanas estão automatizadas por máquinas e robôs, acompanhamos o dilema de um técnico corporativo chamado a um mosteiro budista para verificar um robô com um “estranho” comportamento: de servo de atividades banais, o autômato não só adquiriu consciência espiritual como, para os monges, ele é o próprio Buda. O robô está à beira de chegar ao estado espiritual do Nirvana.

Com um rosto melancólico e uma voz hipnótica, o servo robô sempre fala através de paradoxos Zen como, por exemplo, “encha sua consciência com o vazio!”.

O veredito da empresa fabricante é que um robô com consciência espiritual é uma ameaça ao homem – como uma máquina pode chegar ao Nirvana sem ter passado pelo círculo cármico humano das reencarnações? Exterminadores serão enviados para destruir o robô.

O último conto é o surreal “Happy Birthday”: um meteoro se aproxima da Terra até que fotos da Nasa fazem uma estranha revelação: é uma gigantesca bola de bilhar número oito com um endereço inscrito apontando para a Coréia do Sul.

Na verdade tudo começa com uma menina que perdeu a bola de bilhar do seu pai. Desesperada, rouba o cartão de crédito do seu tio para comprar uma bola nova em um site de compras on line. Mas parece que era um site muito estranho e de procedência desconhecida...


Do cristianismo ao gnosticismo


O argumento central do primeiro episódio se fundamenta no simbolismo da maçã do Gênesis bíblico, citado no final do conto: “De todas as árvores do jardim podes comer, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não deverás comer porque seguramente morrerás”. Todos aqueles contaminados pelo “mal” (a infecção originada em uma maçã) tornam-se socialmente disfuncionais: compulsivamente desobedientes, mandando às favas o cumprimento dos papéis esperados pela sociedade.

Uma curiosa releitura da mitologia zumbi: antes dos humanos tornarem-se mortos-vivos, o primeiro passo é a impulsividade, desobediência e civil e total anomia.

Mas o episódio “Criatura Celestial” é a mais interessante releitura dos clássicos do apocalipse hollywoodiano. Por que desde o computador HAL de 2001 de Kubrick a Inteligência Artificial (IA) é tão ameaçadora para o homem? Porque a IA é descorporificada, isto é, máquinas ou robôs  não têm “desejos e compulsões”, como confessa o robô de O Livro do Apocalipse.

Enquanto Hollywood vai pelo caminho das implicações, por assim dizer, “nietzschianas” da IA, em O Livro do Apocalipse a interpretação é budista e gnóstica. Filmes como Transcendence (2014, clique aqui) ou Lucy (2014, clique aqui) mostram superinteligências cujo único propósito é o “desejo de potência” – uma IA quer apenas expandir-se de forma amoral, até não sobrar nenhum espaço para os humanos com seus corpos inúteis. O que sobreviverem serão escravizados, como em Matrix.

Mas o filme sul-coreano vai por outro caminho: sem desejos e compulsões da carne, uma IA evoluiria espiritualmente de forma rápida, sem a necessidade de queimar o carma na “roda do Sansara – o fluxo contínuo da existência e suas sucessivas encarnações.


  O robô é “cheio da vazio”, como diz o protagonista autômato, e, portanto, mais próximo do Nirvana. O vazio da mente e da percepção é o caminho da iluminação – nesse ponto Budismo e Gnosticismo se encontram ao negar a ilusão criada pelas nossas percepções que apenas são “classificatórias” – como o conto nos apresenta, servem apenas para distinguir um relógio de parede de um robô autônomo, por exemplo.

É a evidente utopia tecnognóstica, mas sem o componente de negação ideológica: qual hardware vai possibilitar essa emancipação espiritual, de qual empresa ou governo?

No filme, ao contrário, o robô se rebela passivamente (no melhor estilo da desobediência civil de Gandhi) contra a empresa que o fabricou – a UR Robotics acredita que uma máquina com consciência espiritual é uma ameaça aos humanos.

Mas o robô da UR acredita que os humanos ainda são superiores a ele. Por que? Para ele os humanos já alcançaram a iluminação espiritual. Apenas esqueceram disso, enquanto ele ainda tem que conquistar. É o tema gnóstico clássico do esquecimento.


Alienígenas na Deep Web?


O último episódio é totalmente surreal e non sense. Mais uma vez, o tema da desobediência e quebra da ordem: uma menina por conta própria busca na Internet repor a bola de bilhar do pai que ela perdeu. Mas inadvertidamente entrou na Deep Web e encontrou um estranho site de compras on line que parece atender toda a Galáxia... e a bola de bilhar pedida não é tão convencional.

Nos três episódios de O Livro do Apocalipse está presente o tema da ruptura de ordens, sejam elas sociais, familiares, corporativas ou mesmo cósmicas. Um intrigante exemplo de como é sempre possível novas releituras dos velhos clichês hollywoodianos. Mesmo com a estranha combinação do humor negro, non sense, Budismo e Gnosticismo.



Ficha Técnica

Título: O Livro do Apocalipse
Direção: Yim Pil-sung e Kim Ji-woon
Roteiro: Yim Pil-sung e Kim Ji-woon
Elenco:  Ryoo Seung-bum, Koh Joon-hee, Kim Kang-woo, Kim Gyu-ri, Park Hae-il,
Produção: Gio Entertainment
Distribuição: Well Go USA Entertainment
Ano: 2012
País: Coréia do Sul

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Paraty é o Triângulo das Bermudas da política brasileira?

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Nesses momentos de tragédias que abrem possibilidades de inesperadas mudanças no cenário político (Quem perderá? Quem ganhará?) é sempre interessante ver as reações reflexas da grande mídia pega de surpresa. Ela parece sempre ter uma “narrativa reflexa”, pronta, que se manifesta como um ato falho: descrever um mundo onde os eventos são sempre aleatórios, fora de contextos, desconectados e sempre sujeitos a “trapaças da sorte”. A morte do Ministro do STF Teori Zavascki no acidente aéreo em Paraty rapidamente foi enquadrada em uma narrativa protocolar como se a grande mídia já tivesse o resultado antes mesmo das investigações: foi tudo uma fatalidade! Não importa a existência de estranhas anomalias, depoimentos contraditórios, sincronismos e o oportuno timing dos acontecimentos. Será que a grande mídia quer impor à sociedade uma “narrativa reflexa” para criar um fato consumado? Criar uma atmosfera de pressão política nas investigações oficiais que ora se iniciam? Ou será que, desde o desaparecimento de Ulysses Guimarães em 1992, a região de Paraty se transformou numa espécie de Triângulo das Bermudas brasileiro onde impasses políticos são resolvidos de forma drástica?

Diariamente 100 mil voos comerciais partem pelo mundo. Segundo pesquisa feita pela revista Newsweek, o transporte aéreo registra média de 0,01 morte a cada 100 milhões de milhas viajadas e os aviões estão cada vez menos vulneráveis a tempo ruim – de 20% na década de 1950 para 8% atuais de acidentes provocados por condições meteorológicas. A cada milhão de decolagens, registram-se 0,9 acidentes fatais – clique aqui.

Mas quis a “trapaça da sorte” (expressão usada pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso no sua mensagem de pesar) vitimar o ministro Teori Zavascki quando estava prestes a homologar 77 depoimentos de delação premiada de executivos da Odebrecht – o ministro tinha autorizado para a próxima semana as oitivas de confirmação das delações e na sua última entrevista Teori avisou que iria trabalhar durante o recesso do STF “em face da excepcionalidade”, nas palavras dele.

Essa “excepcionalidade” refere-se à verdadeira bomba-relógio dos nomes envolvidos na delação, começando com o atual desinterino Michel Temer (citado 43 vezes na Lava-Jato), passando pelo presidente do Senado Renan Calheiros e chegando ao ministro das Relações Exteriores José Serra, além de deputados e senadores.

Em política não há coincidências (e nem mesmo “trapaças da sorte”), mas sincronismos. As mentes mais cartesianas e conformistas tendem a rotular a hipótese dos sincronismos de “teorias da conspiração”, assim como  diligentemente os especialistas aéreos chamados às pressas pela grande mídia já se adiantaram em dizer, diante de elegantes infográficos – pelo menos mais bem desenhados do que os PowerPoints do Dellagnol .

E por que não há “coincidências”?  Porque em política sempre alguém vai perder e muitos outros ganharão tempo, vantagem ou mesmo a vitória definitiva e alguma questão que sempre está próxima de um evento “trágico”. “Timing” e “oportunismo” são as noções centrais em eventos sincrônicos, capazes de criar uma constelação de “coincidências significativas” que vão muito além das “trapaças da sorte”.


Eventos trágicos como nesse acidente aéreo abrem de imediato uma guerra de narrativas. Mas, principalmente, põem à tona “atos falhos” da grande mídia: sempre quando ela é pega de surpresa mobiliza o que podemos chamar de “narrativa reflexa” ou protocolar. Um verdadeiro mecanismos de defesa para defender a realidade que os telejornais querem sempre construir para os telespectadores: um mundo onde os eventos estão fora de contexto, desconectados, aleatórios e sujeitos às “trapaças da sorte”. Onde os fatos ou são obras dos misteriosos desígnios de Deus, ou de alguma maldição gregoriana – “o anos de 2016 não acabou...”, lamentam apresentadores TV.

Grande mídia pega de surpresa


A narrativa reflexa midiática começou com a descrição de que o avião envolvido no acidente era de “pequeno porte”. Nas primeiras horas, esse foi o termo para designar o modelo do avião, algo assim como um “teco-teco” bimotor. Associado com o cenário de chuva e suposta visibilidade zero, começava a construção rápida da narrativa de uma fatalidade.

Claro que mais tarde a grande mídia corrigiu essa informação inicial ao mostrar através de infográficos que não era um avião pequeno. Na verdade, um Beechcraft C90GT King Air, semelhante a um avião executivo, exceto pela motorização, com voice recorder– gravador de voz. Mas a percepção de um avião frágil diante das condições meteorológicas ficou na construção da narrativa da fatalidade.

 Além disso, outros dois elementos marcaram essa narrativa reflexa, quase um ato falho, da grande mídia: contradições sobre as condições meteorológicas de Paraty no momento do acidente e a imediata especulação sobre um novo nome para o lugar da relatoria da Lava Jato no STF.


O conveniente cenário meteorológico


Os primeiros repórteres em Paraty ao vivo falavam que no momento do acidente não chovia forte e com visibilidade. Algumas horas depois, as testemunhas selecionadas começaram a descrever um cenário de muita chuva e visibilidade zero.

E nas simulações e infográficos dos telejornais, tome animações com nuvens, raios muita água caindo. E a ênfase constante na ausência de torre de controle na pista de Paraty (comum nas pistas de pouso do Litoral Norte) e na dependência exclusiva de contato visual para a aproximação dos aviões – fato cotidiano para os pilotos experientes naquela região.

Algumas testemunhas escolhidas eram pilotos de embarcações turísticas próximas ao local do acidente, muitos deles levando turistas a passeios naquele momento. Como assim? Muitas chuva, visibilidade zero e turistas querendo conhecer a baia de Paraty? Estranhamente, nas edições posteriores das falas desses pilotos foram cortados trechos nos quais falam de “clientes” ou “turistas” nos barco com eles no momento do acidente. Por que? Para eliminar a informação contraditória na construção de um cenário de rigorosas condições meteorológicas?

Apesar das investigações estarem apenas começando, a grande mídia parece ter o resultado final: foi tudo “trapaça da sorte” – o homem errado, no lugar errado e na hora errada. 


“Fumaça branca” e “Vejam bem o que vão dizer ao País!”


Mesmo que um pescador tenha declarado que um dos motores soltava uma “fumaça branca” (Jornal Nacional, 20/01). Seu testemunho ficou simplesmente solto no meio de uma simulação do percurso do avião fatídico com o indefectível Globocop, sempre enfatizando as nuvens e a pouca visibilidade.

E ainda, dado momento, o repórter se gabando de ter ajudado outro avião que, naquele instante, se aproximava da pista de Paraty e não tinha visibilidade suficiente – muito conveniente para a pauta da Globo, rápida no gatilho para impor o seu diagnóstico reflexo junto a opinião pública como fato consumado e pressionar as investigações .

Como se a Grande Mídia dissesse: “vejam bem o que vocês vão dizer!”. Mesmo que seja para tirar do contexto e reverter o sentido da afirmação filho de Teori Zavaski, o advogado Francisco Zavascki. Depois de, em maio de 2016, ter postado no Facebook denúncia de supostas ameaças ao pai e à família (“se algo acontecer à minha família, vocês já sabem onde procurar...”), em tom irônico Francisco disse logo após o anúncio da morte do pai que “seria muito ruim para o País ter um ministro do Supremo assassinado”.

Como sempre retirando do contexto, o JN transformou essa afirmação amargamente irônica em uma fala críptica, como se alertasse à Aeronáutica, Ministério Público e Polícia Federal: “vejam bem o que vão descobrir e dizer ao País!”. Mais um argumento para sustentar a sua narrativa reflexa cuja conclusão só pode ser essa: só nos resta nos resignarmos diante dos misteriosos desígnios de Deus.


Carmen Lúcia rise again


Mal confirmada da morte do ministro do Supremo e muito antes dos corpos serem retirados da fuselagem submersa do avião, rapidamente apresentadores e comentaristas começaram a especular sobre quem seria designado para substituir o sensível cargo de relator da Lava-Jato no Supremo e colocar as mãos nas delações da Odebrecht guardadas na sala-cofre do terceiro andar do tribunal.

A imagem é muito conspiratória, mas parecia que todos estavam apenas aguardando algum sinal para rapidamente entrar em cena e fazer, ansiosos, suas apostas e comentários. Algo parecido com aqueles os obituários prontos nas gavetas de redações sobre personalidades que notoriamente estão próximas do fim.

De imediato, a reportagem da Globo colou na ministra Carmen Lúcia chegando a Brasília, enquanto a comentarista de política da Globo News Chris Lobo declara em tom messiânico: “o século XXI é o século do Judiciário...”. Depois de rifar o Ministro da Justiça Alexandre de Moraes e o desinterino Temer na crise do terror tocado pelo TCC nas prisões do País, as apostas da Globo vão agora para a presidenta do Supremo. Personagem sempre presente nas telas da Globo nesse ano, desde o massacre do presídio em Manaus.

Anomalias e “coincidências significativas”


(a) A mensagem subliminar involuntária no prefixo do barco da Marinha


De todas as embarcações em torno da fuselagem do avião parcialmente submersa, uma foi destacada, com longos e demorados planos em todos os telejornais: uma embarcação cinza da Marinha  com um sugestivo prefixo em letras maiúsculas e minúsculas: GptPNSE-04.

O “pt” destacado em caixa baixa começou a alimentar versões anti-petistas nas redes sociais de que o “mecânico do avião era Lula” ou o que é pior: Dilma mandou matar Teori Zavascki!

Involuntariamente, o prefixo da embarcação lembra a suspeita mensagem subliminar do Jornal da Globo durante a crise do suposto “Apagão Aéreo” após o acidente com o avião da TAM em São Paulo em 2006. No selo do telejornal que anunciava a suíte de reportagens, via-se um letreiro de aeroporto de partidas e chegadas cuja animação mostrava a combinação de letras “PT”, antes de formar as palavras “Vítimas do Apagão Aéreo”.


(b) O estranho interesse pela ficha técnica do avião


Duas semanas antes do fatídico acidente, a ficha técnica do avião Beeechcraft teve um estranho pico de visualizações: repentinamente no dia 03/01 pulou para 1.885 acessos, voltando nos dias posteriores a zero até o dia do acidente.

Pessoas repentinamente interessadas na compra da aeronave? Estranho para um aparelho transferido para o empresário Carlos Alberto em outubro de 2016.

Foram informações do jornalista Chico Malfitani repassadas pelo engenheiro da Politécnica USP Leonardo Manzione. Pode não significar nada, mas dentro de um contexto no qual o filho de Teori Zavascki alertava sobre ameaças contra o pai transformasse em anomalia que deveria ser levada em contada numa investigação - clique aqui.


(c) O Triângulo das Bermudas da Política brasileira?


O acidente aéreo e a morte do ministro Teori Zavascki ocorreu na mesma região onde em 12 de outubro de 1992 o helicóptero que levava o deputado Ulysses Guimarães a caminho de Angra dos Reis caiu sem deixar sobreviventes. Estavam a bordo, além do ex-senador Severo Gomes, sua mulher e o piloto.

Distantes 24 anos no tempo, os dois episódios guardam uma série de estranhos sincronismos.

Ambas personalidades vinham de um processo de impeachment e, naquele momento, eram peças-chave nos destinos políticos do País.

Ulysses seria o próximo presidente com a queda de Collor, enquanto Zavascki tinha nas suas mãos as fortemente guardadas 77 delações que podem mudar drasticamente o futuro político para 2018.

Assim como Zavascki, durante o processo do impeachment de Collor, Ulysses recebeu estranhas sugestões  e ameaças de morte. Primeiro, em um destempero verbal do intempestivo Collor: “pela idade e pelas doenças aquele velho senil já deveria estar morto!”.

A outra foi insólita: no dia 27 de setembro, um grupo de apoiadores a Collor se reuniu em frente à Casa da Dinda para fazer uma “pajelança”, em defesa do mandato do presidente – haviam boatos de que aquele local havia se transformado em um centro de macumba, com rituais de magia negra.

Collor autorizou que dez manifestantes entrassem. A coordenadora do grupo, uma senhora, chamou a atenção dos repórteres ao gritar repetidas vezes “Ulysses vai morrer! Já era para ter morrido e não deu certo!”.

Vinte quatro anos depois, novamente ameaças de morte a outra peça-chave política e a morte posterior.

Além disso, esses dois episódios distantes no tempo têm como pano de fundo crises carcerárias. Lá em 1992 o Massacre do Carandiru (2 de outubro de 1992) e aqui a série de mortes e decapitações em penitenciárias do Norte do País – no momento do acidente em Paraty, a Polícia Militar preparava-se para invadir o presídio de Alcaçuz, RN.

No Massacre do Carandiru em 1992, para muitos analistas, nascia o facção de crime organizado PCC, organização agora por trás da nacionalização da crise penitenciária.

Será que esses sincronismos apontam para um modus operandi na política brasileira que ainda as pessoas não se deram conta desde a redemocratização após a ditadura militar? Ou então a região de Paraty transformou-se num Triângulo das Bermudas brasileiro onde impasses políticos são drasticamente resolvidos?

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Curta da Semana: "Help Us" - medo e culpa no altruísmo moderno

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Caro leitor, chegou o momento de abrir o seu coração e esvaziar sua carteira para ajudar a curar alguma coisa que está errada com as pessoas desse curta-metragem. “Help Us” (2016), de Joel Cares, lembra aqueles vídeos institucionais de ONGs como Médicos Sem Fronteiras, Save The Children etc. Mas ao invés de vermos flagelados de algum lugar remoto e sem esperança, vemos uma família de classe média pedindo ajuda e o nosso dinheiro. O que há de errado com eles? Um curta que aplica  dissonância cognitiva e o método de comutação para fazer o espectador refletir sobre o destino da velha caridade e humanitarismo que hoje se transformou em “voluntariado” e “ativismo”. Qual a recompensa psíquica que encontramos na velha filantropia profissionalizada pelas ONGs? Qual a relação entre essa recompensa e os rostos "psychos" dos personagens do curta que ao invés de inspirarem altruísmo dão medo. 

Estudando a semiologia do sistema da moda, o pesquisador francês Roland Barthes (1915-1980) desenvolveu um engenhoso método: o teste de comutação. Encontrar em um texto ou imagens a menor unidade de significação, procurando alterar um signo por outro dentro de uma estrutura. Até encontrar a mudança de significado.

