Quantcast
Channel: Cinema Secreto: Cinegnose
Viewing all 2058 articles
Browse latest View live

Para a TV Globo o Japão é a reserva moral brasileira

$
0
0

Toda vez que o Brasil entra em crise econômica, a TV Globo convoca seu correspondente da época em Tóquio para intensificar matérias com edificantes lições morais sobre virtudes que supostamente faltariam para um país como o nosso que nunca dá certo: o modelo de educação mundial, a disciplina, a disposição para o trabalho, abnegação e auto-sacrifício. É a mitologia do “milagre japonês”. Os ocidentais tentam transformar o Japão em um espelho de si mesmos com seus tradicionais clichês. Mas não conseguem entender o gênio da cultura japonesa: a capacidade de imitar o ocidente sem absorver sua essência – o Japão consegue entrar na órbita cultural, tecnológica e comercial ocidental levando ao extremo um velho princípio taoista de que a vitória não se consegue afirmando-se, mas, pelo contrário, desvalorizando-se, cedendo. Assim como no jiu-jitsu onde não se vence impondo sua própria força ou valor, mas absorvendo a força do oponente.

Nesses tempos bicudos, onde as únicas alternativas para o País repercutidas pela grande imprensa como soluções para a crise econômica autorrealizável seriam o aumento da jornada de trabalho para 80 horas semanais, a “flexilibilização” (delicioso eufemismo) das leis trabalhistas e projeto da escola sem partido político, o Japão parece surgir como a grande reserva moral: modelo cultural e comportamental onde teria tudo aquilo que supostamente faltaria em nós para sermos uma grande potencia econômica e tecnológica, tal como aquele país.

Principalmente para a TV Globo, que tem o seu correspondente Márcio Gomes sempre  a postos em Tóquio com uma pauta pronta para mostrar como os japoneses são tão disciplinados, trabalhadores, tecnologizados e exóticos.

O script da grande mídia


O Cinegnose veio nesses últimos anos desenvolvendo a série de análises das “bombas semióticas” onde chegou a duas conclusões: primeiro, esses dispositivos semióticos fizeram parte de um contexto maior que os analistas políticos chamam de “guerra híbrida” – estratégia semiótica da geopolítica norte-americana combinando engenharia de opinião pública com indução a “revoluções coloridas” em países do BRICS - sobre isso clique aqui.

E segundo, de que a grande mídia possui um script pré-definido composto por três plots básicos: crise econômica + corrupção + ameaça bolivariana (podendo variar para ameaça terrorista) - sobre isso clique aqui.


Quando passamos para o noticiário internacional, a pauta fica mais “cor-de-rosa”: amenidades em torno da família real inglesa; a limpeza e disciplina do povo japonês; ou a “festa da democracia” norte-americana - a cobertura dos correspondentes da Globo News sobre a Convenção do Partido Republicano está impagável: alegres e hiperativos como fossem turistas visitando pela primeira vez o evento de um “país de primeiro mundo”.

É claro que deve haver o “mal”: crise econômica e terrorismo internacional são tratados como fossem fenômenos naturais, assim como o aquecimento global, terremotos e tsunamis – atiradores descritos como fossem “lobos solitários” e muçulmanos fanáticos que precisam ser eliminados por algum tipo de limpeza étnica, ética ou religiosa.

Quando o “mal” manifesta-se (atentados e vítimas) mostra-se como  povo desses países é heroico, resistente e organizado diante das adversidades: pessoas colocando flores nos locais de atentados, entoando hinos e assim por diante.

A mitologia do milagre japonês


Mas com o Japão vai além. Nos telejornais, principalmente da TV Globo, a exótica terra das animes, cosplayers, hashis e sushis se transforma em “Japão Inc.”, a terra do milagre de um país destruído por bombas nucleares na Segunda Guerra Mundial e que se transformou em potência mundial.

Por exemplo, após o terremoto seguido de tsunami ter devastado parte do seu território em 2011, e ainda seguido por vazamento de radiação na usina nuclear de Fukushima, imagens da Globo davam destaque para as filas disciplinadas de moradores da região para receber doações de roupas e alimentos. Sempre a angulação das reportagens era para destacar a abnegação a capacidade de auto-sacrifício e espírito coletivo.

Bem diferente de outros acidentes nucleares como, por exemplo, Chernobyl em 1986 na União Soviética: mostrado pela mídia internacional como resultado da ineficiência de um Estado comunista, além de preparação de terreno para o fim próximo do próprio bloco comunista.

Filme "Fábrica de Loucuras" (1986)

Filmes como Fábrica de Loucuras (Gung Ho, 1986) ajudaram a criar o mito econômico do milagre japonês: uma comédia que conta os percalços de uma fábrica de automóveis em crise e que convoca a ajuda de técnicos japoneses.

A mitologia do milagre japonês se iniciou nas faculdades de economia e administração: planejamento econômico, modelo mundial de educação, utilização racional da força de trabalho, sistema monetário adequado à economia etc. Chegando ainda a supostos fatores étnicos-culturais milenares como “espírito de poupança”, a disposição para o trabalho disciplinado, o respeito pelos mais velhos, espírito do sacrifício pelo interesse coletivo e assim por diante.

Os clichês globais sobre o Japão


No Brasil, sempre nos momentos quando o País passa por crises econômicas e políticas, a grande imprensa intensifica a produção de matérias sobre como devemos nos mirar no exemplo japonês. E agora vivemos outro pico de matérias de espírito construtivo sobre aquele país.

Na Globo as matérias recentes vão desde o tema sobre como o Japão é um modelo de educação mundial (“onde ganham confiança para irem mais longe...”) até de cunho metalinguístico: a vida dos correspondentes Márcio Gomes e Roberto Kovalick no país “que une o moderno e o tradicional, tudo certinho...”. E toma imagens de japoneses perfilados e se curvando a estrangeiros em sinal de boas vindas “mostrando alegria e respeito”, robôs, tecnologia. “Nada é feito para falhar”, fala o surpreendido Roberto Kovalick – veja abaixo as reportagens.

Essa mitologia do Japão Inc. acabou tornando-se uma ideia próxima do self made man (a convicção de que o sucesso pessoal se faz pelos próprios esforços pessoais), dessa vez aplicado para o progresso de uma nação.  

Essa postagem nem vai entrar nas evidências econômicas que desmentem a mitologia do milagre japonês – proteção comercial durante a Guerra Fria onde os EUA mantinham propositalmente o déficit comercial com aquele país; crescimento do desemprego para quebrar o poder de negociação dos sindicatos;  sofisticação tecnológica voltada para a descartabilidade dos postos de trabalho; crescimento dos trabalhos temporários, acabando com o mito do “emprego vitalício” e o “espírito familiar” das empresas japonesas etc.


O gênio da cultura japonesa


Vamos apenas ficar nos aspectos culturais. Os atentos correspondentes internacionais da TV Globo, com o seu olhar estrangeiro e ocidentalizado, parecem cair na armadilha do “gênio” da cultura japonesa: a noção dada à palavra “sentido”, bem diferente do conceito ocidental.

Enquanto os solertes jornalistas globais procuram um “sentido” para a cultura japonesa (progresso, cerimoniosidade, refinamento, americanização, disciplina, alta tecnologia), o sentido para os japoneses está em outra cena.

Para um ocidental a palavra “sentido” tem um forte significado ontológico (a “essência”, o porquê das coisas etc.). Por isso, ao conhecer o Japão buscamos lá a confirmação das ideologias como meritocracia, progresso, capitalismo, tecnologia etc. Procuram-se lições ou o espelho ideal das virtudes que supostamente estariam em falta em países como o nosso.

Mas a palavra “sentido” tem um outro significado na cultura japonesa: significa direção para onde um fluxo aponta, movimento, deslocamento. Não mais essência, mas forma e estilização.

Talvez aquele que explicou melhor essa lógica cultural japonesa tenha sido o filósofo e escritor catalão Rubert de Ventós no seu livro De La Modernidad. Para ele, o gênio japonês estaria no mimetismo, na imitação – o Japão consegue entrar na órbita cultural, tecnológica e comercial ocidental levando ao extremo um velho princípio taoista de que a vitória não se consegue afirmando-se, mas, pelo contrário, desvalorizando-se, cedendo-se. Assim como no jiu-jitsu onde não se vence impondo sua própria força ou valor, mas absorvendo a força do oponente.

Filme "Encontros e Desencontros" (2003)

O Japão copia hoje a tecnologia exatamente como há séculos vem “copiando” religiões. Um secular e sutil desprezo por “mensagens” ou “conteúdos” do que vem de fora. Tudo é copiado, imitado para depois ser filtrado o conteúdo e transformado em forma ou estilização vazia voltada aos seus próprios interesses.

Um filme recente que ilustra essa tese é o filme Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003) onde percebemos a inacreditável estilização da cultura pop ocidental no Japão: programas de TV com apresentadores freaks estilizando de forma caricata a linguagem MTV, karaokês onde cantores amadores encarnam punks, metaleiros e românticos.

Um país como o Brasil é muito mais americanizado do que a cultura japonesa. Ao contrário daqui não querem entender o sentido em ser punk, metaleiro ou qualquer outra coisa importada. Apenas absorvem, ritualizam e formalizam para incorporar às suas próprias necessidades.

A modernidade não convive tranquilamente com a tradição milenar, como quer estereotipar o olhar ocidental dos correspondentes da Globo, para justificar o porquê do Brasil nunca dar certo. Na verdade a tradição estiliza tudo o que vem de fora, inclusive o próprio Capitalismo e sua cultura pop, para criar uma grande aparência para os ocidentais. Mas no fundo dessas aparências está o gênio japonês do mimetismo e superficialidade das aparências.

Somente os ocidentais veem no Japão o espelho triunfante de si mesmos.




Postagens Relacionadas












O evento-encenação da "célula amadora" dos terroristas de paintball

$
0
0

Saem bolivarianos e comunistas e agora entram terroristas islâmicos. Sim! Nós também temos terroristas. “Células amadoras” onde o batismo é feito através de webcam, compram armas do Paraguai pela Internet e pretendem fazer “treinos de lutas marciais” a poucos dias dos jogos olímpicos, suposto alvo dos intolerantes religiosos. Isso quem disse foi Alexandre de Moraes, ministro da Justiça, em uma coletiva convocada numa atmosfera de pompa e gravidade. Uma “investigação sigilosa” que, ao mesmo tempo, pode ser divulgada à Imprensa. E a grande mídia repercute com seus correspondentes no Exterior para que, definitivamente, esse País seja levado à sério. Esse é mais um exemplar de uma longa história de “eventos-encenação” (Umberto Eco) que começa com o casamento de Lady Di e Príncipe Charles, passando pelos mísseis jogados no Sudão e Afeganistão por Bill Clinton para desviar a atenção de um escândalo sexual em 1998 até essa desajeitada estratégia do governo Temer repleta de contradições, timing e oportunismo, com direito a foto de um “terrorista de paintball”.


No ápice do escândalo sexual do presidente Bill Clinton envolvendo uma estagiária e charutos em pleno Salão Oval da Casa Branca em 1998 e a ameaça de sofrer um impeachment, o Governo respondeu ao ataque terrorista a duas embaixadas norte-americanas na África com um ataque de mísseis de cruzeiro contra alegadas posições terroristas no Sudão e Afeganistão. Muitos analistas viram nessa ação uma estratégia para derrubar a pauta midiática do escândalo. O Departamento de Estado falou que tudo foi “mera coincidência”.

E naquele mesmo ano era lançado o filme Mera Coincidência(Wag The Dog) que acompanha um presidente também envolvido em escândalos sexuais que precisa reverter a agenda da mídia a poucas semanas do final da campanha da reeleição. Contrata um conselheiro de relações públicas e um produtor de Hollywood para produzir uma guerra fictícia envolvendo supostos terroristas albaneses em guerra cenográficas em chroma key e muitos vídeos “vazados” para os telejornais – sobre o filme clique aqui.

Tanto na realidade como na ficção, esses exemplos tratam de dois elementos fundamentais na política: o timing e o oportunismo. E quando esses dois elementos estão presentes simultaneamente em um fato político há 99% de possibilidade de tudo ter sido manufaturado, seja em uma False Flag, Inside Job, factoide, pseudo-evento ou um evento-encenação.