O pequeno curta com menos de 2 minutos Help Us (2016) de Joel Cares faz algo parecido, num curioso teste de comutação em um vídeo. A estrutura é idêntica aos vídeos institucionais de ONGs como Médicos Sem Fronteiras, Save The Children, Médicos do Mundo etc. nos quais são pedidos donativos, contribuições regulares ou a adoção à distância de crianças em situações de risco como pobreza, áreas de guerra ou calamidades naturais.

Sob a mesma linguagem de enquadramento de câmera em lentos zoom in, acordes melancólicos ao piano e personagens com olhares vazios e sem esperança clamando por compaixão e ajuda, vemos em Help Us protagonistas bem diferentes: integrantes de famílias de classe média, uma criança, um casal e uma jovem, além de uma estranha figura deformada criando uma estranha dissonância: “Ajuda!”, “Ajude-nos!”, “Precisamos da sua ajuda!” etc.

Os pedidos começam a ficar mais ostensivos: “Precisamos do seu dinheiro!”, “Dê para nós o seu dinheiro!”, “Dê tudo o que você tiver!” e assim por diante, enquanto a trilha musical vai subindo em um arranjo mais grandiloquente.


Dissonância cognitiva


Um curioso teste de comutação que acaba criando dissonância cognitiva: tudo no vídeo parece estar no lugar: a estrutura, linguagem e música igual aos vídeos de ONGs com os quais nos acostumamos ver na TV. Mas os personagens estão fora do lugar: são pessoas de classe média, bem nutridos e materialmente confortáveis. Por que nos pedem ajuda? Para quê querem nosso dinheiro?

Além da dissonância, há algo estranho com os personagens... um olhar com um quê psicótico. Definitivamente há algo de errado com eles. Claro, excetuando-se a enigmática figura deformada.

Esse teste de comutação (manter a estrutura e mudar apenas um signo de um sintagma para perceber as alterações de significados) e o efeito da dissonância cognitiva cria o estranhamento necessário para iniciar uma reflexão sobre os destinos da compaixão ou do amor ao próximo na sociedade atual.

Se no passado tínhamos casas de caridade, fraternidades ou irmandades religiosas filantrópicas que procuravam minimizar o drama daqueles que foram esquecidos pelo Estado e cidadãos, hoje são substituídos por ONGs, pelo ativismo e voluntariado.

Apesar da numerosa hipocrisia (afinal os ricos e os bens favorecidos estimulavam a filantropia como forma de manter os pobres no seu devido lugar), pelo menos havia a ética cristã como cimento ideológico para a institucionalização da caridade. Como o filósofo Theodor Adorno dizia, toda ideologia teve o seu momento de verdade – ao menos no passado a filantropia rememorava o princípio civilizatório da ética cristã, para depois ser esquecida na hipocrisia.

A filantropia profissionalizada


Hoje, tempos corporativos e meritocráticos, a filantropia foi “profissionalizada” como atividade de voluntariado nas entidades sem finalidade lucrativa. Por assim dizer, a caridade foi secularizada para se transformar em uma atividade de mercado. Inclusive, criando capital de distinção para jovens lançarem em currículos como diferencial na competição profissional.

A ideologia da ética cristã foi substituída pelo quid pro quo– eu doo meu tempo e esforços para ajudar o próximo em uma instituição de marca e renome internacional. Em troca, faço a “diferença” e a imortalizo nas redes sociais e currículo à espera do reconhecimento pelo mercado.


Mas também há uma outra forma de recompensa, dessa vez psíquica. O que se aproxima com os tipos “psycho” do curta Help Us: na sociedade meritocrática e hipercompetitiva atual, a compaixão e o amor ao próximo é um luxo religioso, algo velho e inútil como a filantropia de antigamente.  Amor ao próximo transformou-se em “ética corporativa”, “vestir a camisa” e “trabalhar em equipe”, expressões que acabam assim que se encerra um projeto profissional de curto prazo ou quando consegue-se a promoção ou ascensão social ao custo da frieza com o próximo.

Adotar uma criança africana em extrema pobreza ou debitar automaticamente na conta a contribuição mensal para uma entidade para crianças especiais serve para aliviar a culpa e o mal estar – a sensação de que, no final, é cada um por si e as amizades resumem-se à contagem do número de likes e de “amigos” nas redes sociais.

Principalmente em datas como festividades natalinas, parece que esse mal estar e culpa desse novo inconsciente social vem à tona. Mas o alívio politicamente correto de ser um “voluntário” ou por ter adotado alguém em um lugar remoto e sem esperança dá a sustentação psíquica para seguir em frente.

Não é à toa que protestam de forma tão raivosa contra qualquer iniciativa do Estado de inclusão social. Acusam de populismo e dar dinheiro a gente “preguiçosa” e “vagabunda”. Claro, como pode o Estado roubar os nossos pobres. E, o que é pior, com a possibilidade de os “nossos” pobres desaparecerem com o processo de inclusão social.


Esse parece ser o estranhamento e dissonância provocados pelo curta Help Us: no final, aquelas figuras estranhas com caras de “psychos” somos nós.

Globo virou black bloc

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A Globo ainda tinha a tênue esperança de que delegados dissidentes do Colégio Eleitoral não ratificassem a vitória de Trump. Mas a cerimônia da posse e o discurso “porrada” do presidente arrasaram qualquer sonho dos ainda incrédulos correspondentes da emissora nos EUA. Mais eis que os esquecidos black blocs voltam a ação nas manifestações anti-Trump em Washington, tirando os analistas da emissora da depressão. Entusiasmada, a Globo News até reprisou o documentário sobre os black blocs exibido na época das manifestações de rua em 2013 no Brasil. Agora a Globo assume uma espécie de anarcotautismo: entrar na onda de turbinar as manifestações contra Trump, assim como fez nas manifestações anti-Dilma. Mas o tautismo crônico da sua bolha virtual não consegue perceber os movimentos do “deserto do real” que Trump representa: a crise do “neoliberalismo progressista” que sustenta a ordem da Globalização: o alinhamento perverso entre correntes dos movimentos sociais (feminismo, LGBT, antirracismo, multiculturalismo, entre outros), o setor de negócios baseados em serviços simbólicos e tecnológicos (Vale do Silício e Hollywood) e o capitalismo cognitivo representado por Wall Street e a financeirização.

A Globo virou black bloc! Inconformada porque a realidade confrontou o tautismo (autismo + tautologia) crônico de seus repórteres e analistas políticos, a emissora mais uma vez caiu sob o fascínio oportunista da tática black bloc.

Simplesmente a Globo não conseguiu engolir a vitória. O que só piorou com a posse de Donald Trump na presidência dos EUA. As manifestações durante a cerimônia de posse em Washington atiçaram a imaginação de seus analistas que repercutiram um discurso que dá uma forte sensação de déjà vu– “uma eleição que resultou num país dividido”, “um governo populista e nacionalista que gera incertezas” e assim por diante. Já vimos esse discurso padrão após a vitória de Dilma Rousseff em 2014, culminando com o impeachment da presidenta no ano passado.

Por isso a Globo aciona uma espécie de “narrativa reflexa”, um discurso sempre evocado toda vez que os movimentos do “deserto do real” contradizem seu autismo. Em postagem anterior vimos esse mecanismo em ação no acidente aéreo que matou o ministro do STF Teori Zavascki às vésperas de homologar denúncias-bomba para fevereiro que talvez implodisse o atual governo – a imposição da narrativa do desastre aéreo como “trapaça da sorte” antes mesmo do resultado de qualquer investigação oficial – clique aqui.


A telegenia dos black blocs


No caso de Trump, a narrativa do país dividido, da convulsão social e das incertezas. E os black blocs como os personagens mais icônicos que rendem as melhores fotos e vídeos – são fotogênicos e telegênicos pela juventude e performances arrojadas. São em si mesmos, o índice do caos e desordem – a câmera fechada em um black bloc parece que metonimicamente contamina toda uma manifestação.

Certa vez Caetano Veloso caiu em amores por black blocs femininos (“os lindos olhos amendoados do anarquismo”) e uma capa da Veja chegou a estampar atraentes “panteras” black blocs no auge da “primavera brasileira” (clique aqui). Agora também a Globo vive uma caso de amor com os black blocs, resgatando as até então esquecidas táticas de ação direta.

Após as indefectíveis imagens de quebradeiras em vitrines, carros e fogo em cestas de lixo sugerindo barricadas no meio das ruas (com direito a uma limusine pichada com símbolo do anarquismo e a frase “We The People” – há muito esse veículo deixou de ser objeto da burguesia para se tornar ícone de turistas novos ricos), a Globo News resgatou o documentário “Entenda quem são os black blocs no Brasil e no Mundo”, produzido em 2013 no auge das manifestações brasileiras.


Globo anarquista?


Esse é o aspecto tautológico do tautismo: depois de aplicar vitoriosamente na crise política brasileira, a Globo repete o mesmo script. Dessa vez contra a “surpreendente” vitória de Trump: primeiro ato, clima de incertezas; segundo ato, caos protagonizado por black blocs; terceiro ato, virada de mesa, o think tank dos analistas globais.

Apenas com uma pequena variável: enquanto aqui no Brasil a grande mídia juntou a onda black bloc com tudo de mais reacionário para alimentar a atmosfera anti-Governo (racistas, fundamentalistas religiosos, militaristas etc.), para os EUA o retorno dos anarco-ativistas festejado pela Globo está ao lado de feministas, movimento LGBT, ativistas antirracismo, artistas pop e atores hollywoodianos – Madonna, Scarlet Johansson e muitos outros.  

Nem nos mais delirantes sonhos esse humilde blogueiro poderia imaginar a Globo exibindo um documentário tecendo simpatias ao anarquismo, falando em filósofos anarquistas como Proudhon ou Bakunin e ainda sugerindo uma associação da ação direta black bloc às teoria políticas dos velhos pensadores.

Mas, é claro, dando uma ênfase toda especial as ideias de sociedade autorregulada, o fim do Estado e a oposição do anarquismo ao comunismo de Marx e Lenin.


Anarcocapitalismo


Aqui há uma aliança secreta entre o fascínio pelos black blocs com a oportunista releitura liberal do anarcocapitalismo feita por pensadores econômicos, de Molinari a Friedman – para eles, qualquer forma governo estatal é prejudicial à liberdade e o bem estar humano. Principalmente a ideia de que o estágio atual globalização seria a revolução econômica e social do anarcocapitalismo através da desregulamentação do sistema bancário e acordos de livre comércio que aceleraram processos de desindustrialização.

O modus operandi dos analistas do jornalismo da Globo, tão repetitivo na pretensão em aplicar seu script para qualquer lugar do planeta, acaba revelando o outro aspecto da doença do tautismo: o próprio autismo.

O telejornalismo global permanece alheio aos movimentos econômicos e políticos desde a crise de 2008 marcado pela sucessão de falências de instituições financeiras dos EUA e Europa a partir da “bolha imobiliária”, culminando hoje com o Brexit e a vitória eleitoral de Donald Trump.

Uma amostra desse autismo foi como a grande mídia nacional simplesmente ignorou o comentário de Christine Lagarde (FMI) à fala de Henrique Meirelles no painel do Fórum Econômico de Davos sobre a necessidades dos “reajustes” adotados pelo desinterino Michel Temer: Lagarde respondeu que a prioridade deveria ser o combate às desigualdades sociais, e não a imposição de “sacrifícios”.


Neoliberalismo progressista


O autismo crônico impede a percepção de que a vitória de Trump é o resultado da crise do chamado “neoliberalismo progressista”, termo usado por Nancy Fraser, professora de filosofia e política da New School for Social Research de Nova York.

Segundo a pesquisadora, o aparente oximoro dessa expressão esconde um alinhamento perverso entre correntes dos movimentos sociais (feminismo, LGBT, antirracismo, multiculturalismo, entre outros), o setor de negócios baseados em serviços simbólicos e tecnológicos (Vale do Silício e Hollywood) e o capitalismo cognitivo representado por Wall Street e a financeirização.

Para Fraser, esse movimento foi ratificado pela era Bill Clinton nos anos 1990 e os ideais dos “Novos Democratas”. Uma coalizão não mais formada por um “New Deal” entre trabalhadores sindicalizados, indústrias, setores afro-americanos e classe média, mas agora uma aliança entre empresários, classe média dos subúrbios e novos movimentos sociais. Todos emprestando um carisma jovem com a boa fé moderna e progressista – a aceitação da diversidade, empoderamento, multiculturalismo e os direitos das mulheres.

Ao mesmo tempo em que governo e grande mídia apoiavam esses ideais progressistas, a economia era entregue à Goldman Sachs e a desregulamentação bancária que prepararia terreno para as crises cíclicas até chegar ao “Big One” de 2008.

Enquanto o setor industrial e os trabalhadores sindicalizados ruíam, a mídia bombardeava o ideário do “empoderamento”, “não discriminação” e “diversidade”. Porém, associados com a identificação do progresso com a meritocracia. Pouco importa se culturalmente esses valores eram propagados, enquanto a estrutura econômica reproduzia as desigualdades que o discurso combatia – na verdade um discurso que era uma verdadeira bolha isolante do mundo real, como bem detalhou o documentário  de Adam Curtis HyperNomalisation (2016) – clique aqui.
O que selou o acordo, no entanto, foi o fato de tais acontecimentos terem sido simultâneos à ascensão do neoliberalismo. Um partido que apoie a liberalização da economia capitalista é o parceiro perfeito para o feminismo corporativo e meritocrático focado em “assumir riscos” e “superar as barreiras da discriminação de gênero no trabalho”. (FRASER, Nancy. “The End of Progressive Neoliberalism”, Dissidente Magazine, 02/01/2017 – tradução aqui).

Tautismo e esquizofrenia


Enquanto isso, aqui no Brasil a articulação do golpe político, liderado pela grande mídia que se transformou na única oposição política organizada para impor os ajustes neoliberais, viveu uma situação esquizofrênica. Se nos EUA o discurso progressista e multiculturalista foi absorvido pelos Liberais, aqui no Brasil sempre foi uma agenda da Esquerda.

Enquanto lentamente a grande mídia tentava incorporar essa agenda “politicamente correta” nos seus produtos de entretenimento (novelas, minisséries e telejornais), no mundo da realpolitik abriu a caixa de pandora de tudo de mais retrógrado do inconsciente social brasileiro para turbinar os panelaços e a fauna das manifestações dominicais de apoio ao impeachment – um balaio de intervencionalismo militar, anticomunismo histérico, direitistas armados e grupos fundamentalistas católicos e neopentecostais.

O fato é que a Globo liderou um golpe cujo objetivo final era o alinhamento automático com o globalismo econômico e a política externa de Hillary Clinton e do neoliberalismo progressista dos Democratas. O golpe brasileiro deu certo (inclusive com o apoio das táticas de engenharia da percepção do Departamento de Estado norte-americano – clique aqui), mas não levaram em conta o inesperado: a vitória de Trump, embaralhando todo o script.

Em consequência, além do tautismo a Globo começa agora a apresentar sintomas esquizofrênicos: enquanto aqui seus analistas comemoram o congelamento dos gastos na Saúde e o sucateamento do SUS nos ajustes neoliberais do desinterino Temer, ao mesmo tempo criticam Trump por ameaçar revogar o chamado Obamacare do sistema público de saúde dos EUA.

Autista, a Globo não consegue compreender que Trump é o movimento do “deserto do real” daqueles que foram deixados para trás pela Globalização. Aquele deserto do real que está lá fora da bolha do discurso multiculturalista e progressista corporativo.

Por isso, a Globo veste a camisa da ação direta black bloc. Se deu certo aqui, quem sabe também dá certo lá...

E o mundo voltaria à narrativa reflexa e tautista da Globo e todos voltariam tranquilos para suas bolhas virtuais.


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O filósofo Kierkeegard vai a Hollywood no filme "Passageiros"

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Por que diante do precipício ao mesmo tempo em que temos medo, também sentimos o impulso de saltar para o fundo do abismo? Em 1844 o filósofo S∅ren Kierkeegard disse que isso deriva da ansiedade da descoberta de sermos livres para saltar ou não saltar. E sempre temos medo daquilo que mais desejamos. “Passageiros” (Passengers, 2016) retoma essas ideias do filósofo dinamarquês, inclusive com a referencia do abismo: só, no espaço sideral, diante do vazio do Universo, o homem teme por descobrir que é livre, como se retornasse ao mito do Paraíso, antes de Adão e Eva terem descoberto a árvore do conhecimento. “Passageiros” é mais uma amostra da recente guinada metafísica de Hollywood sob camadas de entretenimento e efeitos digitais. Assim como a animação “WALL-E” (2008), também faz uma releitura gnóstica do Gênesis bíblico: como o homem, prisioneiro numa gigantesca espaçonave-resort que ruma para a destruição, pode conquistar a liberdade e autoconhecimento.

Passageiros (2016) é um ótimo exemplo sobre a guinada metafísica dos filmes hollywoodianos: o mix de mitologias e simbolismos filosóficos. Mais precisamente, sobre como, sob a superfície de entretenimento com muito efeitos digitais, os filmes comerciais desfiam sérios conceitos filosóficos tendo com fio condutor a mitologia gnóstica.

Lembrem de filmes como Lucy, Ex-Machina e Transcendence onde o conceito nietzschiano de “vontade de potencia” é introduzido por meio da discussão TecnoGnóstica da Inteligência Artificial; ou os simbolismos freudianos da interpretação dos sonhos aplicados em uma narrativa PsicoGnóstica no filme A Passagem (Stay, 2005).

E não poderia ser de outra forma: um diretor nórdico (Morten Tyldum, O Jogo da Imitação) introduz conceitos filosóficos do filósofo dinamarquês Kierkeegard em uma narrativa que faz uma alusão invertida do mito de Adão e Eva do Gênesis bíblico em uma narrativa da jornada do herói gnóstico – acordar prisioneiro em cosmos que caminha para a entropia e destruição.

Uma gigantesca espaçonave (simbolicamente de forma helicoidal do DNA humano) atravessa a galáxia em uma viagem de 120 anos para uma colônia em um remoto planeta transportando milhares de pessoas em câmaras de hibernação. Porém, uma má função resulta no despertar prematuro de um passageiro, 90 anos mais cedo da chegada prevista. Ele se vê sozinho numa gigantesca nave automática que mais parece uma mistura de shopping center com hotel-resort.


Sozinho naquele microcosmo, cujas má funções começam lentamente a contaminar toda a nave, e junto com 5.000 almas hibernando, o protagonista será confrontado com sérias questões morais, a angústia e a ansiedade. Mas tudo isso traduzido pela filosofia de S∅ren Kierkegaard (1813-1855), mais precisamente na sua obra O Conceito de Ansiedade de 1844, muito tempo antes do Existencialismo e da Psicanálise.

O Filme


Jim (Chris Pratt) é um dos 5.000 passageiros, mais a tripulação, mantidos em câmaras de hibernação, na espaçonave automática Avalon. Viajando a metade da velocidade da luz, Avalon ruma em direção da colônia Homestead II em uma jornada de 120 anos. Após 30 anos, a Avalon atravessa uma região do espaço com uma intensa chuva de meteoros o que obriga a nave a concentrar quase a totalidade da energia nos seus escudos. Isso produzirá uma lenta disseminação de pequenas más funções na Avalon.

E Jim é a primeira vítima: sua câmara de hibernação desperta-o prematuramente, como se a espaçonave já estivesse se aproximando de Homestead II. Tudo parece normal (o protocolo de boas vindas é acionado automaticamente pelos sistemas da nave), mas logo Jim cai em si – ele está sozinho em uma gigantesca espaçonave, faltando ainda 89 anos para o destino. Morrerá sozinho antes do restante dos passageiros despertar.

No início temos a clássica jornada do herói: primeiro ele fica confuso e desesperado. Depois, aparentemente aceita o destino e passa a usufruir de todos os serviços daquele autêntico hotel resort espacial – come sushi todas as noites e bebe uísque com a única companhia, o barman robô chamado Arthur (Michael Sheen) programado para bate papos superficiais de balcão de bar com os clientes.