Filme "Mera Coincidência" (1998): terrorismo em chroma key

A poucos dias do início das Olimpíadas no Rio, o ministro da Justiça Alexandre de Moraes convoca a imprensa e anuncia que a Polícia Federal prendeu um grupo de dez brasileiros que conversavam em aplicativos de comunicação, como o WhatsApp, sobre intolerância racial, ódio e islamismo. E finalmente foram presos quando os comentários passaram para “atos preparatórios”  como comprar arma pela Internet de uma loja paraguaia e planejar fazer treinamentos de artes marciais.

Uma célula do Estado Islâmico no Brasil? Sim, e para o ministro trata-se de uma “célula amadora”.

A coletiva à imprensa foi cercada com toda pompa e atmosfera de gravidade necessárias – o ministro levantou a bola para ao longo do dia a grande mídia chutá-la para frente através dos seus correspondentes internacionais, ávidos pela possibilidade do Brasil também estar no circuito do terrorismo internacional e ser um país respeitado. Sim! Nós também temos terroristas. Embora ainda “amadores”.

A coletiva: pompa e atmosfera de gravidade

Eventos-encenação, telegenia e canastrice


Umberto Eco em seu texto clássico Televisão: a Transparência Perdida (texto do livro Viagens na Irrealidade Cotidiana, Nova Fronteira, 1983) descrevia como a irrealidade cotidiana estava sendo progressivamente transmitida por uma nova forma de TV: a “neotevê” - aquela televisão onde a realidade deixou de ser menos os fatos imprevisíveis e espontâneos do que aqueles habilmente produzidos para se encaixar confortavelmente no script pré-estabelecido da grande mídia – sobre esse conceito clique aqui.

Para Eco, o casamento da família real inglesa (o “Royal Wedding”) em 1981 teria sido o acontecimento inaugural:  produzido e roteirizado para ser telegênico e encaixado na grade de programação da BBC.

São os “eventos-encenação” onde relações públicas, marqueteiros e jornalistas transformam-se em consultores para a produção de eventos que consigam juntar em um único lance timing e oportunismo.

Contando com a rápida repercussão pela Neotevê. Afinal, os eventos-encenação têm appeal, telegenia e canastrice com design cuidadosamente planejado para a mídia – reparem no personagem canastrão criado pelo ministro Alexandre de Moraes:  um misto de Kojak com um estudado olhar grave que frequentemente entra em conflito com sua fala gaguejante e engasgos constantes. Mas diferente do ministro, o velho Kojak da série dos anos 1970 era um policial que não se levava a sério...

Ministro da Defesa: pronto para a ação em seu colete de campanha...

Eventos-encenação são contraditórios


De início, um evento-encenação apresenta muitas contradições pela sua natureza esquizofrênica: embora encenada, tem que aparentar espontaneidade e a fatalidade do destino.

(a) A expressão “célula amadora” ‘e uma contradição de termos: “célula”, um conceito tático de um movimento político organizado, com característica “amadora”. O ministro teve que criar um conceito inusitado para a mídia engolir a história de jovens se comunicando no WhatsApp e comprando armas pela Internet;

(b) O ministro declarou que nomes dos brasileiros seriam mantidos em sigilo para, segundo ele, assegurar o êxito das novas fazes de investigação. Como é possível sigilo em uma ação já amplamente repercutida na mídia pelo próprio ministro. Na Europa e em países acostumados a lidar com atos terroristas, as investigações são sempre mantidas em sigilo para que não sejam atrapalhadas e nem crie pânico desnecessário.

(c) A necessidade da prisão do grupo suspeito veio a partir do momento em que passaram para “atos preparatórios”. A poucos dias das Olimpíadas a “célula” decide (ou foi “acionada”) partir para ação, comprando armas pela Internet e decidindo treinar “artes marciais”. Tudo em cima da hora, numa ação que, mesmo para aqueles que assistem a filmes de ação (provavelmente a formação da “célula amadora”), sabem que uma ação terrorista num evento dessa magnitude levaria meses para ser planejada.

(d) As prisões foram feitas com base em uma única evidência: conversas em aplicativos como WhatsApp. Mas não estamos no país onde juízes tiram o serviço do aplicativo do ar como sanção pelo serviço não fornecer à Justiça os registros de conversas entre usuários? Essa contradição foi apresentada ao ministro na coletiva. Alexandre de Moraes gaguejou mais do que o normal.

Agora vamos ao núcleo político de um evento-encenação: timing e oportunismo. Evento que de tão conveniente, passamos a nos perguntar: quem sai ganhando?

O terrorista de paintball: uma questão de corte do enquadramento

Evidências de encenação


Manchetes de jornais e imagens telejornalísticas morderam a isca oferecida pelos ministros da Defesa e Justiça e desenvolveram a habitual narrativa clichê: brasileiros barbudos, convertidos ao islamismo e, ainda, um deles respondia dúvidas sobre aulas de árabe em um grupo no WhatsApp.

Mas chega a forçar a barra no limite da irresponsabilidade ao transformar um “terrorista de paintball” em ameaça real aos jogos olímpicos. Em rede social um internauta mostrou a foto utilizada por veículos de comunicação e autoridades na qual um dos suspeitos parece empunhar uma arma de grosso calibre. Essa foto é comparada com a original, sem o corte de enquadramento. Percebemos que a arma é nada mais do que um equipamento usado em paintball para disparar pequenas bolas de tinta nos adversários do jogo - sobre isso clique aqui.

Nada como uma arma escura e um rosto barbado e “étnico” para criar uma ameaça pública...

Timing


A convocação emergencial de coletiva a imprensa veio em momento perfeito - com direito a imagens na TV com o ministro da Defesa Raul Jungmann vestindo uma espécie de colete de campanha e dando novas declarações esquizofrênicas (falava em “calma” e “segurança” após a fala grave e gaguejante de Alexandre de Moraes) acompanhado de militares com roupas de camuflagem como “papagaios de pirata”.

Tudo acontece após o massacre em Nice e a poucos dias dos jogos olímpicos. E também em meio a um ataque em um shopping em Munique, Alemanha. Isso após um outro ataque a machado em um trem em Würzburg, também Alemanha – e, como sempre, o “terroristas” ou se matam ou são mortos no final pela polícia – sobre como identificar o script de um False Flag clique aqui.

Como sabemos, um Estado autoritário deve sempre contar com um inimigo externo para criar legitimidade pelo medo e terror. O atual governo interino de Michel Temer sabe que a sua missão é amarga e ingrata: enfiar goela abaixo do populacho todas as medidas neoliberais antipopulares, antissociais e anti-trabalhistas – Estado mínimo e financismo máximo.

Bolivarianos e comunistas perderam a força de apelo que levou milhares de camisas amarelas às ruas. Agora é o momento de criar um novo inimigo: o poder do Estado Islâmico arregimentar brasileiros através da Internet. Terroristas e homens-bombas estariam entre nós. Muito embora eles já estejam há anos aqui com o crime organizado (PCC) que explode caixas eletrônicos e corrompe a Polícia Militar.

Desviar a atenção da mídia internacional?

Oportunismo – quem ganha?


O impeachment da presidenta Dilma deve ir a julgamento final em agosto, em meio aos jogos olímpicos do Rio. Elevar o alerta de terrorismo é a clássica estratégia de desvio da atenção no momento em que jornalistas e o mundo inteiro estarão olhando para o Brasil.

O fato de Dilma não ter renunciado e ter se convertido em uma “denúncia viva” do golpismo brasileiro ao viajar pelo País e dar entrevistas a correspondentes estrangeiros, transformou-se num problemas de relações públicas para o governo interino.

Um alerta de terrorismo é conveniente para derrubar a pauta midiática atual  concentrada em impeachment + crise econômica + Lava Jato.

Além disso, ganha também a grande mídia, principalmente a TV Globo. Nos últimos anos de queda de audiência vertical pela concorrência da Internet e tecnologias de convergência, é facilmente perceptível no seu telejornalismo a demonização da Internet: terra de ninguém onde ocorrem golpes financeiros, pedofilia, pornografia, pirataria vício, dependência, Deep Web etc.

E agora, além de torcidas organizadas de futebol que marcam encontros violentos pelas redes sociais, temos o Estado Islâmico cooptando brasileiros com “batismos virtuais” diante de um estandarte negro  transmitido por webcam.

Para uma emissora como a Globo que sempre sentou em cima de mercados de novas tecnologias para evitar concorrência com a TV aberta (vide o caso da TV por assinatura nos anos 1990-2000), o governo Temer poderá trazer as condições ideais: crise econômica e recessão para forçar todos, com dinheiro curto, ficarem em casa e ter a TV como única fonte de entretenimento; e demonização das ameaçadoras novas tecnologias.

Postagens Relacionadas











Curta da Semana: "We Together" - a memória involuntária dos zumbis

$
0
0

Os zumbis de George Romero se encontram com o vídeo-clip "Thriller" de Michael Jackson fazendo uma exploração no psiquismo dos zumbis. Esse é o curta “We Together” (2016) de Henry Kaplan. Uma música desperta em zumbis memórias involuntárias, fazendo-os terem flash backs da antiga vida humana que ainda podem ter de volta, desde que redescubram quem eles foram. Nada mais gnóstico: os zumbis são tão alheios de si mesmos como nós. Este talvez seja o porquê do fascínio atual pelos zumbis, um verdadeiro arquétipo contemporâneo.


Reinventar os filmes de zumbis parece ser um das preocupações que está no topo da agenda atual dos cineastas. O curta We Together(2016) de Henry Kaplan é a tentativa mais recente ao fazer um curioso mix dos zumbis seminais do diretor George Romero (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968), , o clipe Thriller de Michael Jackson e especulações em torno do funcionamento do psiquismo de um zumbi.

Nos últimos anos a criatividade dos cineastas para (desculpe o trocadilho) injetar sangue novo no subgênero foi longe: zumbis invadem Cuba como nova tática de guerra dos EUA (Juan de Los Muertos, clique aqui); zumbi se transformam em problema de epidemiologia e vigilância sanitária (REC, clique aqui); invadem um reality show (Dead Set, clique aqui); ou humanos viram zumbis ao serem contaminados não mais por sangue ou mordidas, mas por certas palavras que estariam semioticamente contaminadas –  Pontypool, clique aqui.

O Curta


No curta We Together começamos em plena ação com zumbis abrindo as vísceras de uma vítima na área de estacionamento da Marcel’s Pizzeria. Um pedaço da vítima é jogado e bate em um aparelho de som daqueles antigos 3 em 1 portáteis sobre um monte de lixo. O aparelho começa a tocar um funk (música composta por Kerron Hurd) que faz um dos zumbis parar, prestar atenção ao som e ter flash backs de quando era humano e trabalhava naquela pizzaria.


Perplexo e confuso, o zumbi olha para a vítima despedaçada, vomita o que comeu e corre desajeitado no melhor estilo zombie walkpara a entrada dos fundos da pizzaria, batendo com a cara na porta fechada. Lá dentro estão funcionários apavorados, os últimos sobreviventes. E lá fica o zumbi, parado, dia e noite esperando a porta abrir.

Até que aquele velho aparelho despenca do monte de lixo, voltando a tocar novamente aquele funk, criando novas experiências de flash back ainda mais fortes no zumbi. Então, junto com outro zumbi com o uniforme da Marcel’s Pizzeria, também afetado pela música, começam a dançar freneticamente os passos da break dance. A sequência vai fazer o leitor lembrar bastante de Thiller, o clássico vídeo-clip de Michael Jackson dos anos 1980.

Quanto mais toca a música, mais eles dançam e relembram dos momentos de amizade quando eram humanos e trabalhavam ali. Até que... bem, o leitor terá que ver com seus próprios olhos.

Proust e a memória involuntária


O diretor Kaplan tinha uma ideia inicial na cabeça: como um zumbi se sentiria no meio de uma multidão caótica de zumbis sedentos por vísceras? E se ele começasse a dançar no meio deles? Como os outros zumbis compreenderiam isso?


A música faz despertar nele aquilo que o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) chamava de “memória involuntária”, um argumento surpreendentemente nunca explorado até aqui pela cinematografia de zumbis.

Para Proust em sua obra-prima Em Busca do Tempo Perdido, uma hora não é apenas uma hora: é também perfume, sons, climas e projetos. É o tempo “em estado puro”.

A memória involuntária é aquela capaz de resgatar aquilo que foi esquecido e que é a base daquilo que nós somos. Uma memória involuntária seria forte o suficiente para lembrar um zumbi aquilo quem ele já foi? Por isso Kaplan afirma que o tema do curta We Together fala em “redescobrir aquilo que você é”.   

Nada mais gnóstico: os zumbis são tão alheios de si mesmos como nós. Este talvez seja o porquê do fascínio atual pelos zumbis como um arquétipo contemporâneo.

O fascínio pelos zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles parecem inspirar, fazendo-nos recordar da nossa própria condição humana: nem vivos e nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte dele.

A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal.


Zumbis, música e contaminação viral


 O curta também nos oferece uma interessante analogia que liga ao tema de outro filme de zumbis: Pontypool. Nesse filme, o vírus zumbi é linguístico – certas palavras seriam perigosas ao criarem no psiquismos dos incautos ouvintes uma perda da memória de si mesmos, caindo na condição sanguinária de zumbis.

Em We Together há uma aproximação entre o poder viral da praga zumbi com o poder dos hits musicais: são tão contaminantes como uma epidemia zumbi.

Mas, diferente de Pontypool, a música detém o poder de criar a memória involuntária, resgatando o tempo puro que nos faça relembrar aquilo que verdadeiramente somos.

Em Pontypool a linguagem é o vírus do esquecimento. Mais otimista, em We Together, a linguagem é o tempo em estado puro que nos faz relembrar.


Mídia faz cortina de fumaça com debate "Escola Sem Partido"

$
0
0

Doze anos depois do surgimento da proposta do “Escola Sem Partido”, o Senado lançou agora um projeto de lei para incluir essa ideia nas diretrizes e bases da educação nacional. A grande mídia deu espaço a essa notícia e tanto Esquerda quanto Direita morderam a isca e se engalfinharam: mordaça para os professores? Retrocesso na educação? Impedir que a esquerda doutrine alunos aproveitando-se da audiência cativa? Por que só agora o projeto ganha expressão política e midiática? O debate coincide com o momento da oligopolização do ensino por grupos educacionais estrangeiros (turbinados por fundos de investimentos) e nacionais que não visam apenas a mercantilização, mas a própria industrialização do ensino. A polêmica midiática do “Escola Sem Partido” parece ser uma cortina de fumaça para esconder um projeto industrial muito mais amplo com a importação de novas metodologias educacionais (“ativas”, “educação por competências”) tomadas como um fim em si mesmas onde o próprio professor desaparecerá junto com o seu ofício. Talvez no futuro nem mais exista professor para ser amordaçado.


Como professor universitário, com algumas passagens pelo ensino médio e cursos de capacitação de professores do ensino público, esse humilde blogueiro tem a estranha sensação “de volta para o futuro” ao ver o debate atual em torno do Projeto Escola Sem Partido, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES).

Em primeiro lugar, esse debate ganha espaço na mídia em um momento de evidentes retrocessos e a ascensão de todos os “neos” (neoconservadorismo, neoliberalismo etc.). Um debate que surge com forte cheiro de naftalina como fosse de alguma coisa que foi retirada de uma gaveta depois de anos. A acusação da suposta existência de professores comunistas “barbudinhos” fazendo a cabeça de incautos alunos fazia parte da paranoia dos tempos da ditadura militar dos anos 1970.

Já foi bastante documentado como na ditadura militar brasileira as Associações de Pais e Mestres (APM) eram instrumentalizadas para controlar professores, monitorar os conteúdos programáticos de disciplinas e criar listas de professores suspeitos.  

Agora, décadas depois, esse debate em tons retro retorna marcado por personagens decadentes como o ator pornô Alexandre Frota (que fez questão em agendar uma visita ao ministro da Educação para hipotecar apoio ao projeto) e o próprio autor do projeto (Magno Malta que embarcou na onda conservadora depois de diversos reveses políticos).

Esse projeto existe desde 2004 cuja ideia surgiu do advogado Miguel Nagib como reação à “doutrinação política e ideológica em sala de aula” por meio de livros didáticos e supostos professores partidarizados. Mas estranhamente só agora ganha expressão política através de um projeto no Congresso.


Por que agora? 


Por que doze anos depois essa paranoia em torno de supostos professores estarem usurpando o direito de pais sobre a educação moral, política e religiosa de seus filhos, ganha espaço na mídia e expressão política em um projeto no Congresso?

Acredito que essa discussão com gosto de café velho requentado visa outra coisa, muito mais do que desbaratar supostas células partidárias e comunistas no ensino brasileiro. Aliás, isso é um álibi para um propósito muito maior e que, por isso, exige a aplicação de uma velha tática de engenharia de opinião pública: desviar a atenção.

Em um cenário atual onde grandes empresas educacionais, nacionais e estrangeiras (turbinadas por fundos de investimento), estão oligopolizando o setor e impondo a racionalização produtiva industrial na sala de aula, escolas e universidades privadas estão mobilizadas para dar o lance mais ambicioso: a substituição do professor pelas modernas “metodologias ativas” ou pela “educação por competências”.

O projeto Escola Sem Partido faz Direita e Esquerda se engalfinharem numa discussão ultrapassada como se debatessem em torno de monstros de moinhos de vento. Mas o pior ocorre em outra cena: não se trata mais de controlar conteúdos curriculares, mas de tornar a própria função escolástica do professor (transmissão e criação de conhecimentos) em algo velho e substituído por dispositivos metodológicos importados.

Não por causa de suspeitas ideológicas, mas simplesmente porque na moderna racionalização industrial na educação (o serial, o pontual, o quantitativo) não há mais lugar para  insumos e resultados que não possam ser medidos e representados em planilhas Excel que geram bonitos gráficos para serem projetados em data-show nas reuniões de gestores. 


Primeira fase: Mercantilização do ensino


Em postagem anterior sobre as transformação ocorridas no educação em geral, e no ensino superior em particular,  conseguimos demarcar duas fases bem distintas no processo de transformação educacional: a mercantilização e a industrialização - sobre isso clique aqui.

A primeira fase de mercantilização corresponderia ao duplo processo de sucateamento do ensino público e o crescimento do ensino privado.

Nessa fase o conhecimento foi progressivamente transformado em informação para se adequar a um regime de exploração por “mais-valia absoluta”: aumento do ritmo do trabalho, salas de aula lotadas, salários baixos e extensa jornada de trabalho.

O “conhecimento” (tanto nos aspectos de transmissão e pesquisa) foi reduzido a “informação” por meio do apostilamento do material didático: quadros sinópticos, infográficos, resumões etc. – o conhecimento deveria ser simplificado (quantificado) para se converter em mercadoria.

Víamos a ascensão daquilo que o educador Paulo Freire chamava de “concepção bancária de educação”: o professor deposita no aluno “conhecimento” (na verdade informações simplificadas) que será depois cobrado de volta nas provas.

A educação abandonava o campo do conhecimento para ingressar nas técnicas de transmissão e fixação de informação. Mas o professor ainda conseguia deter o seu ofício – fechava a porta da sala de aula e tentava manter o espírito escolástico. Daí, as desconfianças sobre o ofício do professor: ele transmite informação ou “ideologias”?


Segunda fase: industrialização do ensino


Com a chegada do grande capital de grupos e fundos de investimento, a educação supera a fase comercial (mercantilização) para ingressar na fase da industrialização. Depois da quantificação do conhecimento em informação, passamos para a operação mais delicada  porque envolve tanto aspectos pedagógicos quanto trabalhistas: não só a quantificação como a destituição final do próprio ofício do professor.

Assim como as máquinas com controle numérico substituíram e fragmentaram o ofício de metalúrgicos, também metodologias como as chamadas “ativas” ou por “competências” pretendem substituir o ofício do professor que doravante será definido por eufemismos como “instrutor”, “facilitador” ou “motivador”.

Se na primeira fase da mercantilização do ensino o conhecimento havia se convertido em informação, agora na fase da industrialização ele sofre uma nova mutação: vira “competências”.

As novas metodologias de ensino


Nas novas metodologias o conhecimento deixa de ser o objetivo central do processo educativo e passa a um papel secundário, dando-se prioridade às técnicas, as quais passam de meios para se converter em fins em si mesmos.

Se no passado a educação procurava a compreensão da realidade, o conhecimento (agora qualificado como um saber morto e sem valor nem de mercado e nem moral) é transmutado em “competências” avaliadas por meio de jogos e estratégias: responsabilidade, eficiência, iniciativa, execução, trabalho em grupo, adaptação às circunstâncias etc.


Para a escola o conhecimento (“conteúdo”) é um mero álibi para aplicar “metodologias ativas” onde os alunos desenvolvam competências subjetivas que mais tarde serão aferidas pelos RH em processos seletivos de empresas, garantido a “empregabilidade”.

Por exemplo, embora no Plano de Ensino esteja programado o tema “Semiótica”, grande espaço da aula é ocupado por “jogos educacionais” (dramatização, quebra-cabeças, aprendizagem baseada em problemas etc.) para “aumentar o interesse” na “retenção de conhecimento” e “solução de problemas”.

Se no passado a “metodologia” era tomada como ferramenta para conhecimento do mundo (objetivo, delimitação do tema, teoria, hipóteses, lógica, experimentação, interpretação de resultados etc.), agora a metodologia é centrada no próprio aluno de modo que ele assume a responsabilidade individual.

O “conteúdo” é “modulado” em uma série de slides de PowerPoint, conceitos reduzidos a definições curtas (slogans) e o restante é ocupado por processos grupais e dinâmicas interpessoais. O método é o fim em si mesmo. Não mais avalia-se conhecimento ou a sua produção, mas “disposições” – capacidade de auto-avaliar-se, atitude, feedback e assim por diante.

Método sem conhecimento


Falsamente os textos teóricos sobre essas metodologias se referem ao construtivismo pedagógico de Piaget e Vygotsky. Nada a ver. Na verdade essas metodologias nascem de um construtivismo filosófico: o radical relativismo epistemológico.

Se para Piaget e Vygotsky existe um mundo real através do qual o educando vai construindo o conhecimento a partir de experiências concretas, nessas metodologias industriais o que está em construção não é o conhecimento, mas a própria realidade – a construção de atitudes e aptidões subjetivas do educando é o fim primordial da educação.

Essas atitudes e aptidões serão aquelas buscadas pela psicologia organizacional nos processos seletivos de empresas: entrevistas, dinâmicas de grupos, dramatizações, jogos, testes para filtrar “habilidades”, “posturas” e “atitudes”.

Não é à toa que as disciplinas que envolvem o conhecimento racional da realidade são aniquiladas ou diluídas em EAD (Ensino à Distância): Filosofia, História, Sociologia, Antropologia etc.

Essas metodologias ativas e a educação por competências nada têm a ver com a construção do conhecimento, ciência ou pedagogia – na verdade o objetivo é satisfazer o princípio da “empregabilidade” – garantir que o aluno tenha as “disposições” exigidas pelo mercado.


A gestão do negócio


Quanto à escola ou universidade transformada, ela própria, em corporação, essas metodologias industriais vão trazer diversos benefícios para a gestão do negócio:

(a) com a substituição do ofício do professor pelas metodologias, as relações trabalhistas podem ser “simplificadas”: terceirização da finalidade fim é um exemplo.

(b) se as metodologias industriais são um fim em si mesmas, podem ser aplicadas em cursos de qualquer área (exatas, humanas, biológicas etc.). O que resulta que os professores podem ser intercambiáveis e, em muitos momentos, podem ser meros aplicadores de uma determinada “dinâmica”. Verificam-se situações bizarras onde um professor com pós em História transforma-se em “instrutor” em um curso de Contabilidade.