A nave Avalon, o design interior e o balcão com o solicito robô barman são evidentes alusões a 2001 e O Iluminado de Stanley Kubrick. Assim como em O Iluminado, a solidão num lugar distante de qualquer coisa humana na Galáxia começa a enlouquecer o protagonista – por meses caminha nu pela nave, deixa crescer uma espessa barba, embriaga-se em longas conversas com repostas protocolares do barman androide, faz caminhadas espaciais e por horas fica olhando para o vazio e quase tenta suicídio em uma câmara de ar na saída da Avalon.

A partir daí, Jim passa o tempo lendo textos e os registros de vídeo dos passageiros em hibernação. Até ter um interesse peculiar por Aurora (Jennifer Lawrence), jornalista e escritora. Como engenheiro mecânico, Jim leu todos os manuais sobre as câmara de hibernação o que o coloca em um sinuca existencial e moral: um ano de solidão lhe deu uma inesperada consciência de liberdade. Jim pode despertá-la para dividir com ele a solidão. Mas por outro lado, isso significava roubar-lhe a vida que Aurora teria no futuro.

Jim convence a si mesmo que poderiam se apaixonar e ele iria construir uma casa para ela – um dos temas ao longo do filme é como a automação impossibilita as pessoas de construírem coisas com suas próprias mãos, roubando a humanidade dos objetos.

Depois de muitos dilemas éticos e existenciais, Jim decide acordá-la fazendo tudo parecer mais uma disfunção da nave Avalon.

De um lado, a solidão e a liberdade; do outro, o sequestro da vida de Aurora por Jim. Que ainda esconde um tema sombrio: o horror feminista pelo abuso emocional numa cultura do estupro que vê as mulheres como objeto de possessão. Jim é bonito, charmoso e sedutor. Mas esconde uma sombria escolha moral.


O Gênesis gnóstico


Passageiros faz uma interessante analogia com o Gênesis bíblico: o início de uma convivência fundada no pecado original, porém de forma invertida – foi Adão/Jim que conheceu o Mal (a liberdade de escolha) e não Eva/Aurora. O filme faz até uma alusão à árvore cujo fruto Jim não pode comer: a máquina de café automático Spice Extreme Latte, porque não é um passageiro com pulseira “ouro”. Quando Aurora/Eva chega, os dois podem consumir juntos os produtos do nível ouro, enquanto Jim sabe que fez algo muito errado.

O hotel-resort da nave Avalon é o Paraíso tenta expulsar Jim e Aurora como uma espécie de punição por terem comido o fruto do Conhecimento – Jim, a descoberta da liberdade; e Aurora, permitir a Jim ter acesso “ouro” a serviços.

Mas esse Gênesis parece ter uma releitura bem gnóstica: assim como no Gênesis onde a mulher surge da costela de Adão, é Jim quem desperta uma mulher. Mas Adão e Eva despertam em uma Criação que já está em crise – as más funções anunciam uma destruição próxima de Avalon. Não foi o pecado que fez a Criação incorrer na Queda. A Queda foi a própria criação, que manteve o homem prisioneiro e colocado em condições existenciais extremas que só permitem tirar de dentro do homem o pior de si mesmo.

Aurora descobrirá como um homem aparentemente decente e charmoso foi capaz de roubar-lhe a própria vida. Como é colocado a certa altura em uma linha de diálogo, Jim era alguém que estava se afogando. E toda pessoa que se afoga agarra-se em alguém para levar junto.

Passageiros oferece mais uma releitura gnóstica da mitologia do Paraíso perdido, numa versão um pouco diferente da animação WALL-E (2008) – clique aqui. Tal como na animação, o homem é prisioneiro em uma gigantesca espaçonave-resort que oferece comodismo e conforto. Mas que ao mesmo tempo oferece a oportunidade do autoconhecimento e a descoberta da liberdade.


Kierkeegard vai a Hollywood


Dessa maneira, Passageiros ingressa na ideia principal do livro O Conceito de Ansiedade do filósofo Kierkeegard, que inclusive é visualmente referenciado no filme.

Kierkeegard usa o exemplo de um homem à beira do precipício. Quando o homem olha para baixo ele sente o medo da queda. Mas ao mesmo tempo, sente um grande impulso de se atirar para o fundo do abismo. Esses sentimento paradoxal deriva da nossa ansiedade pela descoberta de que somos livres para escolher saltar ou não saltar. O mero fato de sabermos que temos a liberdade de escolha por sermos seres finitos diante da eternidade do Universo desperta ao mesmo tempo a solidão e a completa liberdade. Isso criaria tanto a possibilidade do autoconhecimento como da ansiedade neurótica – a angústia, que impede a evolução da ansiedade normal em autoconhecimento.

Um dos momentos-chave do filme é quando Jim em um dos seus passeios espaciais vê, solitário, a imensidão do Universo. Isso dá uma inesperada sensação de liberdade – ele pode se atirar no espaço, se matar, ou retornar e despertar Aurora. São atos equânimes moralmente naquelas condições existenciais nas quais Jim é prisioneiro.

Para Kierkegaard o mito de Adão retrata o despertar do indivíduo para a autoconsciência. Uma representação poética do instante em que o indivíduo coloca-se frente a si mesmo.

Tanto Jim quanto Aurora temem a extrema experiência simultânea da solidão e liberdade de poderem construir um novo mundo dentro do microcosmo da espaçonave Avalon. Mas, como Kierkeegard que antecipou muitas ideias freudianas, aquilo que mais desejamos é sempre o que mais tememos. 

A ansiedade neurótica à descoberta de que sãos seres livres faz Jim pensar no suicídio e Aurora em tentar retornar à câmara de hibernação.

O filme Passageirosé uma jornada de autoconhecimento para os protagonistas: a transformação do medo da liberdade em atos que ecoarão na posteridade, como acompanhamos na sequência final - quando finalmente a nave Avalon chega ao destino 89 anos depois e os passageiros descobrem o legado deixado por Jim e Aurora. 



Ficha Técnica

Título: Passageiros
Direção: Morten Tyldum
Roteiro: Jon Spaiths
Elenco:  Jennifer Lawrence, Chris Pratt, Michael Sheen, Laurence Fishburne
Produção: Columbia Pictures, Original Film
Distribuição: Sony Pictures Releasing
Ano: 2016
País: EUA

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I Ching, Cinema e mundos quânticos na série "The Man in The High Castle"

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Qual a relação entre o milenar livro-oráculo "I Ching", o Cinema no século XX e a hipótese dos Múltiplos Mundos da Física Quântica? A busca dessas conexões é o desafio para o espectador que assiste à série da Amazon Studios “The Man In The High Castle” (2015 - ) livremente inspirado no livro do escritor sci-fi gnóstico Philip K. Dick de 1962. Um mundo invertido no qual os países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália)  ganharam a Segunda Guerra Mundial e os EUA, destruídos pela Grande Depressão, foram conquistados pelo Reich e o Império do rei Hirohito. Porém, a posse de estranhos rolos de filmes de procedência misteriosa passa a ser politicamente importante tanto para Resistência como para Hitler: neles, outros mundos são revelados. Tal como no I Ching, devemos encontrar o imutável em mundos fugazes e em constante mutação. Mas pode tornar-se uma arma política: o controle do Tempo, passado e futuro de toda a humanidade.

Todos historiadores sabem que Hitler era obcecado pelo cinema. Muitos até especulam que a sua performance cênica em comícios tinha um quê de Chaplin e dos galãs canastrões dos filmes da época. Portanto, sua obsessão pelos filmes seria muito mais do que ver neles uma ferramenta de propaganda ou diletantismo estético.

Mas, e se Hitler tivesse um interesse pela arte cinematográfica muito mais específico e secreto? Não apenas como mera estratégia de propaganda,  mas o interesse por certos tipos de filmes que apresentassem futuros alternativos os quais deveria evitar, ajudando a formar o sonhado Reich de mil anos sobre a Terra.

Livremente inspirado no livro do escritor gnóstico sci fi Philip K. Dick, a série da Amazon Studio The Man in The High Castle (2015-) mescla o aspecto fundamental da obra de K. Dick (o que entendemos por “realidade” como um contínuo de muitos mundos que se interpenetram) com muitos aspectos da chamada “parapolítica” – o Poder pensado muito além do campo tradicional da economia e política, mas também por motivações esotéricas e ocultistas.  

No livro homônimo de 1962, K. Dick mostrava uma História alternativa do pós-guerra pela lente da distopia, do romance e da ficção-científica. A estória se desenrolava nos Estados Unidos de 1962: quinze anos depois das potencias do eixo (Alemanha, Itália e Japão)  terem derrotados os Aliados na Segunda Guerra Mundial, os EUA foram divididos – da Costa Oeste até as Montanhas Rochosas ficou sob domínio japonês; e a Costa Leste sob o domínio do Império Nazista. E no Meio Oeste e Sudoeste, a chamada Zona Neutra sob forte tensão entre forças nazistas e do império japonês.


Um estranho mundo invertido


A realidade descrita por K. Dick parece um estranho mundo invertido. Os EUA não conseguiram superar a Grande Depressão dos anos 1920, tornando-se isolacionista e evitando envolver-se com a Segunda Guerra Mundial. O começo do fim foi a derrota naval para o Japão em Pearl Harbor e a explosão nuclear sobre Washington.

No livro, Hitler fica incapacitado pela sífilis e o novo chanceler nazista prossegue com o Império Colonial Nazi, massacrando as raças consideradas inferiores – massacram judeus em todo o mundo e comete genocídio maciço na África.

Nesse cenário conturbado surge um livro considerado proibido, cujo autor é o “Homem do Castelo Alto”, mostrando um futuro alternativo sobre como seria a História conforme a conhecemos – o Dia D, a derrota do Eixo e a vitória dos Aliados. O I Ching, o milenar oráculo chinês, tem papel fundamental na vida das pessoas e até mesmo na narrativa desse livro proibido. Uma verdadeira “ficção” dentro de outra obra de ficção.

Se no romance original o pivô é um livro que conta como seria a História se Hitler tivesse perdido, na série criada por Frank Spotnitz o Homem do Castelo Alto coleta estranhos rolos de filmes que são entregues por membros da Resistência. Ocasionalmente, agentes e espiões da SS conseguem roubar esses filmes para entrega-los diretamente a Hitler, em Berlim.

A natureza desses filmes e o motivo pelo qual Hitler e o Homem do Castelo Alto têm não só interesse por eles, mas também  o porquê de mantê-los em segredo do público é o mistério por trás das, até aqui, duas temporadas. Membros da Resistência são aconselhados a não assistirem o conteúdo dos rolos de filmes, mas apenas passarem para frente, escondendo-os dos nazistas até chegarem ao Homem do Castelo Alto.


A série altera o conteúdo do livro de K. Dick de três formas cruciais: o livro é substituído por rolos de filmes de natureza misteriosa coletados tanto por Hitler como pelo Homem do Castelo Alto; na série Hitler ainda continua vivo, porém com a saúde abalada pela idade; e, principalmente, a aproximação entre I Ching, Cinema e a existência de mundos alternativos capazes de interagirem mutuamente.

A Série


 Juliana Crain (Alexa Davalos) mora em São Francisco e acaba se envolvendo com a Resistência ao tentar descobrir o destino de sua meia-irmã Trudy, desaparecida logo depois de dar a Juliana um  carretel de um filme intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado” que retrata a história alternativa em estilo documental mostrando um mundo no qual os Aliados ganharam a guerra.

Esse rolo pertence a uma série de filmes coletados por alguém conhecido como “O Homem do Castelo Alto”. Juliana acredita que essas fitas retratam uma realidade alternativa que esconde uma verdade maior sobre como o nosso mundo deveria ser.

Juliana deverá levar o filme para um contato da Resistência na Zona Neutra. Lá conhecerá Joe Blake, um agente duplo sob o comando do Obergruppenführer da SS John Smith – Rufus Sewell. Sua missão é roubar esse filme para a SS entregar a Hitler, além de delatar nomes-chave da Resistência.


Paralelo a isso, desenrola uma conspiração envolvendo traição e espionagem entre o Império Japonês e Nazista: Nobusuke Tagomi (Joel De La Fuente), Ministro do Comércio japonês em São Francisco, se encontra em segredo com Rudolph Wegener (Carsten Norgaard), oficial nazista sob o disfarce de um empresário em um encontro supostamente comercial. Ambos estão preocupados com o vácuo de poder depois da morte de Hitler e o ataque nazista contra o império japonês que viria imediatamente – os nazistas tecnologicamente estão muito à frente dos japoneses. Enquanto a aviação comercial alemã é feita por imponentes aviões à jato parecidos com Concordes e a conquista espacial já tenha alcançado a Lua e Marte, os japoneses ainda se deslocam em navios e aviões convencionais.

Wegener que passar secretamente o know how da bomba nuclear para os japonês. O plano é equilibrar militarmente as duas potencias, criando uma espécie de Guerra Fria que impeça a deflagração de um conflito bélico.

A partir daí a série enreda-se em uma sequência de conspirações na disputa de poder no interior do comando do Reich, os planos japoneses em secretamente criar uma bomba nuclear ainda mais potente e destruir Nova York, o atentado ao príncipe herdeiro em São Francisco e a suspeita da SS estar por trás, a triste constatação de a Resistência ser ainda mais cruel do que os próprios nazistas, a tentativa de transformar a morte natural de Hitler em um atentado japonês como pretexto para deflagrar o ataque nuclear final contra o império japonês etc.


Muitos Mundos quânticos – aviso de spoilers à frente


“O Gafanhoto Torna-se Pesado”, título do misterioso rolo de filme, é uma alusão ao capítulo 12 do livro bíblico do Eclesiastes sobre a fugacidade da vida e a chegada à velhice quando as coisas pequenas podem se transformar em grandes fardos. A própria existência desses filmes representa a fugacidade do que compreendemos como realidade – a possível existência de muitos mundos alternativos que se abrem como bifurcações a cada momento-chave histórico ou pessoal.

A marca registrada da obra de K. Dick é certamente influência da chamada Interpretação dos Muitos Mundos (MWI em inglês), interpretação da mecânica quântica feita em 1957 por Hugh Everett – múltiplos mundos estariam nascendo a cada momento em múltiplas ramificações a cada escolha, incorrendo na chamada “decoerência quântica”. A questão é: a MWI permitiria a hipótese que esses mundos possam interagir ou que sinais possam ser trocados entre os mundos? No âmbito da Física Quântica há uma discussão em torno da hipótese dos Mundos em Choque (MC) – clique aqui.

Em The Man In The High Castle essa possibilidade é o ponto chave do controle político em jogo. Cinema é propaganda (a principal ferramenta usada pelos nazis na História). Mas é apenas uma narrativa construída para as massas aderirem ao Estado. Porém, de onde vem o Poder real?


I Ching e o Tempo


Na obra de K. Dick essa resposta é clara: no controle do Tempo e da Teleologia – a imposição de metas, fins e objetivos últimos para a Natureza e a humanidade. Todo poder, seja religioso ou estatal, tem que criar tanto uma Cosmogonia quanto uma Escatologia – mitos sobre de onde viemos e para onde iremos, a Origem e o Fim de tudo: seja o Paraíso (o Catolicismo), o Apocalipse (os Neopentecostais), a sociedade sem classes (o Comunismo) ou o fim da História no mercado (o Capitalismo).  

Não é à toa que a sede do Reich em Berlim é apresentado como uma espécie de gigantesco Vaticano, cuja imensa cúpula abriga um colossal espaço para milhares de pessoas assistirem aos discursos do Führer.
Os filmes de origem misteriosa são coletados tanto por Hitler como pelo “Homem do Castelo Alto” com um objetivo que fica bem claro ao longo das duas temporadas: estudar as informações dos diversos mundos alternativos, estudando as causas e os efeitos possíveis nas tomadas de decisão.

Além dos filmes, o I Ching é outro canal de contato aos mundos desse multiverso imaginado por K. Dick. Além de fonte de sabedoria com seus aforismos, o milenar livro chinês é também um oráculo que busca a ordem em um mundo em constante mutação. Vemos na série o ministro do Comércio japonês fazendo consultas ao I Ching por meio do jogo das 50 varetas para obter respostas.

O problema do I Ching é formular a pergunta correta. Essa aproximação inicial exige meditação prévia. O que fará, em uma dessas profundas meditações, o ministro Tagomi ser acidentalmente transportado para o mundo alternativo no qual os japoneses foram derrotados.


No mundo apresentado pela série onde realidade e ficção se misturam também não é à toa que os japoneses são obcecados pela busca da “historicidade”, pela busca da essência da verdade – muitos são clientes da loja “American Artistic Handcrafts” do personagem Robert Childan (Brennan Brown) em São Francisco: loja de relíquias da história americana que promete peças autênticas “com historicidade”. Na verdade muitas delas são fakes e produzidas pelo marido de Juliana (Frank Frink, membro da Resistência) cujo dinheiro será entregue à máfia Yakuza.

Sophia em um mundo sem mocinhos e bandidos


Outra grande virtude da série é a impossibilidade para o espectador distinguir mocinhos e bandidos. A Resistência cada vez mais demonstra ser tão cruel quanto os nazis e mesmo o mais sanguinário dos oficiais da SS, John Smith, é um marido dedicado aos filhos e à família.

Aqui entra o recorrente tema da obra de K. Dick: a protagonista feminina encarnando o mítico personagem de Sophia – o aeon que busca o melhor na natureza humana para despertar a luz espiritual esquecida em cada um de nós para nos reconectarmos à Plenitude perdida.


Juliana será o ponto constante em um mundo em mutação, como o I Ching. Ela reconhece a humanidade em cada um dos lados, procurando a verdade por trás do jogo de sombras da política. Por isso, a certa altura, passa a ser perseguida tanto pela Resistência como pelos nazistas e a polícia secreta japonesa, a Kempeitai.

Já no final, o próprio Homem do Castelo Alto reconhecerá em Juliana a constante, sempre presente nos diversos rolos de filmes em múltiplos personagens nos diferentes mundos alternativos. Como uma autêntica narrativa gnóstica, Juliana é a chave, o elemento constante em inúmeras variáveis. O ponto imutável buscada na série tanto pelo I Ching como nos filmes que revelam a fugacidade desse multiverso.  

Por isso, The Man In The High Castle se assemelha a uma casa de espelhos  dentro da qual vemos apenas imagens que se refletem e se invertem, sem conseguirmos distinguir o reflexo daquilo que foi refletido.

Seria o Universo uma realidade dentro de outra realidade alternativa e assim por diante? Uma ficção dentro de outra ficção? Será que a realidade que conhecemos nos livros de História e filmes documentários que vemos na TV e no Cinema não passam de estratégias para esconder uma estranha realidade? Estratégias políticas e religiosas de controle do Tempo e da Cosmogonia? Controle do passado e do futuro?


Ficha Técnica

Título: The Man In The High Castle
Criador: Frank Spotnitz
Roteiro: Frank Spotnitz baseado em livro de Philip K. Dick
Elenco:  Alexa Davalos, Rupert Evans, Luke Kleitank, Joel de la Fuente, Rufus Sewell
Produção: Amazon Studios, Big Light Productions
Distribuição: Amazon Prime Video
Ano: 2015 -
País: EUA

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Eike Batista: Efeito Heisenberg e lixo midiático reciclado

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A política brasileira parece estar sendo dirigida pelos misteriosos desígnios das “coincidências”. Os exemplos mais recentes: a morte do ministro do STF Teori Zavascki no Triângulo das Bermudas da política em Paraty e a prisão do pobre homem rico “foragido” Eike Batista, repletos das sempre recorrentes “coincidências” e timings oportunos envolvendo a onipresente TV Globo. Qualquer tentativa de explicar essas “coincidências” (rapidamente definidas pela narrativa midiática como “fatalidades” das “trapaças da sorte”) é logo rotulada como “teoria conspiratória”. Mas o show midiático da “caça” ao “foragido” Eike Batista acrescenta alguns ingredientes a mais: o chamado Efeito Heisenberg, no qual a mídia cobre um evento criado por ela mesma; e o linchamento midiático: depois dos petistas agora são as celebridades, subprodutos da própria mídia. Linchamento que combina entretenimento e expiação da dor e introjeção da culpa pelo fracasso profissional e pessoal de milhões de brasileiros no naufrágio da crise econômica. Mesmo no seu fim, Eike Batista se tornou útil como um lixo midiático reciclável no bode expiatório da vez.