(c) com a diluição do ofício do professor, a organização educacional tornar-se fortemente hierarquizada: gestores e coordenadores podem intervir a qualquer momento no processo “educacional” – dessa maneira as demandas gerenciais, administrativas e pedagógicas se confundem a todo momento.

(d) e o grand finale: com a transformação do professor em “instrutor” ou “facilitador” seu salario é rebaixado – mestres e doutores são nivelados em a um mesmo ponto de partida salarial sob pretexto de “plano de carreira”.

Enquanto espertamente a grande mídia, certamente estimulada pelos grande grupos que oligopolizam a educação brasileira, da espaço para esse falso debate da Escola Sem Partido, corre solto o processo de desaparecimento do ofício do professor. Não por controle ideológico, mas pela industrialização do ensino.

A mordaça ideológica ainda era uma característica da fase anterior, a da mercantilização do ensino.

Hoje, com a industrialização do ensino, corremos o risco de em breve nem termos mais professor para ser amordaçado.

Postagens Relacionadas











Carma, metalinguagem e Fernando Pessoa no filme "Zoom"

$
0
0

“Zoom” é uma expressão inglesa com um duplo significado: poder ser “zunir” (“to zoom past” como “passar zunindo” ) ou a lente fotográfica que pode aproximar ou afastar-se de um objeto cujo movimento de ajuste produz um “zunido”. O filme “Zoom” (2015, Brasil-Canadá) de Pedro Morelli explora esse duplo sentido do termo ao criar três universos meta-narrativos (literatura, HQ e cinema) onde os protagonistas ignoram as existências paralelas, sem saber que suas decisões se afetam mutuamente: uma desenhista faz uma HQ sobre um diretor de cinema que faz um filme cuja protagonista escreve um romance sobre a desenhista de HQ. Zoom explora o simbolismo carmico de “ouroboros”, a cobra que come o próprio rabo. E o misticismo do silêncio do poeta português Fernando Pessoa.


Grosso modo há duas maneiras de explorar a metalinguagem no cinema ou na TV: quebrando a “quarta parede” (os personagens conversam com o espectador quebrando a parede imaginária que separa o público da tela) ou revelando o próprio artificialismo da narrativa audiovisual – o cinema mostrando a si mesmo, seu próprio dispositivo e narrativa.

Essa segunda maneira muitas vezes explora conotações místicas ou mesmo gnósticas. É caso de filmes como Um Sonho Dentro de Um Sonho, Mais Estranho Que a Ficção e Sinédoque, Nova York. Se o dispositivo cinematográfico guarda uma grande analogia com a caverna platônica (a realidade como uma tela de cinema a qual assistimos prisioneiros em uma caverna), a metalinguagem que denuncia que tudo o qual assistimos é um “constuctu” arbitrário e artificial teria, potencialmente, um forte simbolismo gnóstico.

Zoom (2015) de Pedro Morelli, uma co-produção Brasil e Canadá, explora esse tema da metalinguagem de forma radical, conectando três narrativas que ocorrem em diferentes mídias (live-action, HQ e filme) onde seus personagens ignoram as conexões existentes entre suas narrativas. O que resulta em três histórias interligadas onde o desenrolar de uma determina o destino da outra, produzindo uma narrativa emaranhada e recursiva.

Inspirado nas estruturas impossíveis como as escadarias infinitas do ilustrador holandês M.C. Escher, Morelli vai aos poucos no filme dando um significado místico às conexões entre os diferente universos paralelos – o simbolismo da circularidade cármica como a cobra que come o próprio rabo (“ouroboros”) e o misticismo do poeta português Fernando Pessoa.  


Todos os subtemas presentes no filme (a crítica da busca da perfeição, a maneira como nos tornamos prisioneiros de tendências visuais, a submissão da arte ao mercado etc.) se unem a uma surpreendente cosmologia gnóstica final: diferentes mundos podem estar conectados e o que chamamos de carma são, na verdade, resultantes dessas mútuas influências.

A consciência disso é o que chamamos de “iluminação” ou “gnose”, somente alcançável através do silêncio. A arte do silêncio, numa referência direta que o filme faz ao português Fernando Pessoa. Ele próprio, estudioso de textos místicos e gnósticos, cuja obra (os “heterônimos”) está permeada de referencias a esses seus estudos.

O Filme


Tudo começa com Emma (Allison Pill) que durante o dia trabalha numa pequena fábrica de bonecas eróticas. Todos esses corpos eróticos perfeitos pendurados ao seu redor devem ter contaminado sua mente, ao ponto de desejar ter enormes seios perfeitos, iguais aos da heroína das HQs que ela desenha em seu pequeno caderno.

Frustrada e prisioneira da sua vida e de seu corpo, Emma inventa um galã latino em sua HQ: Edward (Gael Garcia Bernal) onde vive uma glamorosa vida de diretor de cinema, famoso por fazer filmes hollywoodianos de ação e sexo. Mas Edward também está frustrado com o que faz, e decide, à revelia do estúdio, fazer um filme de arte: está rodando um filme sobre Michelle (Mariana Ximenes) uma modelo bem sucedida, mas também frustrada porque todos apenas valorizam sua beleza física.

Michelle aspira ser uma escritora e decide se rebelar: foge para uma praia de pescadores no Brasil onde terá paz para escrever sua romance. E qual a narrativa desse romance? A própria história da frustrada Emma que vive às voltas com os corpos perfeitos das bonecas eróticas.

Mas o devir desses universos paralelos em diferentes mídias (Emma, a literatura; Edward, a HQ; Michelle, o filme) são perturbados. Emma decide fazer uma cirurgia plástica para ter super-seios gastando todas suas economias. Arrependida e revoltada (todos apenas olham apenas para seus seios, o que faz Emma se sentir numa situação idêntica às bonecas eróticas que fabrica), ela investe a caneta contra o seu galã de HQ Edward, diminuindo o tamanho de seu pênis e sua virilidade.


Edward contava com seu desempenho sexual para manipular a executiva do estúdio e poder fazer o seu filme artístico sobre o drama existencial de Michelle. Sem essa “arma” Edward não tem como seduzir a executiva e impor seu projeto artístico ao Estúdio. Assim, Michelle fica perdida na praia brasileira e sem inspiração. E ainda com seu marido/empresário no seu encalço para levá-la à força de volta aos seus compromissos comerciais. O que repercute de volta na própria vida de Emma que começa a descer ladeira abaixo.

O filme consegue articular as diferentes linguagens para cada uma dessas mídias/mundos paralelos: no universo de Emma a linguagem em live-action; no mundo de Edward a animação em rotoscopia; e no universo fílmico de Michelle, a estereotipagem proposital como fosse uma típica produção hollywoodiana – os clichês dos filmes de ação e os estereótipos brasileiros da selva, erotismo, praia etc.

A gnose de Fernando Pessoa


Uma citação retirada do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, presente em duas linha de diálogo, parece conduzir a narrativa: “Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar”.

É sabido que a filosofia hermética é uma das facetas mais importantes de Pessoa. Paralelo à sua obra poética, o poeta português fez uma constante reflexão mística-filosófica. Por exemplo, em Carta a Ofélia, Pessoa dizia que “o meu destino pertence a outra lei”. Para ele, a vitória sobre o mundo, a carne e o diabo dá-se no “Ego íntimo” para fugir da “simbologia confusa da vida”. E como regra para alcançar a Iluminação, Pessoa aconselha: “o silêncio”.


Nada mais Basilidiano (Basilides, filósofo gnóstico do início da Era Cristã): para ele, a forma de alcançar a gnose seria através do singular estado da consciência de “suspensão”: o esvaziamento da mente por meio do silêncio, anulando toda forma de linguagem, conceitos e simbolismos que criam a ilusão da realidade.

O salto de fé


Em nossas pesquisas sobre os arquétipos do Gnosticismo no Cinema, vimos que narrativas que exploram esse tema basilidiano apresentam o personagem do Viajante. Em linhas gerais, são personagens bem sucedidos social e materialmente. Mas sentem que há algo incompleto e errado nas suas vidas.

Emma, Edward e Michelle são profissionais bem sucedidos, principalmente os dois últimos financeiramente e celebridades. A busca daquilo que lhes falta será através de uma “viagem” – Michelle e sua fuga para o Brasil para escrever seu romance e redescobrir sua sexualidade; Edward que filma a história de Michelle além de embarcar no freak out da perda da sua virilidade; e Emma na sua viagem para Buffalo para comercializar droga para pagar a retirada dos seios siliconados.

Os três protagonistas alcançarão a Iluminação (a descoberta de que suas vidas são de alguma maneira interligadas) em momentos de “suspensão” – impasse, entrega e salto de fé.

O “impasse mexicano” (onde três personagens apontam armas uns aos outros ao mesmo tempo) criando o estado de suspensão que leva ao insight de Emma que solucionará toda a confusão cármica entre os mundos paralelos. E, na sequência final, o salto de fé de Michelle do helicóptero para resgatar o manuscrito de seu romance e reescrever o destino de Emma.

Assim como nos filmes Vidas em Jogo ou Vanilla Sky onde o salto final (do alto de prédios) é o simbolismo do estado de suspensão e esvaziamento da mente, da mesma forma em Zoom a solução final (a gnose) vem do salto no vazio como prova de fé.


Carma é a cobra que come o próprio rabo


Zoom faz uma evidente aproximação da estrutura narrativa recursiva ao estilo das estruturas impossíveis de Escher com o simbolismo de ouroboros (a cobra que engole o próprio rabo) e o carma. O insight de Emma na situação do impasse mexicano fecha a conexão entre metalinguagem e carma: “Quando e faz uma coisa errada há consequências. Isso se chama carma. O Universo não gosta de ser sacaneado, ele sacaneia também.

Na gnose de Emma, os mundos da literatura, HQ e filme se encontram mostrando que tudo está conectado e influenciando-se mutuamente. A metalinguagem da indústria do entretenimento (o livro que se transforma em filme e que depois converte-se em HQ e animação) é a analogia cosmológica da própria existência – como no Zoroastrismo, ouroboros é o simbolismo da imortalidade da alma ou o círculo da natureza do carma, sugerindo que círculo retém o seu significado, mesmo quando os detalhes são obscurecidos pela vida.


A virtude de Zoom é não se perder nos delírios cult da metalinguagens e narrativas em abismo que transformou tantos filmes independentes em meros exercícios de estilo. Pedro Morelli procurou atribuir um significado mais místico à metalinguagem, embora menos explícito como em Mais Estranho Que a Ficção– onde o tema do confronto necessidade versus livre-arbítrio e homem versus Deus/Demiurgo é central.

Morelli preferiu explorar essa simbologia mística mais no plano icônico e narrativo como, por exemplo, no salto final do helicóptero ou na forma como os personagens ouvem a voz do seu criador vindo do outro universo narrativo: olhando para o alto como à procura de Deus.


Ficha Técnica


Título: Zoom
Diretor: Pedro Morelli
Roteiro: Matt Hansen
Elenco:  Gael Garcia Bernal, Alison Pill, Mariana Ximenes, Jason Priestley, Tyler Labine
Produção: Rhombus Media, O2 Filmes
Distribuição: Screen Media Films
Ano: 2015
País: Brasil/Canadá

Postagens Relacionadas



Notícias de ataques inspiram "assassinos copycat"?

$
0
0

Diante da sequência de ataques ocorridos na Alemanha, o site da Deutsche Welle (empresa de radiodifusão alemã) cogitou a possibilidade de o país estar sofrendo uma sequência de “assassinatos copycat”, efeito de contágio desencadeado por uma “fórmula dramatúrgica” através da qual a mídia vem tratando diferentes eventos. Atentados terroristas genuínos e ataques de assassinos solitários são descritos dentro de um mesmo script sensacionalista, criando um gigantesco “efeito Heisenberg”: a mídia está cada vez mais cobrindo a si mesma e os seus efeitos sobre as pessoas.

Nas históricas nevadas de 1996 na Costa Leste dos EUA, que nas transmissões ao vivo pelo canal CNN eram consideradas a maiores do século deixando Nova York e mais dez estados sob quase meio metro de neve, ocorreu um fato inusitado: embora a CNN alertasse os telespectadores a não saírem de casa, câmeras mostravam pessoas caminhando pelas ruas. E elas declaravam para as mesmas câmeras o porquê de estarem arriscando o pescoço: queriam fazer parte de um evento considerado pela TV o maior do século!