O ano de 2017 parece que inicia como o ano das “coincidências”. A uma semana da homologação das denúncias-bombas da Operação Lava-Jato, o relator ministro do STF Teori Zavascki por coincidência morre em um acidente aéreo no Triângulo das Bermudas da política brasileira em Parathy. Logo depois a ministra Carmen Lúcia faz às pressas as homologações, porém mantendo tudo em “sigilo de Justiça”.

Também por coincidência, o ministro da casa civil, Eliseu Padilha, tinha dito no dia anterior ao velório de Zavascki que “a morte vai fazer com que a gente tenha um pouco mais de tempo...”.

E também por coincidência o empresário Eike Batista deixa o Brasil através do Aeroporto do Galeão rumo aos EUA, dois dias antes da Polícia Federal dar uma batida na sua mansão. O mandato de prisão foi expedido dia 11 e por coincidência, em um timing perfeito, doze dias depois Eike passa pelo guichê da Polícia Federal no aeroporto com direito a carimbo e “boa viagem”.

Embora com endereço sabido nos EUA, a grande mídia considerou Eike “foragido” e com um passaporte alemão, planejando escapar dos longos braços da Lei.

Pronto para retornar ao Brasil no aeroporto John Kennedy, coincidentemente lá estava uma equipe da TV Globo (mas Eike não estava “foragido”?) a qual concede entrevista no check in.

Coincidentemente, um repórter da Globo consegue comprar uma poltrona ao lado do empresário “foragido” para gravar um pequeno vídeo descrevendo a tranquila noite de sono de Eike.


Timing da suíte jornalística


No Brasil, sua estadia vira um tour de force televisivo: Eike de camburão, no IML, entrando no presídio, Eike agora careca (ou apenas confiscaram sua peruca?)...

Mais uma “coincidência”: enquanto muitos alvos da Lava Jato como Marcelo Odebrecht levam vários dias para prestar depoimento após a prisão, com a live action televisiva de Eike foi diferente: no dia seguinte à prisão já esteva prestando depoimento, com total cobertura através das imagens aéreas do Globocop, acompanhando-o pelas ruas do Rio de Janeiro.

Timing perfeito como se o evento estivesse muito tempo antes roteirizado, garantindo a suíte da cobertura telejornalística.

Qualquer tentativa em compreender como é possível a política brasileira estar à mercê de sequências de coincidências é imediatamente rotulada como “teoria conspiratória”. Afinal, a narrativa dominante é a da grande mídia, sempre descontextualizada e apostando na fatalidade ou nas “trapaças da sorte”, como disse o ministro do STF Luís Roberto Barroso – será que a declaração foi alguma fina ironia?

Mas a “fuga” e “captura” do “foragido” Eike Batista deixa de ter os aspectos trágicos das coincidências envolvendo a morte de Teori Zavascki para adentrar na ironia do chamado Efeito Heisenberg midiático e em um campo mais sombrio da psicologia de massas: o cultivo diário dos linchamentos para alimentar uma latente personalidade autoritária coletiva que legitimará um futuro distópico que ora está sendo silenciosamente gestado no País. E Eike Batista transformado num surpreendente lixo midiático reciclado que ganha nova utilidade no xadrez político.


(a) O Efeito Heisenberg Eike Batista

Conceito criado por Neil Gabler numa alusão ao princípio quântico (o observador não pode observar qualquer coisa sem alterar o observado), o “Efeito Heisenberg” é o resultado da onipresença da mídia na sociedade: na medida em que a vida está sendo cada vez mais vivida para a mídia, esta começa cada vez mais a cobrir a si mesma e o seu impacto sobre a sociedade – sobre o conceito clique aqui.

Eike foi uma dessas felizes correspondências que alimentam a atual hegemonia midiática sobre processos políticos e econômicos: de um lado alguém sedento pelas luzes das câmeras de TV e do outro um jornalismo também sedento por personagens que sustentem scripts pré-estabelecidos pela pauta dos “aquários” das redações – a pauta do empreendedorismo e meritocracia como únicas saídas para uma sociedade se autorregular e se livrar do Estado deficitário e corrupto.

Nos bons tempos do homem mais rico do Brasil e o sétimo do mundo pelo ranking da Forbes, jornais, revistas e TVs incensavam Eike como alguém “que trabalha muito, compete honestamente, gera empregos e não se envergonha da riqueza”. Enquanto Eike gostava de ostentar seus carrões, mansões e se deixava fotografar ao lado de celebridades globais como Luciano Huck nas concorridas festas, a grande mídia chegava ao ápice da bajulação: “Eike Xiaoping” estampado na capa da Veja e “Eike para presidente” em artigo publicado pela Folha em 2012 que chegava a defini-lo como algum tipo de fenômeno sociológico:
Ser rico no Brasil sempre foi uma ofensa sociológica. Eike Batista chegou para acabar com isso. Ele não é só um bilionário desinibido, confiante, assumido. O pai de Thor é também carismático, empreendedor genuíno, obcecado com o cabelo, nosso primeiro Donald Trump, com bestseller nas livrarias e um senso de autopromoção que pode levá-lo, quem sabe, a subir a rampa do Palácio do Planalto”(MALBERGIER, Sérgio, “Eike Para Presidente”, Folha, 19/01/2012.

Hoje, tanto Eike como Trump são execrados pela grande mídia. Produtos midiáticos que parecem ter perdido o prazo de validade. Enquanto Eike foi útil como prova de que o empreendedorismo genuíno poderia substituir o estatismo lulopetista, mereceu as luzes da ribalta.

Hoje a mesma mídia que o criou agora descarta, jogando-o ironicamente no colo petista de Lula e Dilma, mesmo sabendo-se que no Conselho de Administração das empresas de Eike estivessem a ministra do STF Ellen Gracie (indicada por FHC ao Supremo) e os ex-ministros da Era FHC Pedro Malan e Rodolpho Tourinho Neto.

Mesmo no final da trajetória do pobre milionário, o Efeito Heisenberg continuou como se a mídia quisesse reciclar o lixo rejeitado: a “coincidente” cobertura da TV Globo foi um verdadeiro exercício metalinguístico de ostentação de poder da emissora não só no campo político como no próprio campo midiático – achou o “foragido” no aeroporto norte-americano e o acompanhou por toda viagem como se escoltasse o troféu. Quem sabe, para evitar que mais uma “trapaça da sorte”, ao estilo Teori Zavascki, ceifasse a vida de tão importante delator.

Chegando no Brasil, Eike foi pego pela Polícia Federal na cabeceira da pista, enquanto, na área de desembarque, o restante da imprensa esperava em vão. Em rede nacional foi uma evidente demonstração de força, na qual a Globo demonstrou de forma inequívoca que ainda é ela que dá as cartas no País. E o restante da mídia é mera câmara de eco das narrativas globais.


(b) O linchamento de Eike Batista 


O filósofo e sociólogo Theodor Adorno resumia da seguinte maneira a dinâmica psíquica da personalidade autoritária: “quem é duro consigo mesmo, adquire o direito de ser duro com os demais e se vinga da dor que não teve liberdade de demonstrar, que precisou reprimir”. Com isso Adorno queria explicar como o fenômeno da personalidade autoritária foi matéria-prima psíquica da psicologia de massas que deu historicamente sustentação ao nazi-fascismo – a busca de bodes expiatórios nos quais foi projetada a dor interna de cada um, resultado da introjeção da culpa pela humilhação e derrota num contexto de crise econômica. A dor que a sociedade proíbe a manifestação por meio da introjeção.

O outro lado do Efeito Heisenberg do show da prisão de Eike Batista é o seu conteúdo psíquico destinado para as massas: as imagens “chocantes” de Eike careca e de chinelos da outrora celebridade milionária, sendo conduzido por agentes penitenciários e policiais federais, atiça o velho ritual do linchamento físico e moral – mesmo que sejam apenas signos visuais criados pela e para a mídia.

Assim como nas proto-celebridades do reality Big Brother Brasil, com Eike é o show histérico do linchamento no qual o homem anônimo se vinga das celebridades: o prazer sádico em descobrir alguém supostamente em situação pior que a sua. Afinal, esse é o prazer dos programas reality horror do final de tarde, de Datena a Mercelo Rezende.

Linchamentos midiáticos como os que testemunhamos com Eike Batista poderá ser a preparação do terreno psíquico de massas para algo muito maior e sombrio no futuro.
Theodor Adorno

(c) Eike Batista como lixo midiático reciclado


Em épocas de “flexibilização” das leis trabalhistas e da aprovação a toque de caixa de todas as PECs que tornarão a vida ainda mais dura na qual é cada um por si, é necessário criar o substrato psíquico que legitime a nova ordem e faça as pessoas engolirem a dor por meio da culpa.

Diariamente a grande mídia bombardeia soluções individualistas para a crise do país: o pequeno empreendedor, o pequeno empresário, o plano de saúde privado, o plano de aposentadoria privada, o financiamento estudantil da universidade privada, a start up etc. Nenhuma solução coletiva através de programas públicos que gerem empregos pela expansão da cadeia produtiva. Apenas soluções privadas: “uma ideia, um negócio”.

Não é à toa que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está a ponto de transformar-se em agência da mega-sena, ao invés de financiador de políticas públicas de desenvolvimento.

Esse modelo meritocrático (o mito de que o mercado sempre recompensará talentos individuais) inevitavelmente produz muito mais perdedores do que vencedores. Só que dessa vez sem o amparo de um Estado de Bem Estar Social, apenas contando com a sorte de um dia ter o bilhete da loteria sorteado.

Por isso a derrota sempre será introjetada no psiquismo individual – também a dor social é privatizada: dor e humilhação por que supostamente não preencheu direito o currículo, porque não se esforçou o suficiente, porque é preguiçoso, porque não acreditou o suficiente em Deus, não tem pensamento positivo e assim por diante. Ou simplesmente porque é burro e um loser.

Nesse cenário psíquico tão duro para o indivíduo, sempre exigindo uma dose extra de repressão de um superego severo e implacável (afinal, por razões competitivas, as fraquezas jamais devem ser demonstradas), bodes expiatórios midiáticos são a válvula de escape perfeita por unir entretenimento com expiação.

O moralismo da caça aos “marajás”, depois aos petistas e, agora, celebridades em decadência, é o plano perfeito para criar consenso em uma sociedade onde é cada um por si.

E Eike Batista, mesmo no seu fim, ainda é útil como uma espécie de lixo reciclado midiaticamente. Reciclagem ideológica como punição sádico-meritocrática para que as hordas dos derrotados reciclem também o ódio e a dor

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Realidade é esquecimento consensual no filme "Os Esquecidos"

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Desculpe, caro leitor, o trocadilho involuntário mas o filme “Os Esquecidos” (The Forgotten, 2004) acabou sendo esquecido pela crítica e público. E com razão! Foi um filme que explorou elementos clássicos do gnosticismo pop hollywoodiano. Mas naquele momento, a safra de filmes gnósticos revelava filmes muito mais memoráveis como as sequências de “Matrix”, “A Passagem”, “Vanilla Sky” ou “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. O filme conta com um argumento poderoso (a mãe que lembra do filho morto em um acidente, mas todos ao redor insistem em dizer que a criança jamais existiu), mas o roteiro é inverossímil sem conseguir definir o tom narrativo – alguma coisa entre sci fi, mistério e thriller policial. Apesar disso, “Os Esquecidos” é uma filme didático: mostra como os temas do esquecimento, paranoia e conspirações são articulados dentro de uma narrativa gnóstica. Ecoando filmes clássicos como “Dark City” e “Amnésia” de Christopher Nolan, mostra que a chamada “realidade” pode ser o produto de um esquecimento consensual.

Os Esquecidos (The Forgotten, 2004) é um filme peculiar. Primeiro, porque é um daqueles filmes difíceis de serem resenhados sem incorrer a spoilers.

Segundo, os spoilers talvez não prejudicam a experiência de assistir ao filme: Os Esquecidos  possui uma narrativa tão ruim que exige demais do espectador a suspensão da incredulidade. Saber o que vem depois de um suspense tão mal contado certamente ajuda o espectador a acompanhar a estória – pelo menos para aqueles que adoram narrativas sobre abduções alienígenas.

Então, o que este filme está fazendo aqui no Cinegnose? Além de ser o típico filme que só consegue ser salvo pelo elenco (Juliane Moore e Dominic West dão a credibilidade que faltou ao roteiro), Os Esquecidosé uma oportunidade didática para conhecer os principais elementos que compõem a especificidade do filme gnóstico em relações aos outros filmes de mistério, thriller, drama ou suspense.

O filme até explora uma ideia poderosa e icônica: a mãe que lembra do filho morto em um acidente, mas todos ao redor insistem em dizer que a criança jamais existiu. Só nessa breve sinopse já estão embutidos alguns principais elementos do filme gnóstico: esquecimento, conspiração e paranoia. A realidade que nos rodeia foi criada a partir de uma espécie de esquecimento consensual. É o que nos permitiria viver nesse mundo com uma consciência feliz e alienada. Porém, alguns conseguem reter fragmentos dessa memória apagada, tornando-se pessoas dissonantes. O destino delas será a conspiração e a paranoia.

Embora o diretor Joseph Rubin tivesse em mãos um poderoso argumento ao estilo da velha série Além da Imaginação, o roteiro ficou inverossímil com um amontoado de agentes repressores (o psicólogo, agentes federais e policiais municipais) que olham os heróis correndo de um lado para o outro enquanto, de repente, pessoas são sugadas para o céu e o telhado vai pelos ares.


O tom incerto da narrativa (atmosfera de mistério, thriller policial, sci fi, drama familiar, tudo costurado com sequências inverossímeis) comprometeu uma excelente ideia.

Porém, O Esquecidos é um excelente filme didático para aqueles que estudam o gnosticismo pop em Hollywood. E como encontramos nesse filme ecos de excelentes produções gnósticas da época como Cidade das Sombras (Dark City, 1998) e Amnésia(Memento, 2000).

O Filme - aviso de spiolers à frente


Telly (Julianne Moore) está de luto pela perda do filho de 9 anos, Sam, em um acidente aéreo, há pouco mais de uma ano. Ela está obcecada pela memória do filho: visita diariamente seu quarto, olha fotografias e assiste a vídeos enquanto fragmentos de memórias povoam sua mente. Seu marido, Jim (Anthony Edwards), parece ter superado a tragédia e pacientemente tenta ajudar Telly a superar o trauma, junto com o seu psiquiatra, Dr. Munce (Gary Sinise).

Porém, de repente algo estranho acontece: os vídeos com Sam desapareceram, as fotos parecem que foram alteradas e o seu filho desapareceu delas. Jim e Dr. Munce passam a tentar convencê-la que esse filho é imaginário, consequência do trauma de um aborto. Telly estaria supostamente criando falsas memórias de um bebê perdido.

A única pessoa que parece acreditar em Telly é o seu vizinho alcoólatra Ash (Dominic West) que também teve o filho morto nesse mesmo acidente aéreo. Claro que Telly teve que fazer muito esforço para que Ash recuperasse as memórias do seu próprio filho e se juntasse a ela na luta para denunciar alguma estranha conspiração.


A partir do momento em que Telly e Ash levam o caso à polícia local, entram em cena agentes federais da Agência de Segurança Nacional (NSA) na sua forma cinematográfica mais estereotipada: pessoas com sobretudos, em carros escuros sem identificação, levando pessoas sob custodia enquanto dizem que não têm liberdade para “discutir o assunto”.

Enquanto isso, a polícia local, liderada pela investigadora Anne Pope (Alfre Woodard), nada mais faz do que chegar nas cenas de crimes e coçar a cabeça enquanto tenta em vão dar sentido a tudo.

Mas das sombras emerge uma figura desconhecida (Linus Roache) com feições imóveis que parece se interessar por Telly e Nash, observando-os atento, com um olhar fixo e sinistro.

O que parecia um thriller policial muda de figura, principalmente quando um dos agentes da NSA começa a revelar para Telly e Ash o segredo por trás do desaparecimento das crianças naquele voo – ele é violentamente sugado para o céu, junto com o telhado, numa cena bizarra e inesperada. Na verdade uma cena que cheira a um “Deus Ex Machina” – expressão aplicada para roteiro mal conduzido no qual uma sequência-chave exige uma solução arbitrária e inverossímil para a dar continuidade à narrativa.

Realidade é esquecimento consensual


A narrativa simplista e arbitrária de Os Esquecidos deixa mais esquemático os clássicos elementos do filme gnóstico. Apesar de tudo, um filme excelente para estudiosos desse gênero de filme.

Aproximando do final, principalmente depois da bizarra cena “Deus Ex Machina”, descubramos que há alguma experiência de abduções alienígenas em andamento. E o que é pior: os agentes federais nada mais fazem do que dar cobertura para essas experiências extraterrestres.

A virtude do filme é não cair no célebre clichê em associar abduções com experiências genéticas aliens com seres humanos. Os propósitos são mais “espirituais”: o misterioso alien que observa tudo das sombras quer estudar a especificidade do vínculo entre mães e filhos terrestres. Eles até conseguiram quantificar esse vínculo. Mas sabem que há algo mais qualitativo ou espiritual.

Temos aqui ecos do filme Cidade das Sombras no qual seres humanos são confinados em uma cidade cenográfica para que os aliens estudem a alma humana.


Também Os Esquecidos se filiam a mudança dos filmes gnósticos no século XXI: dos filmes CosmoGnósticos como o Cidade das Sombras (a ilusão do mundo é criada tecnologicamente pela realidade virtual, como em Matrix– ilusão consensual), passamos para os PsicoGnósticos – a ilusão da realidade criada pelos traumas do psiquismo.

Os Esquecidos sugere que a realidade não passaria de uma espécie de “esquecimento consensual”. Demiurgos (sejam aliens, Estados totalitários, corporações etc.) nos impõe o esquecimento, a base da consciência feliz.

Mas algumas pessoas ainda conseguem reter fragmentos dessas memórias deletadas, criando o mal estar e, por fim, a paranoia – ao lado da melancolia e do estranhamento (a sensação de ser estrangeiro em ambientes familiares), a paranoia é um dos estados alterados de consciência que possibilitariam o despertar do sono do esquecimento.



Ficha Técnica

Título: Os Esquecidos
Criador: Joseph Ruben
Roteiro: Gerald Di Pego
Elenco:  Julianne Moore, Dominic West, Christopher Kovaleski, Anthony Edwards, Gary Sinise
Produção: Revolution Studios, Jinks/Cohen Company
Distribuição: Sony Pictures Entertainment
Ano: 2004
País: EUA

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Para tautismo da Globo Marisa Letícia supostamente morreu

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O tautismo (autismo + tautologia) crônico da TV Globo chegou a um nível bizarro e surreal com a “morte” de Dona Marisa Letícia. Enquanto a emissora mostrava imagens de pesar e condolências (minuto de silencio no Congresso e os pêsames de FHC a Lula), a Globo se apegava ao “protocolo de morte encefálica” para adiar em 18 horas o anúncio do falecimento e a palavra “morte”. Uma cobertura, no mínimo, anômala: em se tratando de políticos, celebridades e artistas o "modus operandi" da grande imprensa diante da morte sempre foi o sensacionalismo, ilações e especulações. Por que esse inesperado comedimento, como se repórteres e apresentadores usassem luvas de pelica enquanto pisavam em ovos? No dia 02 de fevereiro, Dona Marisa Letícia estava supostamente morta. Para no dia seguinte a palavra “morte” ser anunciada de forma protocolar. Para quê serviu esse pesar tautista da Globo? Algumas hipóteses: (a) AVC político, (b) Lula vai ser preso, (c) Sebastianismo e Eleições 2018, (d) Tática do diversionismo, (e) Corrente de Esperança.