 Para o jornalista Neal Gabler a mídia parece estar cada vez mais cobrindo a si mesma e os seus efeitos sobre as pessoas. Gabler chamou isso de “efeito Heisenberg” numa referência ao princípio quântico da incerteza quando a luz que permite que observemos uma partícula interfere no próprio momentum da partícula.

Uma das facetas desse efeito Heisenberg midiático é o chamado “efeito copycat”: há evidências crescentes de que um ato de assassinato em massa irá inspirar outros a cometer crimes semelhantes. Relatos sensacionalistas da mídia sobre carnificinas como as ocorridas em Munique e numa casa de repouso no Japão desempenham um papel crucial na criação de “assassinos copycat”.


Quem admitiu essa hipótese, há muito discutida por pesquisadores e por esse blog, foi artigo publicado no site da Deutsche Welle de 26 de julho sobre o impacto dos últimos ataques ocorridos na Alemanha – clique aqui.

O artigo aponta que o ataque no shopping center em Munique ocorreu exatamente cinco anos após o extremista de direita Andres Breivik matar 77 pessoas na Noruega. Segundo a reportagem, há uma possibilidade de que o massacre do norueguês ter sido um modelo para o assassino de Munique.

Período de contágio


A Deutsche Welle ainda cita a pesquisa do estatístico Sherry Towers, da Universidade Estadual do Arizona. Em 2015 debruçou-se no que ele chama de “efeito de contágio” de notícias sobre atiradores em massa. Towers afirma que notícias sobre esses eventos de ataques (com quatro ou mais mortes) criam um período de contagio que dura em média 13 dias.

“Esse tipo de pensamento contagioso não é implausível”, disse Towers. Jovens podem ser suscetíveis a ideias de suicídio ao ver esses eventos na mídia. “Assassinatos em massa e tiroteios em escolas que atraem mais a atenção dos meios de comunicação podem, potencialmente, fazer a mesma coisa em escala maior”, observou Towers.

Assassinos em massa são sempre assassinos copycat. Para Towers, sempre procuram um modelo de referencia que emulam e até tentam superar.

Britta Bannenberg, advogado e criminalista de Giessen, Alemanha, descreve que muitos deles escrevem diários ou inventam histórias onde descrevem o incidente. Planejam seus ataques com semanas de antecedência. Eles leem sobre outros incidentes e assistem a documentários e vídeos. Cercam-se com armas reais ou falsificadas, escrevem notas de despedidas e pensam no que vão vestir durante o tiroteio.

Bannenberg acrescenta que esses assassinos copycat ainda jogam vídeo-games com simulações de situações análogas a que enfrentarão para imaginar a si mesmos realizando as ações.

Ataques na Noruega em 2011

A mídia é essencial para esse tipo de assassino pois fornece informações sobre os ataques anteriores, fazendo o atacante se identificar com modelos de vingança.

O artigo da publicação alemã cita ainda um conhecido pesquisador desse blog, o norte-americano Loren Coleman, autor do livro The Copycat Effect: how the media and popular culture trigger the mayhem in tomorrow’s headlines.

De acordo com Coleman, nas reportagens sobre esses eventos devem ser evitadas certas expressões como “ataque bem sucedido” ou “suicídios mal sucedidos”. Além de estereótipos como “uma pessoa comum” (“the boy next door”) ou “lobo solitário”. Para Coleman, jornalistas devem relatar objetivamente tais eventos.

Para o psicólogo alemão Jens Hoffman, referindo-se ao assassino de 19 anos que matou 16 pessoas na sua escola em Erfurt, Alemanha, em 2002, “se assassinos como Robert Steinhäuser não forem nem demonizados e nem apresentados como inocentes, suas biografias futuras retratarão seus conflitos interiores e fraquezas. Dessa forma a função de modelo de assassino em massa pode ser enfraquecida”.

“Copycat” é uma expressão em inglês que tem a sua origem no fato de que filhotes de gato tendem a imitar o comportamento da mãe.


Fórmulas dramatúrgicas


Uma das bases teóricas explicativas do chamado efeito copycaté a “Teoria da Aprendizagem Social”, ou “Teoria da Modelagem”. Essa abordagem sustenta que os indivíduos podem aprender determinados comportamentos socialmente, de maneira informal, fruto da mera observação.

Através da observação de comportamentos considerados como “modelos” produziriam resultados também almejados por outras pessoas. A imitação ocorreria na expectativa de obter os mesmos resultados observados na ação ou comportamentos modelados.

A questão é que a mídia não relata simplesmente os eventos, mas sempre os insere dentro de “fórmulas dramatúrgicas” que podem acabar criando “modelos bem sucedidos” no mundo real.

O que torna ainda mais irresponsável estratégias propagandísticas como a recente do ministro da Justiça Alexandre de Moraes em convocar a imprensa para divulgar “investigações sigilosas” sobre suposta “célula amadora” do ISIS em território brasileiro a poucos dias dos jogos olímpicos. “Modus operandi” e as mesmas fórmulas dramatúrgicas foram didaticamente apresentadas – sobre isso clique aqui.

E ainda aproveitando o timing do ataque em Nice e aqueles ocorridos na Alemanha, criando a percepção de algum potencial fenômeno endêmico.  O que pela hipótese do efeito copycat, apenas cria o cenário ideal para mais comportamentos modelados.


De traficante a terrorista


E para piorar, obedientemente a grande mídia quer transformar a ação de relações públicas do ministro em uma grande suíte jornalística como se verificou no recente episódio da prisão de um traficante de drogas libanês em São Paulo.

Procurado pela Interpol por tráfico internacional de drogas desde 2013, Fadi Hassan Nabha, foi preso ontem em São Paulo por falsidade ideológica.

Na transmissão ao vivo pela Globo News, o repórter, diante da delegacia de polícia onde o traficante se encontrava, reportou a trajetória do libanês com o tráfico de drogas desde 2002. Mas nada falou sobre uma suposta conexão com o terrorismo do Hezbollah, embora a manchete colocada nas imagens fosse essa.

Hoje, toda a grande mídia segue obedientemente a angulação iniciada pela Globo News:  uma notícia que deveria se restringir apenas às páginas policiais, passa a ser enquadrada como mais um evento dentro da retranca “Ameaças Terroristas na Rio 2016”.

Scripts midiáticos como esses, onde eventos a princípio isolados são reunidos em uma mesma retranca como se estivessem ocorrendo dentro de uma ação geral deliberada, é o típico modelo de comunicação que pode criar assassinos copycat.

Se essa hipótese for verdadeira, o contínuo midiático seria um gigantesco efeito Heisenberg: se na sua essência as ações terroristas são voltadas exclusivamente para a repercussão midiática chegamos a uma situação na qual ficaria impossível distinguir um genuíno evento terrorista de um assassinato em massa copycat.

Postagens Relacionadas











Curta da Semana: série "Bendito Machine" - relaxe, tudo está sob controle

$
0
0

“Relaxe, tudo está sob controle” é o que sempre parecem nos dizer as máquinas e as tecnologias. Por isso elas nos fascinam e nos gratificam a ponto de se tornarem modernas religiões. É o que nos mostra a série com cinco curtas de animação “Bendito Machine” (2006-2014). Produzida pelo estúdio espanhol Zumbakamera, cada episódio apresenta máquinas que sempre parecem “defecar” pequenas criaturas globulares com olhos que nos controlam por meio da oferta dos prazeres da ambição e gula. Em tempos de apps virais como o Pokémon GO chegando em terras brasileiras, assistir a essa série é obrigatório.


O homem é controlado e corrompido pela sociedade. Mas a sociedade é feita pelos homens. Quando falamos em sociedade, Estado, corporações, parece que falamos sobre abstrações. Afinal, todas essas instituições são feitas pelos próprios homens. O homem é vítima ou é o culpado?

Marx avaliava que a sociedade capitalista da luta de classes e dominada por uma classe exploradora era a culpada. Mas o Estruturalismo, tanto na antropologia, linguística e psicanálise, falava em uma “estrutura inconsciente” simbólica que estaria acima dos próprios homens, subjugando-os.

Adorno e Horkheimer juntaram tudo isso na interpretação do drama de Ulisses na Odisseiade Homero na famosa  narrativa da ameaça das sereias ao navio do herói: Ulisses se deixa amarrar no mastro da sua nau enquanto os remadores estão com os ouvidos tampados com cera para não ouvirem o perigoso canto das sereias que fazia afundar navios. Ulisses amarrado à embarcação e os remadores surdos era para a dupla de pensadores a metáfora da elite e trabalhadores de todas as épocas amarrados às estruturas da civilização que segue o rumo inexorável – sobre isso leia o livro ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, Dialética do Esclarecimento, Zahar, 1985.


A série de cinco curtas de animação Bendito Machine (2006-2014), do estúdio espanhol Zumbakamera, entra nesse debate. Para o diretor Jossie Malis existem estruturas de dominação, exploração e poderes invisíveis. Mas tudo surge de estranhas máquinas: cada episódio narra o catastrófico surgimento de uma nova raça de máquinas e seus insólitos vínculos humanos com a tecnologia. Uma relação de amor e ódio que se transforma em espelho daquilo que nós somos.

São animações feitas em Flash que nos oferece reminiscências do primitivo teatro de sombras. Os episódios fazem uma mescla de maquinismo industrial, cultura tribal, pré-história enquanto os humanos enfrentam sua própria “evolução” à mercê de guerras, avanço tecnológico e forças desconhecidas.

Os episódios


O primeiro episódio lança os conceitos mais gerais que nortearão todos os outros episódios da série. Vemos uma tribo primitiva que idolatra uma máquina que “produz” (na verdade parece que defeca, como todas as outras máquinas que virão) criaturas globulares com imensos olhos que são recolhidos e levados para a aldeia.

Um dia, uma aldeia rival “modernista” destrói a máquina, para construir uma máquina maior que produz “olhos”  com muito mais rapidez. Logo a máquina transforma-se numa indústria que enriquece a aldeia, produzindo uma nova elite e uma estrutura de classes.

Esse primeiro episódio contém uma série potencial de simbolismos. A velha tribo representa uma religião primitiva, destruída por uma nova religião: a indústria e o comércio.

Máquinas que defecam olhos que, depois, serão comercializados ou vendidos é um conceito presente em todos os episódios. As máquinas parecem alimentar seus usuários primeiro com a fé, na religião primitiva. Depois, com ganância e gula que torna a moderna religião muito maior, até encontrar a sua decadência.


A primeira associação que o leitor poderá fazer com essas criaturas globulares é o olhar da vigilância e controle. Mas a série acrescenta uma nova interpretação a esse imaginário Big Brother: as máquinas e as criaturas com imensos olhos vigiam e controlam, mas também nos fascinam porque nos dão prazeres. Em consequência geram controle por dependência.

No segundo episódio Bendito Machine 2 (2008) uma espécie de vaca acoplada a outra máquina sagrada é tomada para das suas tetas produzir um leite em escala industrial que produz divertida alucinação coletiva nos habitantes da aldeia, enquanto o dono da caixa registradora enriquece – a analogia com a Coca-Cola é irresistível.

Como sempre, há ascensão e queda, mas nunca superação: uma nova “vaca sagrada” é criada que produzirá agora novas pequenas criaturas globulares com olhos que perpetuam no futuro a ganância e gulodice.

Em Bendito Machine 3 (2009) o tema são as máquinas de comunicação que se tornam deuses tecnológicos. São adorados um após outro. Cada um deles oferece gratificação e entretenimento. Até cada um deles tornar-se obsoleto para, então, ser jogado em um lixão tecnológico. Vemos a sucessão do rádio, TV e Internet. A máquina-TV é agressiva, impõe modismos, assusta crianças, cria guerras e violência. Até ser jogada no lixão e entrar a máquina-Internet-discada. Que rapidamente é substituída pela máquina-internet-banda-larga, uma máquina ameaçadora e tentacular.

Bendito Machine 4 (2012) nos mostra as máquinas produzidas pela matriz energética do petróleo: poluição, catástrofe ecológica são ignoradas diante da adoração e fascínio pela nova religião dos derivados do petróleo. A religião é tão poderosa que os seus discípulos pretendem expandir o domínio para outros planetas pelas viagens espaciais. Mas, como sempre, a humanidade encontra a sua queda numa sequência que lembrará uma antiga animação francesa chamada Planeta Fantástico (La Planèt Sauvage, 1973) – analisado pelo blog, clique aqui.


Bendito Machine 5 (2014) apresenta uma visão condensada da história humana, testemunhada por um pobre ET que chega ao planeta em meio às guerras do império romano. Acaba aprisionado e esquecido. Contra a vontade, acaba testemunhando toda a história humana evoluindo das armas mais primitivas à destruição nuclear.


Agora o Estúdio Zumbakamera prepara o episódio 6 que pretende ser o episódio final: narrará a viagem de uma solitária máquina perdida nos confins do Universo em busca de respostas. Encontrará uma força suprema (que ao longo da série parece existir, sempre interferindo em momentos decisivos a partir do alto) que inevitavelmente mudará a existência para nos levar a um ponto de retorno trágico e hilariante.

Ao longo dos anos, a série foi selecionada em 500 festivais ao redor do mundo e recebeu 86 prêmios pelo público e por jurados.









Globo promete cobertura tautista das Olimpíadas

$
0
0

Metalinguagens e efeitos visuais tautológicos dominaram a cobertura do programa Fantástico do último domingo sobre as Olimpíadas Rio 2016, com a mesma estética apoteótica das transmissões do Carnaval, dando o tom geral da cobertura da emissora. Mais do que mau gosto, é a evidência do “tautismo” (autismo + tautologia) crônico da Globo nos anos recentes. Para uma emissora que se fechou em si mesma como reação à crise de audiência e a concorrência das mídias de convergência, não existe mais mundo externo: as Olimpíadas só acontecem no Rio para que a Globo possa transmiti-la. E o auge do tautismo é quando jornalistas começam a entrevistar outros jornalistas da própria emissora. Para a Globo, a cobertura jornalística em si é mais importante do que o próprio evento e os relatos das emoções de seus apresentadores é mais dramático do que as dos próprios atletas.


Em pouco mais de uma hora da cobertura dos preparativos para o início das Olimpíadas no Rio no programa Fantástico, um terço do tempo (algo em torno de 20 minutos) foi dedicado a um exercício de metalinguagem: a Globo falando dela mesma sobre como vai cobrir o evento. O ápice da contínua auto-referência foi quando um jornalista entrevistou outro jornalista da própria emissora.

O restante do tempo, a emissora nada mais fez do que transformar o evento em uma espécie de suíte da pauta do seu telejornalismo da últimas semanas: a suposta ameaça de terroristas brasileiros de uma “célula amadora” (segundo o ministro da Justiça Alexandre de Moraes) e o escândalo do esquema de dopagem generalizada de atletas russos.

A novidade foi a mudança de humor e atmosfera da cobertura jornalística: uma pauta pra lá de positiva, bem diferente da Copa do Mundo de 2014 com denúncias de arenas superfaturadas, previsões sombrias sobre um possível caos nas telecomunicações e obras de infraestrutura que jamais seriam inauguradas.

A mudança da pauta da grande mídia: da Copa negativa às Olimpíadas positivas

Dessa vez, haverá legado olímpico (a infraestrutura de transporte do Rio de repente passou a funcionar), bem diferente da Copa onde tudo era reportado como um grande gastança de dinheiro público. Agora o pensamento é positivo e patriótico. Afinal, a torre de marfim do estúdio da Globo está no Parque Olímpico. Por isso, repetir o baixo astral da Copa não vem ao caso.

O que é “tautismo”?


Tudo isso evidencia que a TV Globo fará uma cobertura tautista (autismo + tautologia) do evento olímpico, confirmando a tendência dos últimos anos que coincide com a sua queda vertical de audiência. Autista porque a linguagem começa a misturar elementos de ficção e não-ficção onde a cobertura torna-se mais importante do que o próprio evento; e tautológico pela lógica auto-referencial onde as fronteiras entre o “dentro” e “fora” começam a desaparecer.

Tautismo é um neologismo criado pelo pesquisador francês Lucien Sfez para designar o que ele chama de “comunicação confusional”: traço dominante contemporâneo onde o processo comunicacional teria se tornado um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto é, a comunicação como o seu próprio objeto.

Seguindo o paradigma dos estudos sobre sistemas dos pesquisadores Varela e Luhumann, para Sfez o tautismo é o resultado da hipertrofia de sistemas que de tão grandes e complexos começam a se auto-organizar e fechar em si mesmos – “auto-organização” e “fechamento”, como chamado nos estudos sistêmicos – sobre isso leia SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000.

Por “fechamento” entende-se o momento no qual quando o sistema troca informações com o mundo externo, qualquer dado exterior é traduzido por uma descrição que o sistema faz de si mesmo.


Da metalinguagem ao fechamento operacional


A TV Globo sempre abusou das metalinguagens como forma de demonstração do seu poder tecnológico e financeiro em relações às concorrentes. O estardalhaço com que falava da câmera nos trilhos sobre os boxes do autódromo de Interlagos ou da sua câmera exclusiva nas transmissões das copas do mundo sempre foi para a emissora uma prova inconteste do seu monopólio das comunicações no País.

Embora ainda a TV Globo mantenha o seu poder econômico graças a sua estratégia de BV (Bônus por Volume) para garantir a maior parte do bolo das verbas publicitárias, seu poder simbólico vem decrescendo com a constante queda de audiência e a concorrência das tecnologias de convergência e Internet.

Como um sistema de comunicação que cresceu, tornou-se hegemônico e complexo com seus interesses e ingerências na política brasileira, a Rede Globo começa a expor as características de todo sistema: buscar a todo custo o equilíbrio, prevenindo que qualquer informação que venha do ambiente exterior possa desestabilizá-lo. Isso se chamaria “fechamento operacional”.

Por isso, diante das novas condições políticas (parcialmente resolvidas com o afastamento da presidenta Dilma e o sucesso do afastamento do PT do poder) e tecnológicas (ainda não resolvida com o ameaça das redes sociais, blogs e dispositivos móveis) a Globo radicalizaria esse processo de fechamento para tentar expurgar qualquer evidência de decadência.


O destaque dado à “célula amadora” brasileira supostamente cooptada pela Internet como ameaça terrorista real torna-se uma tradução do mundo através da projeção de uma descrição que a Globo faz de si mesma: transformou-se numa pauta obrigatória das Olimpíadas, para provar como a Internet e novas tecnologias seriam, em si mesmas , criminógenas – vício, pedofilia, violência de torcidas de futebol, golpes cibernéticos etc. 

 Mas o momento culminante desse autismo e recorrente auto-referência é quando jornalistas entrevistam outros jornalistas do próprio grupo – o repórter José Burnier “entrevistou” o locutor Galvão Bueno sobre suas impressões de décadas cobrindo olimpíadas.

Jornalistas entrevistando outros jornalistas sempre foi um fato corriqueiro em coberturas extensivas como Copa do Mundo e Olimpíadas: sem notícias novas, inventam-se pautas para encher buracos da programação.

Mas nos tempos recentes da Globo isso vai além: transforma-se em tautismo. Por exemplo, no programa Estúdio I do canal Globo News tornou-se corriqueiro a apresentadora Maria Beltrão e seus comentaristas entrevistarem repórteres do jornal O Globo – nos últimos dias abordando os temas da violência no Rio e a ameaça terrorista no Brasil. O que contradiz qualquer parâmetro de uma suposta objetividade que o jornalismo sempre prezou.

A natureza tautológica, auto-referencial e de circularidade fica exposta: o repórter apenas confirma a pauta que ele já conhece de antemão da redação do programa que o entrevista.


Efeitos visuais tautistas


As imagens aéreas do Globocop (o helicóptero da emissora) do Parque Olímpico, mostravam o estúdio da Globo como edifício central do complexo esportivo.  O tom apoteótico dos apresentadores produziu o mesmo efeito das coberturas do desfile das escolas de samba no Sambódromo: assim como o Carnaval, também as Olimpíadas só acontecem para que a Globo possa transmitir.

Mas esse efeito apoteótico como um samba enredo do Carnaval não fica apenas por aí. Os efeito visuais em chroma acrescentam mais um elemento tautológico no tautismo da linguagem global. A função dos antigos “selos” (composição de elemento gráfico que identifica editorias ou temas da pauta do telejornal) na linguagem telejornalística, que sempre se posicionavam atrás do apresentador, agora pulam para frente, no meio do estúdio em efeito 3D.

Se o tema é vôlei de praia, aparece areia no estúdio com um jogador preparando uma cortada na rede. Apresentadores e convidados se esforçam em tornar orgânico o efeito, mas sem sucesso. O efeito não é informativo, mas de mera repetição ou saturação semântica semelhante aos efeitos neobarrocos das coberturas de carnaval.

O mesmo ainda acontece com as chamadas “mesas táticas” de futebol (agora evoluindo para “piscinas táticas” e “quadras táticas”) onde do didatismo também pula para a redundância daquilo que o comentarista já havia dito durante a partida.

A função geral não é mais informativa – sistemas tautistas se tornam cegos ao mundo externo; aliás, o lado de fora só existe para confirmar o que já está dentro.

A função é tautológica e, mais além, ideológica. Desde os tempos da estética Hans Donner, o futurismo das bancadas de telejornais da Globo que pareciam naves espaciais procurava criar uma atmosfera de tecnologia, neutralidade e transparência – no senso comum, tudo que soa “científico” e “tecnológico” é neutro e confiável.

Essa continua sendo a função ideológica tanto do estúdio de vidro da Copa do Mundo como a atual torre de marfim no Parque Olímpico, repleta de efeitos de chroma e holografia: criar a aparência de objetividade jornalística, mesmo que seja através de uma estética tautológica e apoteótica como um samba-enredo no Sambódromo.

Postagens Relacionadas












Estranhas forças governam nossas vidas em "Harodim: Olhe Mais Perto"

$
0
0

Paul Finelli, roteirista que nunca teve uma obra adaptada por algum estúdio de Hollywood, escreve em 2010 outro roteiro, dessa vez sobre a morte do líder da Al-Qaeda Osama Bin Laden. Roteiro que tinha tudo para ser engavetado. Até que, um ano depois, Paul Finelli assistiu perplexo na TV as imagens da morte de Bin Landen por SEALs da Marinha dos EUA no Paquistão. A narrativa dos eventos era quase um espelho do seu roteiro. A realidade imitando a ficção foi o início da produção do filme “Harodim: Olhe Mais Perto” (2012), uma produção austríaca do Terra Mater, estúdio que afinal se interessou pelo roteiro de Finelli. O líder terrorista mais procurado do mundo é capturado e levado por um ex-especialista em black-ops da Inteligência dos EUA para um lugar desconhecido no metrô de Viena. Lá assistimos a uma hora e meia de interrogatório onde serão feitas aterrorizantes revelações sobre fatos da história recente desde os atentados do 11 de setembro nos EUA. E que há forças por trás da nossa vida ordinária que estão muito além do livre-arbítrio. Filme sugerido pelo nosso leitor Romeu.


Paul Finelli é um roteirista que passou vários anos trabalhando em Los Angeles. Apesar de várias sondagens, nenhum dos seus roteiros acabou adaptado por algum estúdio de Hollywood. O que o levou a se mudar para Pittsburg, Pennsylvania.

Lá, em 2011, Finelli experimentou um verdadeiro evento sincromístico: assistiu na TV a notícia da morte de Osama Bin Laden por forças americanas especiais no Paquistão. O que o abalou é que a notícia aproximou-se da narrativa de um roteiro escrito por ele em 2010 – era quase um espelho dos fatos relatos pela mídia. Para ele, o roteiro dos episódios traumáticos de 09/11 precisava de um fechamento emocional depois de uma década e, por isso, escreveu um roteiro sobre isso.

Para Finelli, a coisa mais assustadora foi ver no noticiário a ficção sendo materializada através da ação dos SEAL da Marinha naquela operação de busca de Bin Laden.