Criado pelo pesquisador francês Lucien Sfez, o conceito de “tautismo” (neologismo criado pela combinação das palavras “tautologia”, do grego “tauto”, “o mesmo”, e “autismo”, auto, si mesmo) é resultante de pesquisas sobre processos contemporâneos de comunicação. Processos  abstratos e estudados por áreas especializadas como Teoria dos Sistemas ou Teoria da Informação que o leitor mais leigo muitas vezes não consegue acompanhar - sobre o conceito clique aqui.

Em postagens recentes o Cinegnose vem procurando descrever esse fenômeno do tautismo na TV Globo, principalmente no telejornalismo – objeto exemplar por ser ponto de contato de um sistema fechado em si mesmo com a realidade exterior. Em geral, as manifestações do tautismo são sutis, subliminares às vezes, exigindo do pesquisador método e atenção.

Porém, dessa vez o tautismo crônico da emissora foi direto e evidente. Poucas vezes esse humilde blogueiro testemunhou uma manifestação tão explícita, bizarra e surreal do tautismo como na edição de 02/02 do Jornal Nacional.

Nos seus pouco mais de 2 minutos dedicados à morte da esposa de Lula, Dona Marisa Letícia, enquanto um infográfico explicava a evolução do AVC ao quadro irreversível de morte encefálica, os apresentadores falavam em “ausência de fluxo cerebral”, “ausência de atividade cerebral”, “ausência de circulação sanguínea” e a confirmação de doação de órgão pela família.

Tal como o restante da grande mídia, o Jornal Nacional evitou usar  a palavra “morte”. Ao mesmo tempo, as imagens mostravam a Câmara dos Deputados paralisando uma sessão para fazer um minuto de silêncio para... a morte de Dona Marisa Letícia?... ou para a “ausência de fluxo cerebral?


Uma foto mostra Fernando Henrique Cardoso prestando condolências a Lula pela... morte?... ou pelan“ausência de fluxo cerebral” da esposa do seu opositor político?

O mais próximo de uma notícia sobre morte foi a matéria do JN falar em “pêsames” dados pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia e “notas de pesar” pelo presidente do senado Eunício Oliveira e a ex-presidenta Dilma Rousseff. Mas a tautista Globo em nenhum momento admitiu que estava dando a notícia sobre a “morte” de Marisa Letícia Lula da Silva.

A morte em cena no jornalismo


Por que? Segundo relato do veterano repórter José Roberto Burnier, com a fachada do Hospital Sírio Libanês como fundo (o velho clichê de enquadramento para conferir credibilidade ao que o repórter diz), porque o protocolo oficial de constatação de morte cerebral só pode ser feito 18 horas depois da interrupção da sedação. Surpreendentemente, a Globo e toda a grande mídia se apegaram no detalhe técnico de que os médicos não confirmaram a morte, mas sim a “ausência de fluxo sanguíneo”.

No mínimo, a cobertura da Globo foi anômala. Em décadas como jornalista e pesquisador de mídia, esse humilde blogueiro nunca viu a grande imprensa se apegar a “protocolos”. Até então, detalhes apenas conhecidos pelos médicos e desconhecidos do grande público... e dos jornalistas.

Em se tratando de políticos, celebridades e artistas, o sensacionalismo da morte sempre esteve em cena: Ayrton Senna, Lady Di, Tancredo Neves, Getúlio Vargas etc., foram mortes tratadas sem rodeios ou meios termos pela imprensa. Ilações, especulações e obituários antes da hora do anúncio “técnico” sempre foram a regra.

Ayrton Senna: Globo seguiu protocolos?

O que torna anômala a cobertura da Globo é inesperado apego a “protocolos” da medicina, destoando do modus operandi histórico da grande imprensa. Talvez a Globo tenha “tecnicamente” tomado a opção correta. Afinal, jornalista não declara morte. É o médico que o faz e o jornalista apenas noticia.

Porém, na anômala cobertura o que se viu foram repórteres e apresentadores com se vestissem luvas de pelica e pisassem em ovos.

A matéria do JN criou uma situação bizarra: o morto só morre quando o médico confirma que o cadáver morreu! O que as imagens transmitiam eram pesares e rostos consternados. Enquanto a locução se apegava no protocolo no qual, tecnicamente, Dona Marisa Letícia era uma morta-viva.

Por que essa tautista negação da morte? Por que, de repente, baixou o espírito de Hipócrates na redação do telejornalismo global? Ou será foi o espírito de Getúlio Vargas? - aos amigos, tudo. Aos inimigos a Lei (ou, no caso, protocolo).

O Cinegnose vai propor algumas hipóteses desse súbito interesse tautista da Globo em protocolos médicos. Nesse caso, o tautismo crônico da emissora poderia ter sido bem seletivo.

(a) AVC político


Hipótese do jornalista Paulo Henrique Amorim – clique aqui. Para ele, o AVC de Dona Marisa vai para a conta do juiz Sérgio Moro: sua casa foi invadida pela PF de madrugada, o colchão revirado em busca de dinheiro, passaporte ou qualquer coisa, os filhos perseguidos e o marido levado em condução coercitiva. A pressão vivida por ela nos últimos tempos foi irresistível: além de Lula, ela própria foi acusada por “crimes” como, por exemplo, comprar pedalinhos para os netos.

Portanto, todos os eufemismos foram uma estratégia para desvincular a perseguição política ao AVC, evitando qualquer tipo de compaixão para com a vítima e seus familiares.


(b) Lula vai ser preso


O juiz Sérgio Moro está próximo da decisão de mandar prender Lula. Na eminência de ver concretizado seu objeto de desejo político, a Globo não pode involuntariamente humanizar a imagem do futuro e mais importante prisioneiro depois de anos de cobertura exaustiva da Lava Jato.
  
E o que é pior: com a morte de Marisa Letícia, criar empatia na opinião pública com o sofrimento de Lula. O fator reação popular é uma das variáveis calculadas por Moro e sua força tarefa de Curitiba. Sendo a TV Globo o cão Cérbero que guarda o inferno do bombardeio midiático diário, seria um erro fatal e indesculpável.

Por isso, a cobertura deve ser a mais anódina, sedante, paliativa e insignificante possível. Evitar que o drama pessoal de Lula se transforme no pavio que seja aceso com a futura prisão.


(c) Sebastianismo e Eleições 2018


Assim como a Globo jamais fala da Fórmula Indy (produto esportivo da emissora concorrente Band), também deve evitar pautas positivas ou humanas do atual maior inimigo político – no passado era Leonel Brizola. Principalmente com a proximidade das eleições presidenciais no próximo ano.

Os analistas políticos da emissora, assim como o juiz Sérgio Moro, sabem que Lula é a maior expressão moderna do sebastianismo na política brasileira – mito que se arraigou no Nordeste com Antônio Conselheiro no início do século XX e assumiu diversas modulações na política brasileira. A crença de que a morte pode render uma dimensão messiânica a um personagem.

Um exemplo recente foi a morte do candidato à presidência Eduardo Campos pelo PSB (outro em acidente aéreo). A canonização post mortem do candidato revolucionou a campanha, agigantando sua vice, Marina Silva, que se tornou um desafio mais arriscado e inesperado para Dilma Rousseff.

Uma cobertura com viés mais humanizante da morte de Marisa Letícia pela grande mídia poderia ser um tiro no pé: Lula poderia se transformar no herói redimido pela dor da morte da sua própria mulher. O espírito da mulher guerreira incorporado em Lula, o mito condutor da Nação.


(d) Tática diversionista


Essa estratégia é comum nos telejornais da emissora, mas agora parece que sua aplicação está intensificada nesse início de 2017.

Temas desconfortáveis para a Globo, obrigada a cobrir porque, afinal, vivemos numa suposta democracia, são abordados de maneira diluída, muitas vezes de maneira propositalmente confusa e contraditória, para desviar a atenção. A tática do diversionismo é eficaz porque, naturalmente, telespectadores possuem uma recepção muito mais dispersa comparado com outros meios de comunicação – sobre isso clique aqui.

Por exemplo, o aumento das tarifas dos ônibus em São Paulo foi suspensa em decisão liminar do Tribunal de Justiça. O Governo do Estado ignorou e manteve aquilo que chamava de “redução de descontos” nas tarifas (expressão diligentemente reproduzida como um mantra pelo SPTV da Globo). Entre idas e vindas, suspensões e voltas dos reajustes, o noticiário simplesmente abandonou a pauta.

Ou na oportuna morte de Teori Zavascki no Triângulo das Bermudas da política brasileira em Paraty (sobre isso clique aqui) no qual as especulações sobre quem seria o próximo relator das delações da Lava Jato STF desviaram a atenção das investigações sobre as causas do acidente aéreo. Até que o andamento das investigações simplesmente desapareceu da escalada dos telejornais.

O adiamento da palavra “morte” e o inusitado apego aos protocolos médicos, diluíram o conteúdo político do falecimento da Dona Marisa Letícia. Só na edição do dia seguinte do JN, Burnier, novamente com a fachada do Sírio Libanês como fundo, foi autorizado pelos protocolos a anunciar a palavra “morte” definitiva. Uma estranha morte em câmera lenta que ocupou duas edições do telejornal.

No final, o obituário de Dona Marisa Letícia concluiu a tática diversionista: um vídeo como uma espécie de versão à esquerda do clichê “bela-recatada-do lar” da Era Temer – enquanto Lula “viajava” (para quê?), Marisa Letícia ficava em casa “bordando, costurando e estampando camisetas” (qual o propósito?)...


(e) Corrente de Esperança


Não sejamos tão negativos e implicantes com a Globo. Vamos a uma hipótese Pollyana... Quem sabe que esse deliberado adiamento da morte de Dona Marisa Letícia foi uma tentativa de criar uma corrente de fé e esperança de petistas e simpatizantes em frente ao Sírio Libanês. Assim como os fãs de Leandro em frente ao Hospital São Luiz em 1998, que passaram a noite com velas na mão rezando pela cura do astro da música sertaneja diante das câmeras da Globo.

Porém, parece que não deu muito certo: repórteres e câmeras de emissoras de TV foram escrachados por militantes petistas enquanto o desinterino Temer entrava no hospital sob gritos de “assassino”. Temer chegava para prestar condolências a Lula pela morte de Dona Marisa Letícia... ou será que foi pela “ausência de fluxo cerebral”?...

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Curta da Semana: "Being Batman" - o homem que acreditar ser o próprio Cavaleiro das Trevas

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No começo esse humilde blogueiro achava que o curta “Being Batman” (2016), de Ryan Freeman, fosse mais uma sátira sobre o super-herói. Até perceber que o curta é um documentário com um personagem real que vive na cidade de Brampton, em Ontário, Canadá. Um homem que acredita ser o próprio Batman e que os acontecimentos trágicos da sua vida fizeram-no se conectar sincronicamente ao personagem fictício de Bruce Wayne. Todas as noites Stephen Lawrence sai da sua “batcaverna” a bordo de uma réplica do batmóvel do filme de 1989 de Tim Burton para vigiar as ruas da cidade. No curta “Being Batman” Lawrence dá depoimentos sobre a sua vida como Batman. Mostra sua casa transformada em batcaverna, suas armas e a rotina noturna. Isso não é cosplay: Lawrence diz ser o próprio Batman!

Era julho de 2015, estrada 401 em Napanee na província de Ontário, Canadá. Caos no trânsito em um final de domingo quando motoristas retornavam das suas casas de campo. A estrada ficou obstruída por curiosos que observavam uma cena inusitada: Batman, o Cavaleiro das Trevas em pessoa, com seu batmóvel estacionado no acostamento por problemas mecânicos. Capô levantado, Batman pacientemente procurava o problema no motor.

 O Cavaleiro das Trevas era na verdade Stephen Lawrence (que prefere ser chamado de “Batman de Brampton”). Ele estava voltando de um show de caridade em um shopping de Kingston, Ontário, quando ouviu um ruído desconcertante em seu batmóvel. Estacionou e saiu para averiguar qual era o problema, causando todo o alvoroço.

Lawrence, 39 anos, faz mais do que um cosplay de Batman. Ele vive o personagem 24 horas desde os 14 anos. Começou a praticar ninjutsu e colecionar armas marciais. Até o pai morrer e passar por sérios problemas familiares, aumentando ainda mais a identificação com o personagem Bruce Wayne.

O curta documentário Being Batman (2016), de Ryan Freeman, oferece-nos um pequeno vislumbre da vida de Stephen Lawrence – ele é o Bruce Wayne da vida real, completo, com equipamentos e arsenal que varia qualquer cosplayer ficar verde de inveja!

Com um visual impressionante (contando com imagens de um drone e assistente de câmera), o curta acompanha os habituais passeios noturnos pelas ruas da sua cidade e faz uma visita a sua “batcaverna”, repleta de equipamentos, armas e pequenos gadgets como um bat relógio neon e computadores com protetor de tela com a bat marca. E, claro, o painel do batmóvel.


Aliás, o bat veículo foi construído a partir de um velho carro de polícia, um Chevrolet Caprice, com a carroçaria réplica do filme de 1989 de Tim Burton, feita por Glenn McCullagh.

Sincronismos


Assim como as ruas escuras pelas quais Batman cruza todas as noites, há também uma escuridão dentro de Stephen Lawrence: no curta ele faz reflexões sobre os “sincronismos” entre a sua vida e a de Bruce Wayne – as perdas do seu pai e da sua família e a necessidade de usar a roupas de Batman e armas marciais como uma forma de defesa do self diante da sociedade.

No curta, Lawrence argumenta que todos nós mobilizamos defesas internas para enfrentar os problemas do dia-a-dia. Chamamos essas defesas de “personalidade”. Portanto, ele nada mais faz do que expor para todos essas defesas através da roupa de Batman.

Lawrence deixa claro que sabe distinguir entre a realidade e a ficção: para ele, a realidade foi o histórico pessoal de perdas que o conectou com a ficção de Bruce Wayne. “Isso não é uma aula de atuação, não é apenas um personagem, é realmente quem eu sou!”, afirma Lawrence.

A voice-overde Lawrence dirige toda a narrativa, tornando o curta impactante e emocionante para assistir.


Para o diretor Ryan Freeman, “Stephen vive uma vida única e as pessoas rapidamente o julgam como estranho. Ele me disse que 50% das pessoas o consideram louco e a outra metade o acham incrível. Através desse filme, a minha esperança é que o público se conecte com a história de Stephen e todos nós possamos entender um pouco mais um do outro”.

Mas o Batman de Brampton sai todas as noites pela cidade espancando e prendendo criminosos? Bem, estamos no Canadá, e o máximo que Batman faz é encaminhar bêbados para suas casas e ajudar a trocar pneus de carros de motoristas femininas. A polícia local o tolera e permite que ele faça suas rondas noturnas.

Uma fábula real


A questão do curta é: em um mundo que ama seus super-heróis, o que acontece quando um homem assume completamente um desses personagens fictícios? O curta de Freeman não toma partido do debate. Apenas procura um olhar mais interior da rotina dessa lenda urbana canadense.

Mitos e heróis são tão velhos quanto a própria humanidade. Porém, esses personagens sempre viveram em um panteão mítico, divino, religioso ou sagrado, distante da vida real dos mortais. Suas narrativas lendárias sempre serviram para inspirar religiões, filosofias ou até mesmo teorias científicas. Isto é, serviam muito mais como modelos éticos, morais ou mesmo cósmicos para dar sentido às nossas ações na sociedade, às nossas realizações públicas – algo como ter filhos, escrever um livro e plantar uma árvore.


O Batman de Brampton é uma fábula real, o paroxismo das nossas relações com os mitos da cultura pop. Parece que cada vez mais estamos desistindo das nossas vidas e da sociedade para queremos ser os próprios arquétipos. Os mitos que sempre ajudaram a humanidade a fazer a História, estão deixando de nos inspirar para se transformarem em rota de fuga da nossa própria história.

Stephen Lawrence fala que viver o personagem fictício Batman lhe traz uma inesperada liberdade. É uma afirmação sintomática: as suas jornadas noturnas pelas ruas de Brampton é um benefício social ou apenas para o próprio self? Em nome da vigilância da Lei e da Ordem, o Batman de Brampton busca apenas expiar a escuridão interior em rondas noturnas?

A mesma pergunta poderia ser aplicada ao Batman ficcional. Afinal, por que ao invés de colocar a bat roupa para espancar criminosos, Bruce Wayne não usa sua fortuna para financiar cuidados com a saúde e combater a pobreza em Gotham?

Sociólogos como Richard Sennett já denominaram esse fenômeno como um sintoma do declínio da vida pública. O declínio da sociabilidade e da vida pública fariam surgir aquilo que Sennett chamava de “ascetismo mundano”, cujas origens estariam, paradoxalmente, no protestantismo – para alcançarmos a salvação não basta apenas ter fé e uma vida estoica e asséptica. É necessário demonstrá-la, performar para os outros e para Deus sua fé. Como uma espécie de testemunho público da sua fé privada.

Assim como faz diariamente o Batman de Brampton. E assim como histericamente fazem evangélicos e neo-pentecostais bradando sua fé para os outros.


É nesse momento que os limites entre a realidade e a ficção, verdade e mentira começam desaparecer e o simulacro substitui a própria realidade. Na busca da liberdade na ficção, podemos no meio do caminho esquecermos quem realmente fomos um dia. Ou será que é exatamente isso que procuramos, assim como o Batman de Brampton?

Use as legendas ocultas em português do YouTube: clique em detalhes→ legendas→traduzir automaticamente→português. 

"Medo e Delírio em Las Vegas" faz acerto de contas com a utopia psicodélica

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"Medo e Delírio em Las Vegas” (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998) foi o início do acerto de contas do diretor Terry Gilliam com a sua geração (a utopia psicodélica de que as drogas abririam as portas da percepção nos libertando de realidades opressivas), encerrado com o filme “Contraponto” (Tinderland) em 2006. O filme baseou-se no livro homônimo  de Hunter Thompson, o marco do chamado “Jornalismo Gonzo” no qual a ficção seria mais poderosa do qualquer tipo de reportagem objetiva. Mas parece que toda uma geração esqueceu do alerta do escritor maldito Charles Bukowski: atualmente a realidade supera qualquer imaginação literária. Como centro espiritual de uma cultura planetária, Las Vegas incorporou (através da tecnologia) todos os delírios lisérgicos, não mais para libertar, mas agora para fazer as pessoas consumirem e perder dinheiro em mesas de jogos. Mais tarde, toda a indústria do entretenimento colocaria em prática a distopia de Las Vegas. Os heróis lisérgicos dos anos 1960-70 acabaram se transformando em nostálgicos freaks, impotentes diante dos delírios de LSD emulados pelas casas noturnas e raves.

Para o Cinegnoseo Deserto de Nevada, nos EUA, é o centro espiritual da cultura pop irradiada para todo o planeta. Lá estão os três eventos seminais para a cultura do século XX-XXI: a construção de Las Vegas, os primeiros testes com a bomba atômica e a Área 51. E mais a oeste Hollywood e o Vale do Silício como polo irradiador dessa nova espiritualidade pós-moderna.

Las Vegas como o símbolo do hedonismo, superficialidade e fugacidade; a bomba atômica e o medo da irradiação e do apocalipse num mundo que parece não nos pertencer; e Área 51 como o ponto de partida da paranoia e visão conspiratória do mundo.

Em postagem anterior discutíamos sobre esse “centro espiritual” cujos eventos seminais criaram as três formas de constituição da subjetividade na cultura atual a partir de uma mitologia de personagens que descrevem a condição humana nesse mundo: o Viajante, o Detetive e o Estrangeiro. O Viajante, conectado a Las Vegas; o Detetive à Área 51; o Estrangeiro à bomba atômica – clique aqui.

Medo e Delírio em Las Vegas (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998), de Terry Gilliam vai explorar a rica mitologia dessa região do Oeste dos EUA, sob a visão distorcida e alucinatória das drogas dos seus protagonistas em 1972, já no fim da utopia psicodélica dos anos 1960.


O filme baseou-se no livro homônimo de Hunter Thompson, o idealizador do chamado “Jornalismo Gonzo” – um jornalismo experimental no qual o repórter deveria ter em mente que a melhor ficção está muito além de qualquer tipo de jornalismo. Por isso, o jornalista deve cair de cabeça na história e ser o personagem principal dos acontecimentos em uma narrativa em hipérbole.

O livro e o filme de Gilliam é um relato em estado alterado de consciência de Raoul Duke (Johnny Depp) e seu advogado samoano Dr. Gonzo (Benício Del Toro) em suas incursões por Las Vegas deixando um rastro de desordem e quartos de hotéis destruídos.

Paranoia e conspirações


Ao longo do filme assistimos ao desfile de toda a mitologia fundadora da cultura pop planetária: personagens paranoicos às voltas com suspeitas de algum tipo de conspiração (de morcegos que voam no deserto a espionagens de agências governamentais), viajantes que vão de parte alguma para lugar nenhum e estranhos em uma terra que parece ser de ninguém.

O curioso no filme é o seguinte: em si a cidade de Las Vegas, com luzes feéricas e cassinos claustrofóbicos, propositalmente busca alterar o estado de consciência de seus visitantes para que consumam, joguem e se esqueçam do mundo real – afinal, “o que se faz em Vegas, fica em Vegas”, diz o famoso lema. Imagine então perambular por uma cidade lisérgica em estados lisérgicos de consciência induzidos por dezenas de papelotes de mescalina, cocaína em saleiros e frascos de éter puro.

Isso é o que Terry Gilliam pretende explorar com o filme: o sonho americano, cuja síntese é Las Vegas com seus medos de delírios (Área 51 e bomba atômica), visto pelo olhar distorcido por drogas capazes de produzir estranhamento com aquele mundo que nos convida e quer nos envolver – como o sonho americano pode se tornar aterrorizante, estranho e alienante.

Hunter Thompson ao lado de Johnny Depp

O Filme


Duke, acompanhado do seu advogado Dr. Gonzo, dirigem um carro conversível alugado pelo deserto, na direção de Las Vegas. Duke (o alterego do Jornalismo Gonzo de Thompson) vai cobrir a célebre corrida de motocicletas no deserto chamada Mint 400 para a revista Sports Illustrated. Mas vai acabar ficando por lá para também cobrir uma convenção de agentes policiais que lidam com crimes de narcóticos.

Ironicamente, no porta malas do carro um arsenal de drogas que faria corar qualquer traficante: cocaína, haxixe, LSD, éter, mescalina, speed em trouxinhas, pílulas, papelotes, seringas, acompanhados de garrafas de rum e tequila.

Naquele porta-malas está o substrato químico que fez o sonho psicodélico dos anos 1960, em um carro como fosse uma espécie de bomba transportada para o centro espiritual do sonho americano. Duke e Dr. Gonzo são verdadeiros homens-bomba, 24 horas em estado alterado de consciência. Como fala o título do livro/filme, prontos para desmascarar o sonho americano, revelando o que há de medo e delírio por trás dele.

E com tantas drogas e potenciais estragos que irão provocar, nada melhor que ter a companhia de um advogado. De maneira hilária, Dr. Gonzo sempre fala: “na condição de seu advogado...”, antes de sugerir qual a droga mais oportuna para Duke em cada evento.


Gilliam transmite tudo isso em um incrível estilo visual, bamboleante, com uma câmera sempre em grande angular transmitindo estados de alienação, estranheza e paranoia. Para os protagonistas, não estão ali como meros repórteres da Sports Illustrated. Eles estão no centro de algum tipo conspiração (os eventos são sempre narrados em off por Duke, como nos filmes de detetive noir) que nem eles mesmos sabem de que natureza ou perpetrado por quem.

No caminho acabam cruzando com um estranho jovem-zumbi (Tobey Maguire) que os assusta de alguma maneira. Em com a adolescente Lucy (Christina Ricci) com quem Dr. Gonzo tem um breve flerte e fica paranoico, achando que involuntariamente drogou uma menor de idade.

Viajantes, Detetives e Estrangeiros em Las Vegas


A fórmula narrativa gnóstica está presente em Medo e Delírio em Las Vegas: os protagonistas são Viajantes (vieram de algum lugar impreciso), Detetives (paranoicos interrogam agressivamente até uma assustada camareira do hotel) e Estrangeiros (tudo ao redor é estranhamento e alienação).

Nesse filme, Gilliam começa a fazer um acerto de contas com a utopia psicodélico da sua geração – que mais tarde no filme Contraponto (Tideland, 2006 – clique aqui) encerraria: algo deu errado na missão desses homens bomba enviados para detonar o sonho americano.

O quê deu errado? Thompson com o seu Jornalismo Gonzo, Duke e o advogado Dr. Gonzo parecem não ter ouvido a sinistra profecia do escritor maldito Charles Bukowski de que a realidade superaria em muito a imaginação da ficção.


O leitor perceberá que em muitas cenas do filme quartos e cassinos possuem tapetes e papéis de parede com estranhas estampas em cores psicodélicas e formas onduladas. São estampas que emulam as alucinações psicodélicas do LSD. Isto é, Las Vegas, por si só, já é um gigantesco delírio lisérgico. Só que produzido não para libertar a mente – ao contrário, para fazer seus visitantes consumirem e perderem dinheiro nas mesas de jogos.

Assim como na vida pessoal de Hunter Thompson, o livro foi a passagem por uma linha pessoal que iniciou uma trajetória incoerente até o seu refúgio em Woody Creek, Colorado, perdido nos seus prazeres, também Gilliam quer com o filme descrever o fim da utopia da sua geração.

De como o sonho americano acabou subliminarmente absorvendo todos os super estímulos produzidos pelas drogas que supostamente liberariam consciências, absorvendo-as por meio da tecnologia e sociedade de consumo – por exemplo, no final da vida o papa do LSD, o Dr. Timothy Leary falava que os computadores substituiriam o barato das drogas lisérgicas.


O livro e o filme estão ambientados em 1972 (acompanhamos nos monitores de TVs as imagens do presidente Nixon e cogumelos nucleares). No final daquela década a tecnologia subliminar da lisérgica Las Vegas já estaria presente em todas as discotecas do mundo com seus raios laser, luzes estroboscópicas e neons psicodélicos. Era a moda Disco em casas noturnas nas quais não eram mais necessárias drogas lisérgicas: a tecnologia já produzia o efeito por imersão.

Agora outra droga era necessária, uma droga mais individualista e narcísica: a cocaína, para manter corpo e mente ligados e dançando a noite inteira.

Uma nova droga e um novo mundo, que o filme Scarface (1983) de Brian de Palma retratou bem conectando a onda Disco com os novos cartéis de drogas.

Figuras como Duke e Dr. Gonzo se tornaram nostálgicos freaks de uma utopia destruída pela ingenuidade de acreditar que os tigres eram apenas de papel.


Ficha Técnica

Título: Medo e Delírio em Las Vegas
Ditetor: Terry Gilliam
Roteiro: Terry Gilliam, Alex Cox baseado no livro homônimo de Hunter Thompson
Elenco:  Johnny Depp, Benício Del Toro, Tobey Maguire, Christina Ricci
Produção: Rhino Films, Shark Productions
Distribuição: Universal Home Entertainment
Ano: 1998
País: EUA

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Os mortos da escravidão ainda assombram o Brasil em "O Diabo Mora Aqui"

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“O Diabo Mora Aqui” (2015), de Dante Vescio e Rodrigo Gasparini, filia-se a uma nova safra de filmes de terror brasileiros como “Quando Eu Era Vivo”, “Trabalhar Cansa” e “Mar Negro” – produções nacionais que procuram uma terceira via entre a paródia e o “filme de arte”: filmes com “cara de cinema” por seguirem as convenções do gênero, porém com uma abordagem brasileira com folclore, religiosidade e lendas urbanas nacionais. Filmes que revelam a essência do gênero do terror, principalmente o “exploitation”: um atalho para o inconsciente coletivo de um país e de uma cultura. No caso de “O Diabo Mora Aqui”, com a clássica narrativa de jovens em uma fazenda num lugar remoto no interior de São Paulo que sem querer libertam o Mal, revela como o Brasil supostamente moderno e globalizado ainda é assombrado pelos fantasmas do seu inconsciente coletivo: o passado escravocrata que não consegue ser redimido condenando-nos ao ciclo vicioso de ódio e autodestruição.

No cinema o gênero terror sempre foi uma espécie de atalho para o inconsciente seja da cultura, seja dos arquétipos da espécie humana. Lembre dos zumbis de George Romero no seminal A Noite dos Mortos Vivos (1968), uma incisiva crítica ao racismo no momento em que os EUA explodiam em conflitos raciais; O Massacre da Serra Elétricasimbolizando a “América Profunda”, o inconsciente cultural da intolerância dos red necks; ou todos os dramas edipianos (sexualidade e culpa) no terror exploitation (sub-gênero caracterizado por sexo, violência, muito sangue e bizarrices) nos filmes dos monstros Jason e Fred Krueger.

Enquanto isso no Brasil, o terror sempre teve esse atalho negado primeiro por filmes que, voluntária ou involuntariamente, faziam paródia do gênero como os de Zé do Caixão ou o chamado “terrir” de Ivan Cardoso – A Maldição da Múmia ou As Sete Vampiras.

E segundo, o horror abordado como “filme de arte” no qual o medo é abandonado em nome de um estilo como As Filhas do Fogo (1978) de Walter Hugo Khouri.

Ou seja, um terror reprimido por camadas de metalinguagens que não deixam vir à tona toda a força inconsciente do medo.

Em tempos recentes, isso parece estar mudando no cinema brasileiro com produções que buscam uma, por assim dizer, terceira via: fizer filmes “com cara de cinema” no qual as convenções do gênero que estamos acostumados a ver nas produções estrangeiras são levadas a sério, porém com um tratamento brasileiro – a abordagem de temas do folclore e lendas urbanas nacionais.


O inconsciente da classe média 


Filmes recentes como Trabalhar Cansa (clique aqui) ou Quando Eu Era Vivo (clique aqui), revelam o inconsciente da classe média urbana brasileira – a religiosidade e lendas urbanas mescladas com os problemas cotidianos.  Ou ainda as lendas urbanas e folclore explorados fora dos centros urbanos tematizadas por Rodrigo Aragão em Mar Negro (2013) e A Noite do Chupacabras (2011).

Paradoxalmente, são filmes com as convenções do terror exploitation hollywoodiano, mas falam muito mais do inconsciente cultural brasileiro do que rolos e rolos de filmes com paródias e estilizações que tentam emular o existencialismo europeu.

O Diabo Mora Aqui (2015) é mais um bem vindo filme dessa nova safra do terror nacional, dirigido por Dante Vescio e Rodrigo Gasparini. Premiado pelo Festival FilmQuest nos EUA e selecionado em festivais do cinema fantástico pelo mundo como o Sitges (Catalunha), o filme arrancou ovação da plateia da 19a Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2016, nos seus assustadores minutos finais.

O filme pega um formato bem conhecido: a narrativa do horror da cabana isolada em um lugar remoto na qual um grupo de jovens irá involuntariamente libertar o Mal. Mas trata esse clichê hollywoodiano através de uma ferida ainda não cicatrizada do inconsciente nacional: o passado escravocrata.


Mais do que isso: como o Brasil jovem pretensamente moderno e globalizado ainda é assombrado pelos fantasmas das vítimas da escravidão. Eles ainda estão lá, presos nos porões e quartos bem trancados do “Brasil profundo” à espera de que o ingênuo otimismo da modernidade os liberte para assombrar o futuro.

O clichê hollywoodiano exploitedé transposto para uma fazenda colonial do interior de São Paulo, isolada no meio do nada. Quatro amigos vão passar o final de semana naquele local, sem saber que no plano astral está sendo ainda travada uma luta não do Bem contra o Mal, como seria nos padrões maniqueístas do cinema comercial. Mas por uma guerra de vingança e destruição mútua entre um antigo senhor de escravos, conhecido pelas atrocidades com os negros, e suas vítimas que lhe impuseram uma terrível maldição no final da vida. Uma batalha sem fim na qual espíritos vingativos, magia negra e vodu ameaçam arrastar o grupo de jovens que considera tudo apenas mais uma lenda urbana.

O Filme


Uma das referências óbvias do filme é Ouija – Jogos dos Espíritos (2014). Quatro jovens em uma fazenda isolada da era colonial se divertem assustando um ao outro com as lendas que cercam aquele local. Tal como no jogo Ouija, decidem descer no porão para invocar o espírito da antigo proprietário, conhecido como Barão do Mel – Ivo Müller.

Lá estão as marcas da vingança que os escravos impuseram ao Barão. Produtor de mel com dezenas de colmeias na fazenda, aterrorizava física e mentalmente os escravos, gerando muitos filhos ilegítimos com suas esposas e mães. Para o Barão, a sociedade seria como uma colmeia: o senhor deve dominar a rainha para manter todas as abelhas obedientes exercendo cada uma cegamente suas funções.


Farto de sentir medo, um escravo chamado Luciano matou o Barão, enquanto a mãe matava o filho bastardo recém-nascido. Seus espíritos estariam aprisionados naquele porão.

Os descendentes até hoje acreditam que devem uma vez por ano impedir o renascimento daquela criança, que ressuscitaria o Barão do Mel das paredes do porão,  martelando um enorme prego no lugar onde o bebê está enterrado.

Para aqueles jovens modernos e antenados, tudo não passa de mais uma lenda do folclore e brincam com o ritual como fosse um tabuleiro ouija. Mas descobrirão da pior maneira possível que aquele final de semana coincide com a noite na qual os descendentes dos escravos terão que renovar o ritual de maldição.

Mas o Barão do Mel, preso nas paredes, tem um plano: manipular a mente da jovem psicologicamente problemática do grupo (Alexandra – Mariana Cortines), convencendo-a de matar Sebastião (Pedro Caetano) e Luciano (Felipe Frazão), os jovens descendentes dos escravos que invadirão a casa da fazenda para renovar a maldição.

Crítica social


Embora O Diabo Mora Aqui beba na fonte das convenções do terror exploited, a narrativa não cai no maniqueísmo da luta do Bem contra o Mal. O grupo de jovens, o Barão do Mel e espíritos e descendentes dos escravos transitam entre o niilismo, preconceito, vingança e autodestruição. Não há heroísmo, lutas épicas ou libertação: há apenas um eterno retorno como se aquela região vivesse um ciclo vicioso de dor e ódio.

Estamos no choque entre passado e futuro: um grupo de jovens que representa o Brasil moderno e urbano – o jovem veste uma camiseta com estampa do personagem Spock de Jornada nas Estrelas, as referencias da cultura pop nas conversas, a jovem Alexandra com atitude gótica e alternativa etc.

E no porão da casa grande da fazenda o inconsciente de um País que não consegue se redimir das suas atrocidades do passado.


A grande virtude do filme é a sua evidente crítica social de um País que não consegue alcançar o futuro: os jovens urbanos, supostamente filhos da modernidade, ecoam os mesmos preconceitos do passado rural e escravocrata. Assustados, os jovens trancam as portas achando que Luciano e Bento são assaltantes que querem roubar a fazenda.

Um passado que não consegue ser redimido, simbolizado, tornado consciente e evocado em seus próprios termos. Os fantasmas do passado apenas tratados ou pela negação (a escravidão acabou em algum lugar no século XIX) ou pela paródia, ironia ou cinismo – falar em tom pós-modernoso sobre “lendas urbanas” enquanto os “fornecedores” se encontram com o Brasil urbano através de elevadores e entradas “de serviço”.

 Em tempos atuais de rebeliões e massacres em presídios, saques em shoppings de centros urbanos e racismo e intolerância diariamente estampados nas high tech redes sociais, o título do filme adquire um novo sentido: de fato, “O Diabo Mora Aqui”!


Ficha Técnica

Título: O Diabo Mora Aqui
Ditetor: Rodrigo Gasparini, Dante Vescio
Roteiro: Guilherme Aranha, Rafael Baliú
Elenco:  Pedro Caetano, Pedro Carvalho, Mariana Cortines, Clara Verdier, Ivo Müller, Sidney Santiago
Produção: Marluco Visão
Distribuição: Pandora Filmes
Ano: 2015
País: Brasil

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Em "Black Mirror" a tecnologia é espelho sombrio de nós mesmos

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A narrativa corporativa e publicitária sobre as tecnologias da informação sempre foi a da “estrada para o futuro”, uma estrada que supostamente nos conduzirá ao paraíso da comodidade, no qual todo conhecimento  que necessitarmos estará ao alcance de um clique ou de um toque na tela. Mas a série britânica Black Mirror (2011- ) vai na contra mão: sem ser tecnofóbica, mostra futuros próximos, mas estranhamente atuais, onde paradoxalmente a tecnologia evoluiu tanto que atingiu um ponto de inutilidade e disfuncionalidade. Os seis episódios da terceira temporada de 2016 mostram o “vanish point” de gadgets como mídias sociais, realidade aumentada, dispositivos móveis e games: o ponto de viragem tecnológico no qual a racionalidade se converteu em mal estar psíquico, crime, ódio e anomia. A expansão das redes de informação foi muita mais rápida que a produção de conteúdo (conhecimento). E a lacuna foi preenchida por espelhos sombrios de nós mesmos.

A série britânica Black Mirroré certamente a produção mais relevante da atualidade. Relevante porque é estranha: o tom da narrativa de cada episódio é incerto e desconcerta o espectador. A princípio é uma série de ficção científica. Mas não vemos civilizações interestelares, cenários pós-apocalípticos ou astronautas e cientistas em complicadas missões tentando salvar o dia, o planeta, a galáxia.

Lembra de início as atmosferas da clássica série Além da Imaginação, só que mordazmente engraçada, com uma inteligência peculiar que muitas vezes resvala no humor negro.

Diferente do clássico gênero sci-fi sobre mundos distantes no tempo, cada episódio retrata um futuro próximo transformado pelas tecnologias da informação. Cada vez que assistimos à série,  temos sempre essa pergunta mente: já estamos vivendo no mundo de  alguns desses episódios?

Black Mirror parece com o nosso mundo aqui e agora – só que apenas um pouco pior. Por isso a série é erroneamente descrita como “distópica”. Qualificar Black Mirrordessa maneira é dizer que ela fala de futuros negativos. Pelo contrário, a série fala sobre o nosso presente sob uma perspectiva estranha: a perspectiva da hipo-utopia– as tecnologias da informação não criam futuros, mas apenas desdobramentos sobre elas mesmas. Extrapolam de forma hiperbólica condições dadas no presente – sobre esse conceito clique aqui.

Se pensarmos que os computadores atuais são tecnologias com a mesma arquitetura concebida nos anos 1940 (memória, processador, periféricos, interface etc.), apenas que cada um desses componentes se desdobraram sobre si mesmos em performance, velocidade e capacidade de armazenamento, compreenderemos a proposta de Black Mirror.


Tecnologia como espelho


Os seis episódios da terceira temporada confirmaram esse insight hipo-utópico sobre as tecnologias – a evolução tecnológica não produz distopias sobre Estados autoritários ou máquinas sencientes que se revoltam contra seus criadores, mas mal estar psíquico, anomia, crime, chantagem e ódio. A tecnologia como espelho que reflete as mazelas humanas.

Olhar de Black Mirror parece sempre buscar na evolução das tecnologias de informação um vanish point, o ponto de inversão ou entropia de todos os sistemas – aquilo que uma vez o pensador francês Jean Baudrillard chamou de “hipertelia” (de “hiper”, sobre, além, fora das medidas, e “telos”, de resultado final, conclusão): um certo ponto no desenvolvimento que, sendo ultrapassado, torna as tecnologias totalmente disfuncionais. Nesses momento, os efeitos tornam-se “malignos”, perversos e crimenógenos – sobre esse conceito clique aqui.