Antes disso Finelli tinha feito uma ponta no filme The Breath of Heaven (2010) do cineasta austríaco Reïhold Bilgieri. O que fez conhecer o produtor Thomas Feldkicher da Terra Mater Studios. Sob esse impacto sincromístico (a “coincidência” entre a realidade e a ficção), Fedkicher topou produzir o roteiro de Finelli de 2010 e rodar o filme Harodim (2012).


O filme Harodimpoderia facilmente entrar na lista de mais uma teoria da conspiração sobre os eventos que cercaram os atentados de 2001 nos EUA. Porém, o que torna o filme atual e obrigatório são as denúncias do ano passado feitas pelo jornalista ganhado do Prêmio Pulitzer Seymour Hersh de que a morte de Bin Laden não foi alvo de uma operação arriscada e secreta, mas de uma execução fria com a colaboração entre EUA e Paquistão, país onde o terrorista estava escondido há cinco anos – sobre isso clique aqui.

O que se aproxima da narrativa de Harodim: Bin Laden teria sido útil no “trabalho Interno” de 09/11 para reconfigurar a política internacional pós-Guerra Fria – a implementação em escala global da ameaça do “terrorismo internacional” com o fim do bicho-papão da URSS e do Comunismo. Sadam Hussein teria sido um ensaio dessa nova estratégia durante a Guerra do Golfo, em 1991. Quando Al-Qaeda e Bin Laden deixaram de ser úteis, foram friamente eliminados. Hoje temos a ameaça do ISIS.

O Filme


Para evitar que Harodim terminasse como mais uma obra na lista das teorias da conspiração, Finelli evitou seguir a linha documental com uso exclusivo de notícias e imagens de arquivos. Para a ideia do filme funcionar, a narrativa deveria ser convincente de outra maneira. Em uma linha que apagasse a fronteira entre realidade e ficção e acusar a mídia utilizando o seu próprio material jornalístico.

Por isso, Finelli preferiu a linguagem live action, uma forma mais humana e ao mesmo tempo metafórica. A narrativa se desenrola como fosse uma peça de teatro, confinado em um local (uma sala no subterrâneo do metrô de Viena), onde os personagens interagem criando uma sensação de intimidade. Mas, ao mesmo tempo, mediado por imagens documentais e midiáticas da história recente.

Lazarus Fell (Travis Fimmel) é um ex-SEAL da Marinha, um expert em operações secretas (black-ops) e que busca vingar o seu pai, Salomon Fell (Peter Fonda) que pertencia a Inteligência militar dos EUA, presumivelmente morto no atentado ao WTC em 2001.


Lazarus abandonou a Marinha, filhos e esposa, simulando sua própria morte, para dedicar a sua vida na busca do líder da Al-Qaeda que planejou os atentados: o Terrorista (Michael Dessant) – a narrativa sugere implicitamente que o Terrorista seria o próprio Osama Bin Laden, após submeter-se a uma cirurgia plástica, tornando-se irreconhecível para os seus propósitos de fuga.

Após mais de dez anos de busca, Lazarus consegue capturar o Terrorista para leva-lo a um quarto subterrâneo em algum lugar no metrô de Viena. Lá o interrogará para descobrir toda a verdade, gravar um vídeo desse interrogatório enquanto torce para que seu prisioneiro fuja para ter o pretexto de matá-lo.
Mas se a agenda de Lazarus é a vingança, para o Terrorista é tentar convencer ao seu algoz que ele nada mais foi do que um peão sem vontade nas mãos de sociedades secretas cujo poder emanaria da política e do mundo das finanças internacionais, responsáveis  por eventos desde o incêndio no Reichstag de 1933 (que levou Hitler ao poder) passando pela Guerra Fria, Al-Qaeda e aquecimento global.

Para o Terrorista o tempo está esgotando: se a sua morte não for pelas mão de Lazarus, será pelas mãos dessa elite que constrói a Nova Ordem Mundial. Por isso o espectador assiste a uma hora e meia de diálogos intimistas, argumentações, exercício de lógica e retórica onde Lazarus perplexo ouve as revelações e as comprova ao hackear arquivos da Inteligência norte-americana em seu laptop.


A jornada pela busca da Verdade


O que torna a narrativa do filme interessante é que a jornada em busca da verdade de Lazarus é também a viagem do próprio espectador. Ele representa uma espécie de pureza e inocência (bom filho e obediente que busca vigar a morte presumida do pai e revelar a verdade ao mundo através da sua gravação) diante da terríveis revelações de uma elite onde os fins justificam os meios.

A queda das torres gêmeas sacrificando milhares de almas, guerras bélicas e biológicas com o propósito de eliminar 80% da população mundial para proteger o planeta da explosão populacional (para a elite, a verdadeira causa do aquecimento global e da crise energética é a explosão populacional) etc. , demonstram que os maiores males da História foram perpetrados por homens que viram um suposto bem maior. E que por trás de cada ação para realizar esse bem, estava a violência, o hediondo e o cruel.

Como próprio diretor afirma, ele não é um teórico da conspiração. Embora o título do filme, “Harodim” seja um termo maçônico que designava os supervisores e superintendentes dos trabalhos durante a construção do Templo de Salomão, ou seja, os Oficiais Superiores de uma loja maçônica.

O seu propósito com o filme é fazer o espectador rever esse modus operandi presente em toda História humana: os maiores crimes são sempre praticados em nome de ideais nobres. Aliás, ideais que sempre foram meros pretextos para um objetivo muito maior do que dominar corações e mentes: para as pesquisas em Parapolítica, dominar as almas com a aproximação do mundo etérico (o "Umbral") com o mundo terrestre através da qual falanges do mundo espiritual disporiam mais energias para-psíquicas para submeter o astral da humanidade - sobre isso clique aqui.   

Além disso, o filme pretende fazer o espectador pensar o quão simplista e conveniente é a visão da História passada pelos meios de comunicação.


Osama Bin Laden: ficção e realidade


Daí a ideia de tornar o personagem  ambíguo: a sua trajetória narrada no filme (de uma família rica saudita, educado em universidades ocidentais e com negócios no setor petrolífero e de armamentos com famílias de magnatas norte-americanos) é parecida com a suposta vida de Osama Bin Laden.  Aliás, segundo o próprio diretor, em suas pesquisas nada encontrou de real em Bin Laden. Não havia nenhuma indicação de qualquer ser humano real por trás de qualidades quase supra-humanas, sejam de habilidades ou de crueldade.

Por isso, Paul Finelli propõe um interessante jogo para o espectador: a partir de um personagem ficcional convertido em monstro mitológico pela mídia, encontrar nele alguma humanidade paradoxalmente em um personagem de uma obra , a princípio, de ficção.

Dessa maneira, Harodimtransita o tempo inteiro entre os gêneros Thriller e Documentário. O filme cruza totalmente a classificação por gêneros: parte do evento real de 11 de setembro de 2001, entrelaçando com a vida de três personagens fictícios permeado com imagens de arquivo de telejornais e documentários.

Harodim é mais uma obra que é o sintoma de uma sociedade que desconfia de si mesma. Um filme que pode ser facilmente estereotipado como “teoria da conspiração” da linha de produções como Zeitgeist, JFK de Oliver Stone ou Anjos e Demônios.

Mas se toda ideologia teve o seu momento de verdade, as teorias da conspiração não podem ser simplesmente descartadas como mentira ou delírio. No mínimo, é o sintoma de uma íntima desconfiança gnóstica de que a vida cotidiana é governada por forças que vão além do nosso livre-arbítrio.


Ficha Técnica


Título: Harodim: Olhe Mais Perto
Diretor: Paul Finelli
Roteiro: Paul Finelli
Elenco:  Peter Fonda, Michael Dessante, Travis Fimmel
Produção: Terra Mater Factual Studios
Distribuição: Terra Mater Factual Studios
Ano: 2012
País: Austria

Postagens Relacionadas











O professor sabe que vai ser demitido quando...

$
0
0

Esse humilde blogueiro resolveu dar uma pequena contribuição à Antropologia Corporativa. No momento em que escolas e faculdades estão sendo rapidamente adquiridas por grupos educacionais nacionais e internacionais, oligopolizando o setor, a cultura organizacional escolar cada vez mais se assemelha à cultura corporativa. Principalmente naqueles sinais que indicam que o professor vai ser demitido como um mal necessário na implantação das novas e revolucionárias ferramentas organizacionais e educacionais trazidas por messiânicos gestores e CEOs. Fique atento a esses sete sinais. Eles podem também ser estendidos ao mundo corporativo em geral.

1. Sua escola/faculdade foi adquirida por algum grupo educacional estrangeiro ou nacional


A instituição onde leciona é a mais nova unidade dentro de um grupo educacional. Como primeiro passo, certamente terá sua estrutura organizacional rapidamente hierarquizada e verticalizada. Isso requer muito atrito e desgaste político e pessoal dos gestores. Principalmente porque a instituição escolar vai adquirir o cacoete corporativo (mudanças culturais e organizacionais) e se chocará com uma tradicional cultura acadêmica.

Por isso, o comportamento dos gestores e CEOs se assemelha muito ao dos leões machos recém-chegados: quando entram em cena e desposam a leoa, matam os filhotes da cria anterior em um chocante infanticídio. Dentro da lógica evolutiva, tem a ver com a sobrevivência da espécie para que os novos pais não gastem energia cuidando da cria anterior.

Gestores verão professores mais antigos, ou pelo menos anteriores ao “desposamento”, como ameaças em potencial de atritos. Às favas experiência, títulos, proficiência etc. Sistemas corporativos tornam-se tão hierarquizados e repletos de gestores, controllers, diretores (sob deliciosos eufemismos como “reitor”, “pro-reitoria” etc.) que fecham-se em si mesmos. Pouco importa o insumo (in put) ou o produto (out put):  o sistema de auto-reproduz simplificando o que entra (professores) e o que sai (educação).


2. Você leciona há muito tempo na escola/faculdade


Se o professor estiver há pelo menos uma década na instituição adquirida, será visto pelos gestores como alguém frustrado, desmotivado e  com benefícios e prerrogativas que poderão se tornar uma pedra no sapato para as novas “revoluções” organizacionais, trabalhistas e pedagógicas.

Gestores educacionais veem a si mesmos como orgulhosos messias dos novos tempos. Por isso, tornam-se seres perigosamente impulsivos, acima do bem e do mal, imbuídos de um emergencial espírito de justiça.

Certamente essas revoluções messiânicas organizacionais (terceirizações, contratos de curto prazo etc.) e pedagógicas (metodologias ativas, educação por competências) entrarão em choque com os saberes da trajetória acadêmica tradicional – mestrado, doutorado, pós-doc.

O psicólogo Alberto Merani em seu livro clássico de crítica à Human Engineering, Psicologia e Alienação (Paz e Terra, 1977) já demonstrou como a alta capacitação educacional entra em choque com a moderna organização do trabalho: profissionais com formação elevada têm muita expectativa de realização no trabalho. Muitas vezes frustram-se ao se verem num cargo/função com uma atividade tão simplificada e com pouco espaço de criação que não exigiria, a princípio, a formação que possuem.

Por isso, a organização muda o foco da formação para competências técnicas, comunicacionais e de inteligência emocional.

A escola/faculdade transformada em unidade em uma rede educacional criará um “plano de carreira” particular, onde os cursos internos de atualização de novas estratégias didáticas, pedagógicas e capacitação docente (na verdade cursos de adestramento para as novas “revoluções” trazidas pelos gestores) serão mais importantes do que o mestrado e doutorado.

Aliás, mestres e doutores partirão do zero nesse suposto plano de carreira, partindo do princípio que são ignorantes sobre as revoluções dos novos tempos.

Por isso, professores com muito tempo de casa são seres potencialmente frustrados e ressentidos: seu investimento de tempo e dinheiro na titulação não serviu para nada.


3. Notas do alunos não serão mais arredondadas


Professores tendem a uma avaliação mais qualitativa do aluno. Para muitos, o sistema de avaliação por notas é um estorvo: como se quantifica conhecimento? O professor tenderá a arredondamentos ou, no mínimo, avaliar de meio em meio ponto.