  Esse ponto de viragem parece aquilo que busca entender cada um dos episódios dessa terceira temporada.

Redes sociais e games: totalitarismo e inconsciente


O tema do primeiro episódio “Nosedive” é bem familiar para nós aqui no presente: acompanhamos uma mulher chamada Lacie que neuroticamente monitora como está sua avaliação nas redes sociais. Uma sociedade na qual os ratings de mídia social têm uma influência totalitária.

Se na atualidade o nosso círculo de amizades em redes sociais se limita a verificar o número de “likes” a cada coisa que postamos, em “Nosedive” a expansão das mídias sociais chegou ao vanish point no qual as amizades se converteram em controle social: cada pessoa luta para aumentar o seu score nas mídias sociais. Não temos mais “likes” mas avaliações que uma pessoa faz do comportamento das outras no dia-a-dia no trabalho e lazer. Um encontro no elevador pode ser uma oportunidade de subir ou cair a nota. Por isso, todos são representam a si mesmas para os demais, na esperança de agradar e a nota subir.

Que a vida social consiste em papéis sociais performados por máscaras públicas, todos nós sabemos. Mas as mídias sociais levam isso ao paroxismo. Da utopia da inteligência coletiva, a Internet acabou criando o mundo solipsista de “likes” e expurgo de tudo que é dissonante para um círculo fechado de amizades.

Porém, Black Mirror extrapola para a sociedade como um todo por meios dos dispositivos móveis: alugar um carro, tomar um avião no aeroporto ou participar de uma simples festa de casamento vai depender do seu score nas mídias sociais – o quanto você agrada ou não as pessoas ao redor.

Totalitarismo light, soft, em tons pastéis. Qual o ponto de viragem aqui? O solipsismo tecnológico da atualidade (o chamado “efeito-bolha) converte-se em totalitarismo capilarizado pelos smartphones.

O segundo episódio “Playtest” aborda o universo imersivo dos games atuais/futuros. Um turista americano com problemas financeiros para poder voltar à casa da sua mãe nos EUA aceita um trabalho em que testará um novo e revolucionário game. Um jogo que explora a interface neuronal/eletrônica que se mostrará perigosa ao apagar as fronteiras entre o jogo e a realidade.

Mais uma vez temos o vanish point da hipertelia: a atual obsessão pela melhoria da resolução imersiva nos games poderá chegar perigosamente no momento em que o jogo aprenderá com o próprio material inconsciente do jogador. Dessa vez não mais se trata de apagar as fronteiras entre jogo e realidade, mas entre jogo e inconsciente. Os pesadelos e fantasmas do inconsciente absorvem o próprio jogo, transformando-o num contínuo pesadelo sem ter por onde sairmos.


O appeal criminal das tecnologias


“Shut Up and Dance” temos a hipertelia elevada a um outro nível: o criminal. Quando o jovem Kenny cai em uma armadilha on line (através da web cam do laptop, um site pornô o filma se masturbando) ele é chantageado e obrigado a participar de um plano criminoso, auxiliado por outras pessoas que também estão sendo chantageadas on line.

A conclusão do episódio é alarmante: como os nossos pequenos pecados praticados em uma mídia que constantemente confunde o público com o privado, podem ser armadilhas armadas por uma vasta rede de crimes e chantagens em um futuro próximo.

Novamente, o ponto de viragem tecnológico: das esperanças da Internet produzir a “inteligência coletiva” (propagada por pesquisadores como o francês Pierre Levy), sua expansão tecnológica muito maior do que a expansão de conteúdo, criou uma imensa lacuna ocupada por todas mazelas humanas: ódio, perversões, crimes etc. A tecnologia expandida ao ponto de inutilidade e disfuncionalidade.

Parece que a sombria profecia de escritores libertinos do século XVIII (como Marquês de Sade), de que um dia as perversões privadas se converteriam em virtudes públicas, foi realizada com um quê a mais: o crime.


O pós-morte: a festa que nunca termina


“San Junipero” é o mais, por assim dizer, “agridoce” episódio. Estamos em uma pequena cidade no ano de 1987 (a reconstituição musical, moda, estilo e comportamental é primorosa). Uma tímida garota e outra extrovertida e festeira se encontram na balada. Um par improvável mas que construirão uma sólida amizade que desafiara as leis do tempo e do espaço.

Sem querer criar um spoiler, o tema desse episódio são as correlações entre a morte e tecnologia em um viés bem tecnognóstico: mundos virtuais que poderão se tornar as nossas últimas moradas. O céu não mais religioso, místico ou etérico, mas o céu construído por terabytes no qual nosso espírito fará o upload final para a vida eterna.

O ponto de viragem tecnológico é o momento no qual a racionalidade se converte em misticismo. A razão não mais comandará o progresso tecnológico, mas o mítico desejo da imortalidade. Uma imortalidade como uma espécie de sonho lúcido resultante da somatória das nossas referencias culturais-midiáticas – algo parecido com Vanilla Sky, 2001.

Esse é o episódio mais enganador da terceira temporada: por trás de uma emocionante narrativa de amor e amizade, esconde-se algo sinistro – a Razão que abandona a utopia do conhecimento e a espiritualidade que abandona qualquer pretensão transcendente. Quando Razão e Espiritualidade desaparecem, surge o niilismo e solipsismo: a vida pós-morte como uma festa que nunca termina.


O mapa substitui o território


“Men Against Fire” talvez seja o episódio mais próximo de uma distopia clássica: em um futuro totalitário, soldados têm a missão de perseguir e matar perigosos seres mutantes que apavoram uma comunidade. Chamados de “baratas”, são humanos cujo DNA defeituoso o transformou em assustadores seres que podem infectar a todos. Por isso devem ser caçados até o extermínio completo.

O episódio lida com outra tecnologia já presente entre nós: a realidade aumentada – união tecnológica entre o real e o virtual através de gadgets atuais como, por exemplo, o Google Glass ou games no smartphone como Pokémon Go. Nesse episódio, a realidade virtual é produzida por meio de implantes neuronais.

Outro vanish point de Black Mirror: as “máscaras”, como é referida a realidade aumentada no episódio, são tão efetivas e realistas que substituem a percepção real – visão, olfato etc. O mapa substitui o território, o simulacro conquista a realidade criando inimigos virtuais para estimular os soldados a puxar o gatilho das armas. E criar um mundo irreal privado em tons pastéis como prêmio pelos serviços militares prestados.


Julgamento e Castigo


O último episódio “Hated in Nation” é sem dúvida uma conclusão para a terceira temporada: julgamento e castigo por todos os pecados tecnológicos dos protagonistas dos episódios anteriores.

  Como sempre em um futuro próximo, uma detetive da polícia londrina e sua aprendiz investigam uma série de mortes que conduz a um sinistro link com as mídias sociais. Em comum, todas as vítimas foram vítimas do ódio em redes sociais: alguém está criando um ranking das pessoas mais odiadas na nação, em uma game chamado “Jogo das Consequências”.

Uma jornalista que ofendeu um cadeirante ativista  e um rapper que ridicularizou o vídeo de um fã na Internet são alvos de ódio nas redes sociais, culminando com estranhas e agônicas mortes.

Aqui o leitor perceberá a retomada do tema latente em toda a terceira temporada: as tecnologias de informação se expandem, convertem-se em poderosas redes que integram o cotidiano e nossas vidas privadas. Mas o conteúdo (conhecimento, “inteligência coletiva” etc.) dessas redes não se expandem com a mesma velocidade. Por isso, a lacuna será sempre ocupada com o pior da natureza humana: ódio, crimes, solipsismo, niilismo.

O ponto de hipertelia da expansão tecnológica conduz o suposto progresso a um ponto de inutilidade e disfuncionalidade. O momento no qual os gadgets tecnológicos se converterão em espelhos sombrios de nós mesmos.


Ficha Técnica

Título: Black Mirror (série)
Criador: Charlie Brooker
Roteiro: Charlie Brooker, William Bridges
Elenco:  Bryce Dallas Howard, Wyatt Russell, Alex Lawther, Gugu Mbatha-Raw, Malachi Kirby, Kelly MacDonald
Produção: House of Tomorrow, Channel 4, Zeppotron
Distribuição: Channel 4, Netflix
Ano: 2016
País: Reino Unido

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Sete filmes que anteviram a crise da segurança no Espírito Santo

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O cinema e o audiovisual parecem ter o estranho poder de prever cenários futuros: a eleição de Donald Trump, o atentado ao WTC em 2001, o atentado na Maratona de Boston em 2013, a hegemonia econômica da China etc. em filmes e séries como “”Os Simpsons, “Americathon” ou “Lone Gunmen”. No auge do neoliberalismo de Reagan e Thatcher nos anos 1980, filmes como “Robocop” e “Max Headroom” apresentavam futuros distópicos, efeitos colaterais das políticas de austeridade e privatizações que agora acompanhamos ao vivo nas ruas do Estado do Espírito Santo – no vazio do poder público sucateado, as ruas são dominadas por crimes, saques e assassinatos. O Exército chegou para ocupar as ruas. Mas será que o próximo passo, seguindo a cartilha neoliberal, é a privatização das forças de segurança, assim como a OCP (“RoboCop”), MNU (“Distrito 9”), Tetravaal (“Chappie”) ou a NYPC (“From The Future With Love”)? Acompanhe a lista de sete filmes que anteviram cenários futuros nos quais o Brasil está entrando.

Cidadãos presos nas suas casas, estocando comida diante dos monitores de TV acompanhando as declarações do governador e ministros perplexos e aparvalhados. Lá fora, nas ruas, os mortos já ultrapassam quase uma centena, enquanto supermercados são saqueados à luz do dia. Vê-se famílias de classe média empurrando nas ruas carrinhos de supermercado apinhados com produtos dos saques – alimentos e eletrodomésticos. Ao mesmo tempo, pessoas são arrancadas de dentro dos seus carros. Automóveis que serão usados para a próxima ação de grupos armados.

O Exército chega para tentar controlar o caos. Soldados armados podem ser vistos fazendo blitz aleatórias. Tanques e veículos blindados surgem nas ruas para tentar manter a lei e a ordem. Demonstram estar tão perdidos quanto a população.

Parece que estamos descrevendo alguma sequência de um filme catástrofe como Guerra dos Mundos ou pós-apocalíptico como Mad Max. Mas tudo isso está acontecendo nesse momento no Estado do Espírito Santo, efeito do aquartelamento da polícia militar, impedidos de sair dos batalhões pelas suas famílias que protestam pelo não pagamento de salários e benefícios.

O Espírito Santo era uma Estado que seguia à risca a cartilha neoliberal da “austeridade” (eufemismo para cortes de investimentos para tudo que tenha a ver com saúde, segurança, educação e cultura), um exemplo de responsabilidade fiscal vendido para o restante do País. Mas agora está imerso numa espécie de guerra civil.

Familiares de policiais de outros estados, como Rio de Janeiro e Pará, começam a seguir o exemplo capixaba e protestam diante dos quartéis, ameaçando estender o caos para o restante do País.   

 Ao vivo acompanhamos as consequências do neoliberalismo que, mesmo os países que deram origem a essa doutrina econômica (o thatcherismo britânico e os chamados “Chicago Boys” nos EUA), estão relativizando a implementação ao pé da letra das suas políticas.

Os "Chicago Boys" nos anos 1950: nem eles imaginavam sua cartilha aplicada ao pé da letra

A cartilha literal e selvagem


Enquanto isso no Brasil, querendo ser mais realista que o próprio rei, aplica-se a cartilha de forma selvagem e irrefletida.

A partir dos anos 1980, em pleno auge da doutrina neoliberal com Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher no Reino Unido, Hollywood produziu muitos filmes que apresentavam uma crítica a essa ortodoxia econômica: futuros distópicos nos quais as corporações eram mais fortes do que o próprio Estado, enquanto nas ruas a polícia privatizada tentava manter o caos em cidades que caiam em pedaços pela ausência do poder público.

Robocop (1987) e Max Headroom (1985) são exemplos de filmes que já antecipavam o futuro que estamos apenas começando a experimentar. O pior é que no nosso caso brasileiro, como país periférico, é onde a receita neoliberal será aplicada de forma mais literal e selvagem como começamos a acompanhar com coisas como “PEC do fim do mundo” e toda uma geração que será condenada a morrer sem jamais ver benefícios trabalhistas e previdenciários.

Como já discutimos em postagem recente, o cinema e o audiovisual parecem ter uma incrível capacidade para antecipar cenários futuros como, por exemplo, atentado de Nova York (The Lone Gunmen, 2001), eleição de Donald Trump (Os Simpsons, 2000), atentado na Maratona de Boston (Family Guy, 2013), o colapso do Comunismo e a atual supremacia econômica da China (Americathon, 1979) entre outras produções – sobre isso clique aqui.

Esse humilde blogueiro preparou uma lista de sete filmes que anteveem as visões distópicas que começam a se materializar no Brasil. Estamos às portas das distopias neoliberais previstas por (pasmem!) Hollywood e a indústria audiovisual dos EUA.

1. Robocop (1987)


O filme é uma dura crítica ao urbanismo neoliberal. Numa pós-industrial e decadente Detroit, o poder público cai aos pedaços, criminalidade e drogas dominam as ruas e policiais são assassinados, trabalhando sobrecarregados e com parcos salários mantendo forças de segurança sucateadas pelo Estado. Policiais ameaçam greve depois do assassinato de outro oficial.

Mas a corporação Omni Consumer Products (OCP) tem outros planos: substituir o poder público e, sob os escombros da velha Detroit, construir “Delta City”, uma comunidade com segurança, limpeza e ordem para aqueles que disponham de dinheiro para pagar.

Mas a pedra no sapato da OCP são as forças policiais e sua irritantes exigências por direitos trabalhistas. Um jovem executivo yuppie tem a solução: privatizar a segurança através do programa RoboCop com autômatos fortemente armados que substituirão a velha força policial. Afinal, robôs são mais confiáveis – não têm famílias, não fazem greves, não têm sindicatos e nem direitos como a exigente força de trabalho humana.

RoboCopé a metáfora entre o policial humano público e a máquina corporativa privada. Numa velha Detroit dominada por gangues, traficantes e saqueadores enquanto o poder público é propositalmente desmantelado para que a OCP reconstrua a cidade. Para aqueles que têm dinheiro. Bem vindo ao futuro brasileiros!

2. Max Headroom: 20 Minutos no Futuro (1985)


Novamente o urbanismo neoliberal da era Reagan-Thatcher: uma cidade distopica com ruas apinhadas de lixo, sem tetos, gangues punks e traficantes sob céus poluídos. A única coisa que se distingue imponente no skyline de ruínas á o prédio da emissora de TV Rede 23.

Amedrontados, os cidadão não saem de casa. Com o altíssimo desemprego, os cidadãos passam seus dias assistindo à hegemônica Rede 23. Até que misteriosamente um telespectador morre: sua cabeça explode diante da TV.

O repórter Edson Carter descobre que a poderosa Rede 23 está testando um invento subliminar chamado “blipvert” para evitar troca de canal ou, simplesmente, impedir que o telespectador desligue a TV. Com as ruas dominadas pelo caos, já que não se vê a mínima atuação de algum poder público, os cidadãos estão vulneráveis aos terríveis efeitos colaterais dos blipverts.

Qualquer semelhança com a aliança entre o sucateamento do poder público brasileiro e o sistema de comunicação hegemônico da TV Globo não será mera coincidência. Max Headroom anteviu a perversa aliança entre neoliberalismo e mídia. Sobre o filme clique aqui.


3. Batman (1989)


Em pleno auge da aplicação da cartilha neoliberal nos EUA e Reino Unido, o cinema dos anos 1980 foi próspero em apresentar paisagens urbanas em ruínas pela decadência do poder público diante das corporações e do crime organizado.

Batman de Tim Burton apresenta o futuro: o Estado Gotham City, o paroxismo dos sonhos neoliberais. Uma cidade escura e sombria na qual o Estado sumiu, a polícia é corrupta e o crime organizado apavora os cidadãos para que se isolem nas suas casas, deixando as ruas livres para a ação do crime.

Quem salvará Gotham City? O poder público entrega os destinos da cidade ao milionário Bruce Wayne e a sua Fundação de caridade que leva seu nome. Secretamente ele é Batman, um mascarado vigilante, justiceiro e atormentado que parece não buscar justiça, mas vingança.

É a síntese dos sonhos neoliberais: uma sociedade autorregulada pelo darwinismo social enquanto uma fundação privada cuida dos excluídos, doentes e abandonados à sorte.

Sintomaticamente exemplares de Batman apareciam nas grandes manifestações de 2013-14 e nos panelaços da Avenida Paulista, em São Paulo. Assim como justiceiros armados nas ruas do Estado do Espírito Santo, contribuindo com o centenário número de mortos.


4. Distrito 9 (2009) 


  O filme é uma grande metáfora de como a Globalização das políticas neoliberais produz exclusão, precarização do trabalho, tráfico de armas e drogas. Uma gigantesca nave alienígena chega à Terra e paira imóvel sobre Joanesburgo, África do Sul. A nave trás milhares de extraterrestres artrópodes que se transformam em refugiados, destinados a um campo do governo chamado “Distrito 9”.

Incapaz de lidar com o problema, o governo sul-africano contrata uma empresa privada chamada Multinational United (MNU). Mas na verdade a empresas está interessada nas armas alienígenas, pensando na privatização da guerra em escala mundial através de mercenários da MNU.

Racismo, apartheid e segurança urbana precarizada são os temas de Distrito 9. Novamente o viés das distopias como Robocop: sucateamento do poder público e a entrada em cena dos interesses corporativos provados. Sobre o filme clique aqui.


5. Chappie (2015)


Do mesmo diretor de Distrito 9, Neill Blomkamp. Diferente de Distrito 9, agora o lixão, favelas e pobreza se estenderam por toda Joanesburgo. Uma opressiva força policial mecanizada da empresa paramilitar chamada Tetravaal.

Com a ausência do poder público, robôs armados da Tetravaal têm que impor a lei e a ordem numa cidade dominada pelo crime organizado por máfias que combinam ritos tribais com alta tecnologia.

As cenas introdutórias do filme com imagens da CNN e telejornais locais mostrando choques policiais nas ruas e imagens aéreas de grandes áreas de favelas com os robôs armados entrando em ação dão uma forte sensação de atualidade nessa ficção-científica. Na cidade, não conseguimos identificar um mínimo de presença de organização pública. Apenas a força paramilitar privatizada para reprimir aqueles que foram excluídos de qualquer direito ou cidadania – sobre o filme clique aqui.


6. Tokyo Gore Police (2008)

Nessa co-produção EUA e Japão, agora os efeitos neoliberais do desaparecimento do poder público estão na cidade de Tóquio, uma cidade caótica, violenta e totalmente privatizada. Por isso, a Força Policial de Tóquio tem total liberdade para lidar com os criminosos, já que o poder Judiciário desapareceu: transforma-se em juiz, júri e executor.

No interior da força policial há um grupo paramilitar que se utiliza da violência, sadismo e execuções de rua para manter a lei e a ordem. Como em Batman, a cena pública vira campo de lutas por vingança e acertos de contas pessoais.

Solitária e problemática, uma ninja chamada Ruka busca a vingança do assassinato do seu pai, um velho oficial morto nas ruas em plena luz do dia.

Enquanto os serviços públicos foram privatizados por corporações, a Justiça foi substituída pelo ressentimento e vingança pessoal.


7. From the Future With Love (2013)


Num futuro próximo o New York Police Department (NYPD) será substituído pela New York Police Corporation (NYPC) que compete com outras empresas do setor. Porém, é a que domina a maior extensão de áreas públicas.

O curta abre com uma garçonete desesperada que busca ajuda de policiais que almoçam no restaurante. Alguém fugiu sem pagar a conta. “Nada podemos fazer. O seu plano de segurança é básico e não cobre incidentes desse tipo...”, responde calmamente o policial enquanto morde o seu sanduíche.

Como uma empresa qualquer, a NYPC vende planos de proteção para a população: o Básico, o Silver e o Premium, com uma promoção de 5% de descontos nos planos fechados até o Natal.

Crime organizado e segurança privada se confundem nessa Nova York distópica. Concorrência e empreendedorismo, bem ao gosto do projeto neoliberal de sociedade: máfia e empresas de segurança pública privatizada concorrendo para ver quem oferece os melhores planos e descontos... e quem consegue eliminar a tiros a concorrência.

Assista ao curta abaixo.


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A celebração da troca do desejável pelo possível em "La La Land"

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Por que “La La Land - Cantando Estações” é o grande favorito ao Oscar? Porque está sintonizado com o espírito do tempo desse início de século: nostálgico, vintage, metalinguístico e com um amargo realismo. O filme capta a essência do gênero musical clássico, levando o clichê de “quebra e retorno a ordem” (pessoas que dançam, cantam e sonham, mas que depois voltam à realidade como se nada tivesse acontecido) ao limite. A nostalgia pela era de ouro de Hollywood e do jazz são o consolo para um casal que vê seus sonhos desapontados. Misturando alusões a filmes musicais clássicos, “La La Land” é uma fábula de como o amor nos dá força para realizar o possível. Mas, ao mesmo tempo, pode entrar na contabilização dos sacrifícios de termos perdido tudo aquilo que era desejável.

Certamente o leitor deve se lembrar da sequência mais famosa do musical Cantando na Chuva (1952) com Gene Kelly e Debbie Reynolds: Kathy despede-se de Don em uma noite chuvosa. Feliz por estar amando e pelo sucesso em um projeto cinematográfico, Don não se contém e começa a cantar e dançar na rua enquanto cai uma forte chuva. Don vive um sonho, dança, gira, salta, pouco se importando com o aguaceiro.

No final, aparece um policial que cruza os braços e olha feio para ele. A música para e, quase se desculpando, Don sai de cena envergonhado e entrega seu guarda-chuva para a primeira pessoa que está passando.

Cena simbólica e chave dos filmes musicais: diante da lei, da ordem e da moral, é preciso retornar ao mundo. E mais: como se nada tivesse acontecido.

Grande favorito ao Oscar, La La Land – Cantando Estações repete essa mesma fórmula à exaustão em duas horas de filme. Em um mix nostálgico de clássicos como Casablanca, Rebelde Sem Causa e do próprio Cantando na Chuva, com constantes alusões à era de ouro de Hollywood dos grandes estúdios e do jazz clássico de Charlie Parker e John Coltrane, La La Land compreendeu muito bem a essência dos filmes musicais: narrativas com personagens cheios de sonhos, mas que, às vezes, é preciso encontrar um parceiro ou alguém para amar para que os sonhos se tornem realidade.

Porém, esses sonhos devem ser constantemente interrompidos, assim como na sequência de Gene Kelly descrita acima. La La Land leva essas interrupções, ou o que esse humilde blogueiro chama de clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”, ao paroxismo. Até o retorno final à ordem, amargo, como se preparasse o espectador a voltar à sua realidade assim que sejam acesas as luzes do cinema.

Espírito do tempo


Dessa maneira La La Land conecta-se ao espírito do tempo desse início de século -  por isso, a produção levará o Oscar. Um mescla de nostalgia, estética vintage, realismo amargo (no qual o desejável é sempre substituído pelo possível) e visão niilista de futuro. Um realismo amargo traduzido pelas sucessivas cenas musicais nas quais sonhos, desejos e fantasias são cessados assim que a música abruptamente acaba, fazendo os protagonistas retornarem à dura realidade sem permitir que os sonhos se desenvolvam.

Claro que essa é a essência dos filmes musicais clássicos: não permitir o desenvolvimento dos sonhos até que tudo termine no happy end estereotipado. Porém, em La La Land até mesmo esse happy end clássico é suspenso numa espécie de alusão hiper-real do final de Casablanca: “Mas... e quanto nós?”, pergunta Ilsa (Bergman). “Nós sempre teremos Paris”, fala Rick (Bogart).

Para La La Land, os protagonistas sempre terão a velha Hollywood: as saudades do amor perdido misturado com a nostalgia da velha Hollywood e do jazz clássico, derrotado pelos teclados dos sintetizadores pop.

O Filme


A primeira sequência já demonstra para quê veio o filme: vemos carros presos no horrível tráfego de Los Angeles até que, de repente, os motoristas decidem sair dos carros e cantar e dançar “Another Day of Sun”. Uma música otimista que exorta o espectador a se reerguer toda vez que estiver decepcionado. Por que amanhã será mais um dia de sol! Não mais que de repente tudo para e os motoristas voltam a buzinar em seus carros como se nada tivesse acontecido.

Devo confessar que os musicais sempre me incomodaram por isso: como assim! A música termina e sonhos e desejos cantados voltam à rotina e... nada aconteceu?

A introdução musical é a preparação para a estória que vamos acompanhar sobre a vida de mais um daqueles que se decepcionam e esperam o sol nascer no dia seguinte: o pianista de jazz Sebastian (Ryan Gosling) e a atriz Mia (Emma Stone).

Mia está cansada de procurar oportunidades em Hollywood. É balconista em um café dentro dos estúdios da Universal: tão perto e tão longe – só consegue fazer audições com produtores que mal levantam os olhos para ela.

Sebastian é um purista do jazz: seu sonho é abrir um clube de jazz clássico, enquanto vive de bicos como tecladista em festas nas colinas de Hollywood, tocando sucessos do synthpop dos anos 80.

A vida deles é cercado de alusões nostálgicas: no quarto de Mia um imenso pôster de Ingrid Bergman e no apartamento de Sebastian discos de vinil de jazz antigos e pôster de John Coltrane.

Como em todo musical, o primeiro encontro deles é desajeitado e um passa ter pior impressão do outro. Mas sabemos que a química do casal vai funcionar nas próximas cenas. Afinal, são dois perdedores e sonhadores, sob o Sol que sempre renasce em Los Angeles.

Gosling e Emma Stone não são cantores e dançarinos, mas as sequências musicais são fantasticamente coreografadas, fluidas. Através da dança cairão no amor.


Quebra e retorno à ordem


Mas as sequências musicais se sucedem sempre com fantasias e sonhos interrompidos pela dura realidade. Depois de uma cena musical em uma festa na qual sonha em ser encontrada por alguém e reconhecida, tudo termina com o carro guinchado por ter estacionado em local proibido.

Sebastian arruma um bico para tocar músicas bregas em um restaurante. De repente, se empolga e começa a tocar fraseados de jazz. Logo depois, é demitido pelo patrão por desobedece-lo.

Assistindo ao filme Rebelde Sem Causa, quando Sebastian finalmente vai dar o primeiro beijo em Mia, a película queima no projetor e as luzes são acesas interrompendo tudo.

A cena em que o casal está ao piano celebrando o seu amor termina com Sebastian assinando o contrato para tocar numa banda de free jazz pop. Tudo que odiava... mas, afinal, precisa ganhar dinheiro no mundo real. Mesmo ao custo do realismo separá-lo de Mia.


A ideologia dos musicais


Ao lado dos super-heróis nas HQs, os filmes musicais desempenharam um importante papel ideológico no pós-guerra: numa incipiente sociedade de consumo com produtos e estilo de vida massificados (o “sonho americano”) era importante uma produção cultural que inspirasse resignação e conformismo.

Theodor Adorno apontava a existência de um duplo vínculo dos espectadores na indústria cultural – produtos culturais padronizados, mas que ao mesmo tempo permitissem uma escapadela do trabalho mecanizado.

Aluno de Adorno, Dieter Prokop percebeu como esse esquema de trabalho com as fantasias e desejos do público foi normatizado no que ele chamava de “fantasias-clichê”: um esquema abstrato que joga ao mesmo tempo com o “tédio” e “fascinação”. Sonhos, desejos, loucuras proibidas, etc. são desenvolvidos nos produtos de massa conseguindo a fascinação, mas vão até certo ponto. Se passassem desse limite começariam a incomodar o público, quebrariam a necessidade psicológica por harmonia. Então vem o “tédio”: os sonhos retornam à realidade com quebras narrativas que preparam o espectador para retornar a sua vida depois da sessão de cinema ou cochilo diante da TV – sobre isso clique aqui.

E a forma narrativa dos musicais sempre foi o gênero perfeito por explorar essas quebras narrativas sem, contudo, romper com o realismo e verossimilhança fílmica.

Na forma clássica dos filmes musicais, o happy end sempre foi a resignação final através do amor realizado, no casamento, nos filhos e na vida familiar tal como prescrita pelo sonho americano da época.

Mas La La Landé um musical pós-moderno: nostálgico, vintage, metalinguístico – mais um motivo para levar os principais Oscar desse ano. Mas ao mesmo tempo amargo e realista. Repete ao limite a fórmula da quebra e retorno a ordem, mas com um happy endque se adequa a um século XXI no qual o sonho americano se esvaziou de legitimidade.


Happy end invertido e sobrevivencialismo - aviso de spoilers à frente


La La Land apresenta uma espécie de happy end invertido: se através do amor os sonhos do casal se realizam, ao mesmo tempo é o motivo da triste separação. Com o sucesso profissional e a agenda lotada de compromissos, um não tem mais tempo para o outro.

Ao invés do Rick’s Bar do filme Casablanca, Sebastian construiu seu clube de jazz clássico: o Seb’s. E lá ocorre o desfecho com uma explícita alusão ao filme clássico de Humphrey Bogart: ela casou com outro, é atriz bem sucedida com uma filha. Ele, triste ao piano, vê Mia chegando com o marido.

Mas terão para sempre Hollywood, os musicais e o jazz... assim como Rick e Ilsa têm até hoje Paris... Ela com marido e filhos. Ele com o seu museu melancólico do jazz que está morrendo.

Sociologicamente já não vivemos o conformismo do pós-guerra. O conformismo atual é de outra ordem: a do “sobrevivencialismo” – substituir o desejável pelo possível – sobre esse conceito clique aqui. Depois do filme inteiro repetir à exaustão cenas de quebra e retorno a ordem, restou apenas o possível.

O século XXI será amargo, e exigirá uma sobre-força de resignação e conformismo, sob a aparência de felicidade através de camadas e mais camadas de nostalgia, estética vintage e metalinguagem.


Ficha Técnica

Título: La La Land – Cantando Estações
Diretor: Damien Chazelle
Roteiro: Damien Chazelle
Elenco:  Ryan Gosling, Emma Stone, Rosemarie DeWitt, J.K. Simmons
Produção: Black Label Media, Gilbert Films, Summit Entertainment
Distribuição: Paris Filmes
Ano: 2016
País: EUA

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Abelhas, ocultismo e TV em "Wax or The Discovery of Television Among The Bees"

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O primeiro filme feito para a Internet que estava apenas começando e produzido numa inédita ilha de edição não-linear. No longínquo ano de 1991 o diretor David Blair produziu “Wax or The Discovery of Television Among The Bees” um estranho filme  para cinéfilos corajosos o suficiente para se aventurar em bizarrices hipertextuais sobre abelhas da Mesopotâmia, ocultismo esotérico, histórias da Bíblia, Guerra do Iraque e simuladores de voo militar da NASA. Esse filme independente é um documento histórico da motivação tecnognóstica e esotérica que sempre esteve por trás do desenvolvimento da ciência computacional, ciberespaço e cibercultura. Em tom de documentário, Blair conta a história do neto de um entusiasta de uma sociedade dedicada à comunicação com os mortos, engenheiro de software na base de mísseis de Los Alamos, EUA, que cria uma conexão mística com abelhas (através da “BeeTV”). Para depois ser transportando para uma dimensão mística (o ciberespaço?) na qual verá a Guerra do Iraque sob o ponto de vista do carma e reencarnação... e receberá uma importante missão.

Uma produção para cinéfilos corajosos que gostam de se aventurar pelo universo dos filmes estranhos. Considerado pelo New York Times como o primeiro filme produzido para Internet, em 1991. Também o primeiro filme feito em uma ilha de edição não-linear ou digital. Uma produção caseira e experimental que levou seis anos para ser produzida por David Blair.

Originalmente pensado para ser uma narrativa em hipertexto, Wax or The Discovery of Television Among The Bees (“Cera ou a Descoberta da Televisão entre as Abelhas”, 1991) de início poderia ser assim resumido: Um “fotógrafo sobrenatural” (aquele que busca o contato com os mortos por meio de tecnologias audiovisuais) e um apicultor procuram evidências da vida após a morte. Eles compram uma colmeia de uma raça rara de abelhas da Mesopotâmia, resistentes a doenças. 

Décadas mais tarde, seu neto chamado Jacob, que trabalha como engenheiro de software projetando simuladores de voo para aviões de combate da Força Aérea dos EUA, compra a colmeia. Os insetos começam a lhe dar estranhos insights místicos, até que perfuram a sua cabeça para inserir um cristal: é a “BeeTV”, a versão da televisão das abelhas que dirigirá Jacob para o seu destino como um assassino metafísico.

Mitologias explícitas


Apenas com esse simples plot (na verdade uma versão, já que a narrativa em hipertexto potencialmente permite outras interpretações) dá para perceber a esquisitice do projeto de David Blair. O filme transcorre em tom de documentário, com uma narrativa em off do próprio diretor com uma fala casual e monótona.

A vantagem de lidar com esses filmes estranhos, ao contrário das narrativas realistas ou verossímeis, é que essas produções bizarras tornam mais explícitas a mitologia que atualmente anima as produções cinematográficas – o mix de gnosticismo, esoterismo, espiritualismo conectado com tecnologia e temas mundanos.

Por trás do enredo incomum de ficção-científica, uma missão de assassinato, uma visão inusitada da História (tecnologias de comunicação, Iraque, Primeira Guerra Mundial etc.) e a existência da vida depois a morte (com direito ao “Planeta dos Mortos”, “Mortos na Lua”, reencarnação e carma) há toda uma mitologia contemporânea com forte motivação gnóstica: o Deserto, a Bomba Atômica (as metáforas do homem como estrangeiro num mundo que não lhe pertence); a jornada espiritual dirigida pela BeeTV (o homem como um Viajante em busca de si mesmo); e uma conspiração norte americana para destruir o Iraque, antiga Mesopotâmia e local bíblico do Jardim do Éden – o homem como o Detetive que procura desvendar conspirações de alguém que não o ama.

Wax or The Discovery... tem uma imagerie rica e caótica: filmagens em locações reais da base militar de Los Alamos, um museu de mísseis a céu aberto no deserto, o local da explosão da primeira bomba de plutônio, uma base de simulação de voo da NASA, combinados com animações primitivas em 3D; e tudo isso conectado com o Jardim do Éden, Torre de Babel, a história de Abel e Caim, vida após a morte e reencarnação.


O Filme


Acompanhamos a trajetória de Jacob Maker (interpretado pelo próprio diretor), um engenheiro de programação no laboratório de ciência nuclear de Los Alamos, descontente: sente-se culpado de fazer parte de massacres em massa refinados por testes de mísseis controlados, drones e desenvolvimento de software de simulação de combates aéreos.

Jacob sente a dissonância entre a natureza do seu trabalho, a necessidade de sustentar a família. Para compensar, ele passa as tardes em comunhão com sua colmeia de abelhas.

Mas não são abelhas comuns. Descendem de uma raça especial de fabricantes de mel trazidas do Iraque (na época dos seu avós, chamada de “Mesopotâmia Britânica”) pelo seu avô Jacó Hive Maker (interpretado por William Burroughs – sim! Aquele escritor beatnik defensor da escrita por meios de fluxos de consciência estimulado por alucinógenos).

A estranha odisseia de Jacob começa quando as abelhas entram na sua cabeça para implantar a BeeTV. As abelhas dão a ele um propósito na vida: reestabelecer o equilíbrio do Universo através do assassinato de uma pessoa.

A partir daí, o filme toma um percurso extremamente bizarro. Seguindo as instruções da BeeTV, Jacob se aventura em uma área de testes para mísseis. Lá chega a Caverna do Jardim do Éden na qual encontra abelhas gigantes que vivem na Terra dos Mortos. Lá são feitas revelações sobre sua história familiar e detalhes da sua missão, incluindo a identidade da sua vítima que deve ser morta para trazer o equilíbrio universal.

"Wax": Um filme cult foi o primeiro da Internet

Jacob é a reencarnação do avô de sua esposa, Zoltan Abbasid, que se casou com a meia-irmã de James Hive Maker. Ela era telefonista e inventora e membro de uma sociedade dedicada à comunicação com os mortos. Com ciúmes de Abbasid, James ordenou às abelhas que o matasse.

Logo depois Jacob morre, passa por vidas em outras dimensões antes de ser transformado em um míssil enviado para matar as reencarnação do responsável pela morte de Abbasid, que agora vive no Iraque às véspera da primeira invasão dos EUA naquela país em 1991.

Um julgamento moral da guerra


 Em Wax or The Discovery... o carma funciona da seguinte maneira: aqueles que matam com violência serão punidos com uma morte igualmente violenta, enquanto mortos  procuram vingança sobre aqueles que os matam.

Em primeiro lugar o filme faz um julgamento moral tanto da Guerra do Iraque que acontecia naquele momento como todas as guerras que seguiram seu rastro – sugere que aqueles que matam podem ser mortos da mesma maneira.

Por isso, a trama vai para o passado e presente diversas vezes através de animações por computador bem datadas (imagens em telas que viram do avesso, rolam, giram até transformar-se em silhuetas que simulam movimentos de aves ou criaturas voadoras.


Ciberpunks e Tecnognosticismo


Em segundo lugar, o filme é o documento cultural da incipiente cibercultura e dos mundos virtuais criados pela computação gráfica e redes de computadores como a Internet. Mas principalmente a identificação dos mundos virtuais e digitais com dimensões espirituais ou místicas.

O filme demonstra como esse tecnomisticismo ou tecnognosticismo esteve por trás da tecnologia computacional. New Agers, ciberpunks, desenvolvedores de programas e demais tecnófilos concebiam o ciberespaço não apenas no sentido estrito da racionalidade instrumental. Mas principalmente como um espaço sagrado no qual a função do Eu se fundiria com o divino céu da informação – o ciberespaço.

Da mesma maneira como as primeiras tecnologias da comunicação dos séculos XIX-XX, derivadas da ótica, eletricidade e eletromagnetismo (fotografia, rádio, telefone, cinema e telégrafos) foram identificadas com fenômenos mediúnicos, mesas girantes e comunicação espiritual.

A onisciência, ubiquidade e superação dos limites corporais e físicos conferidos pelas tecnologias digitais sempre esconderam uma motivação transcendentalista, mística e gnóstica: a superação da finitude da carne por meio da imortalidade de upload final do espírito para o ciberespaço.

 Daí,  Wax or The Discovery... transbordar de alusões desconcertantes à tecnologia (simuladores, programaçãoo, softwares etc.), histórias da Bíblia, ocultismo esotérico e espiritualismo.

Mas também o filme aponta para a própria utopia futura da cibercultura, expressa em livros ciberpunks como Neuromancer (1984) de William Gibson: a realização da última interface da história da tecnologia – o biológico e o eletrônico, a conexão entre as redes neuronais e as redes digitais. A BeeTV é a metáfora desse sonho, transferido para o século XXI.

Assista ao filme completo abaixo. Legendas ocultas. Instruções para ativar legendas em português (imprecisas, mas ajuda) clique aqui.


Ficha Técnica

Título: Wax or The Discovery of Television Among the Bees
Diretor: David Blair
Roteiro: David Blair
Elenco:  Father Bessarion, David Blair, Meg Savlov, William Burroughs
Produção: David Blair Productions
Distribuição: Jasmine Tea Films
Ano: 1991
País: EUA

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