Ao contrário, gestores são cabeças de planilha Excel... e de data-show. São quantitativos. E quantidade, números ou dados devem obrigatoriamente gerar tabelas, gráficos com elegantes curvas para serem projetadas em data-show em reuniões com CEOs. Devem milimetrizar o progresso, tendências, padrões. 

 Portanto, tenha cuidado se de uma hora para outra for baixado um novo sistema de avaliação por décimos, sem mais arredondamentos. Por trás disso estão gestores cabeças de planilha, impulsivos e com um perigoso senso de justiça.


4. Seu plano de aulas/ensino deve ser convertido para uma planilha Excel


Para a cabeça qualitativa de um professor, um software editor de texto é o suficiente para criar planos de aulas e de ensino. Aula e ensino é como fossem res extensa: a realidade, a matéria no sentido extensivo e qualitativo.

Mas para um gestor, coisas extensas são difíceis de serem monitoradas, controladas e avaliadas por uma espécie de “controle de qualidade acadêmico” que começa a ser implantado.

Se colocar câmeras em sala de aula para monitorar o professor em tempo real tem lá ainda seus impedimentos éticos (cujas “revoluções futuras” certamente darão conta), um plano de aula e ensino convertido em planilha Excel ajuda a prever aquilo que o professor fará – principalmente nas estratégias das chamadas “metodologias ativas”.

Cuidado! Isso poderá ser a última coisa que o professor fará antes de ser demitido: com muito esforço, tempo e paciência, converter a res extensa em res minimum, isto é, do editor de texto para uma planilha onde em cada célula esteja prevista cada ação futura em sala de aula.  

Pode parecer uma metáfora cruel, mas é como se o condenado à morte fosse obrigado a cavar sua própria sepultura antes da execução.


5. O Coordenador fala que “dispara” e-mails


Em geral coordenadores de curso foram ou ainda são professores. Mas no meio dessa “revolução” gerencial e educacional seu coordenador estranhamente começa a adotar jargões corporativos. No meio de reunião ele fala que vai “disparar” e-mails para os professores com os slides da reunião, ao invés de falar “enviar”.

Estranho linguajar corporativo agressivo que denota performance, rapidez, eficiência, emergência etc.

Mais além, a sala de professores e a sala das coordenações sofrem mudanças arquitetônicas radicais: divisões em baias, mesas imensas e monocromáticas. Tudo se assemelhando aos escritórios corporativos.

A antiga sala do coordenador (um local apinhado de antigas memórias e glórias do curso com posters, quadros com fotos de turmas e alunos notáveis etc.) cede lugar a espaços amplos com divisórias baixas e baias onde coordenadores ficam contidos, olhando-se uns para os outros, como se vigiassem comportamentos e reações mútuas.

Você quer ter uma conversa mais pessoal? Dirija-se a uma sala fechada, o que vai apenas despertar os olhares interrogativos e paranoicos dos demais: o que estará acontecendo!..


6. Foram suspensas as reuniões de fechamento do semestre letivo


Normalmente semestres letivos têm reuniões de abertura e fechamento, planejamento e avaliação dos resultados respectivamente.

Se de repente as reuniões de fechamento foram suspensas (sob o altruísta pretexto de que os professores “estão cansados”), cuidado! Podem estar sendo preparados massacres em cada final de semestre: demissões em massa motivados pelos itens 1 e 2 dessa postagem.


7. O Beijo da Morte


E finalmente, a mais assustadora evidência. O verdadeiro “beijo da morte”, aquele que o condenado recebe antes de ser assassinado pela Máfia.

Você está há muito tempo na casa e os gestores decidem reconhecer isso lhe homenageando com um diploma de “Honra ao Mérito” em um evento onde estão outros gestores, coordenadores e até CEOs. Cuidado! Você foi marcado.

Postagens Relacionadas











Rebelião gnóstica e Hipótese Fox Mulder na série "Mr. Robot" - primeira temporada

$
0
0

A série de TV “Mr. Robot” (2015-) de San Esmail é vista pela crítica como um mix de “Matrix” com “Clube da Luta” onde a violência de socos e Kung Fu é substituída pela cultura do cyber-ativismo hacker. Mas a série vai mais além. Entra nos temas principais do gnosticismo sci-fi do escritor Philip K. Dick: paranoia, amnésia, esquizofrenia e identidade em um sistema onde a mentira é a base de toda a confiança: um sistema econômico onde débitos e dívidas se sustentam na crença de que, apesar de toda a virtualidade das transações financeiras, o dinheiro existe em algum lugar como base moral de todo o valor. E tudo pode ser destruído da noite para o dia por hackers que pretendem salvar o mundo através de linhas de programação. Como explicar essa mensagem de rebelião gnóstica em série de TV em uma grande rede dos EUA? Talvez a chamada “Hipótese Fox Mulder” explique.


“Compramos coisas que não precisamos com o dinheiro que não temos para impressionar pessoas que não gostamos”. Essa fala de Tyler Durden no filme O Clube da Luta (1999) é uma rápida descrição do motor psíquico da economia negativa atual que se expande por meio de débitos e dívidas.  Situação paradoxal: quanto maior a capacidade de endividamento de uma economia, maior sua “riqueza” com a expansão da financeirização e a sua base tecnológica: microinformática, conexões rápidas de fibra ótica, telemática e integração dos bancos de dados das praças financeiras.

Tyler Durden arquitetava o Plano Caos: mandar para os ares os prédios das empresas de cartão de crédito para zerar todas as dívidas – sobre o filme Clube da Luta clique aqui.

Mais além, a cyber-conspiratória série Mr. Robot (2015-16) da USA Network quer detalhar tecnologicamente esse velho sonho de Durden: interfaces GUI em Visual Basic para rastrear IPs, discussões sobre interfaces gráficas Gnome versus KDE, cyber-ataques RUDY e ataques massivos em dDOS contra uma gigantesca corporação chamada E-Corp.

Sam Esmail, criador da série, parece fazer um mix entre Matrix e Clube da Lutamas sem todo kung fu e violência dos socos de um clube fechado masculino. Tudo através dos olhos de um programador niilista chamado Elliot, patologicamente introvertido e sociopata que quanto mais pretende “salvar o mundo” por meio de uma cyber-revolução mergulha no seu “labirinto interior” enfrentando “kern: fatal error” e “daemons” (demônios internos) que são traduzidos como bugspsíquicos e toda uma série de jargão de programadores.


Em outras palavras: tanto o protagonista como o espectador começam a perder as fronteiras entre delírio químico-psíquico do protagonista e a realidade. Elliot (Rami Malek) começa a quebrar de forma estranha a linha imaginária da “quarta parede” – ele conversa com um interlocutor imaginário que pode ser tanto o seu “daemon”, um amigo imaginário ou o próprio espectador.

Mr. Robot está na segunda temporada. Sam Esmail divide de forma didática a temática de cada uma delas: na primeira temporada, acompanhamos a realização dos sonhos do antigo Projeto Caos de Tyler Durden. E na segunda, o mergulho no inferno íntimo de Elliot e o contra-ataque do império do mal da E-Corp – ou “Evil-Corp” como chama Elliot.

Na primeira temporada assistimos à retomada de uma série de temas de Matrix. E na segunda, as consequências da clivagem esquizofrênica do psiquismo do protagonista, no melhor estilo de Clube da Luta.

A série evoca uma série de temas gnósticos e herméticos, difíceis de serem limitados a uma única postagem. Por isso, vamos primeiro abordar a primeira temporada, dominada por temas Valentinianos (de Valentim, filósofo gnóstico do início da Era Cristã): a descida através do buraco do coelho até a paranoia e a melancolia. Para Valentim, paranoia e melancolia eram estados de consciência ideais para a busca da Verdade, a Gnose.

E na segunda temporada, dominada por temas basilidianos: a busca do estado de suspensão e a gnose através do silenciamento da consciência.

A Primeira Temporada


Elliot Anderson (referência a Neo – Thomas Anderson – de Matrix?) é um engenheiro de segurança de TI que trabalha na AllSafe durante o dia. Insone, durante a noite é um hacker, vigilante e justiceiro: hackeia pedófilos, golpistas e outros pecadores para depois fazer justiça chantageando-os. 

Usando de sua perspicaz engenharia social para descobrir fraquezas pessoais, descobre senhas e fuça na vida de todo mundo. Depois, guarda a vida e os pecados de todo mundo em CDs arquivados no seu “cemitério digital”.


Até que um dia, o principal cliente da AllSafe, a gigantesca E-Corp, sofre um massivo ataque cibernético. Ao analisar o ataque, Elliot determina que é necessário derrubar todos os servidores da empresa para restabelecer os back-ups. Em um desses servidores descobre um arquivo *.txt com uma mensagem solicitando não ser apagado. Algo no seu íntimo faz Elliot obedecer a mensagem.

Na verdade aquele ataque foi um teste para ele: estava sendo recrutado por um líder hacker anarquista do grupo F*Society (“Fuck Society”). O grupo pretende incriminar um executivo da empresa chamado Terry Colb, para convencer o FBI de que o ataque partiu de dentro da corporação.

E-Corp é uma corporação de importância global – um conglomerado de empresas que fabricam computadores, celulares, tabletes e possui um banco e uma linha de crédito aos consumidores. E-Corp domina 70% do crédito global industrial e de consumo. Portanto, um ataque dessa natureza coloca em risco a economia mundial.

Christian Slater faz o líder anarquista Mr. Robot, uma espécie de Morpheus que pretende abrir os olhos de Elliot para a irrealidade do mundo: toda a economia do mundo é virtual e o valor do dinheiro baseado na crença ingênua dos consumidores da existência de algum lastro produtivo na sociedade. Como Mr. Robot afirma, “a mentira é a base da confiança” – sobre a virtualização do dinheiro e da economia clique aqui.

  F*Society quer criar o “maior evento de redistribuição de renda da História” – apagar todas as dívidas derrubando todos os servidores e apagando os back-ups. Na verdade, apenas abrir os olhos das pessoas, mostrando que dívidas e dinheiro jamais existiram.


O Viajante e a Meta-paranoia – Atenção: Spoillers à frente


O plot da primeira temporada é essencialmente maniqueísta. Mas não no sentido hollywoodiano (Bad Guys contra Good Guys), mas no sentido mais ontológico original do antigo pensamento do filósofo persa gnóstico Mani: a luta do Bem contra o Mal pertence à própria estrutura do mundo. Acabar com essa luta significa revelar a própria irrealidade do mundo a mentira que inspira a confiança nos serviços da E-Corp.

Por isso Elliot é niilista e melancólico. Não vê o menor sentido nas convenções sociais como, por exemplo, assistir a um jogo de basquete em um parque público.

Tal como Neo em Matrix, é um profissional bem sucedido que teria tudo para se dar bem na carreira. Mas decide se isolar e sentir-se atraído por losers do underground de uma casa de diversões em ruínas no parque de Coney Island, os hackers da F*Society. Elliot é o clássico personagem gnóstico do Viajante: como Alice de Carrol, entendiado e melancólico, segue o coelho até a sua toca: a “Wonderland “da casa de diversões abandonada chamada “Funny Society”.

Lá está a sua espera o “Chapeleiro Maluco” Mr. Robot, pronto para abrir seus olhos para a Verdade.


Mas ainda o plot é muito simplista. É necessário uma pitada da paranoia sci fi do escritor gnóstico Philip K. Dick do seu livro O Pagamento– um técnico em engenharia reversa presta serviço secreto a uma corporação. Em troca de uma fortuna em pagamento aceita que sua memória dos anos de serviço prestados seja apagada. Voltando a si, descobre que no envelope não há pagamento algum: apenas uma mensagem cifrada que deixou para si mesmo como pista inicial para a solução de um enigma – sobre o filme O Pagamento inspirado no livro de Philip K. Dick clique aqui.

Melancólico e paranoico, Elliot descobrirá que criou uma espécie de meta-paranoia: na sua missão de salvar o mundo, ele criou a paranoia mais radical – desconfiar de si mesmo. Elliot apagou detalhes da sua própria vida ao ponto de não saber mais quem é na verdade ele próprio.

Isso explicará a estranha relação paternal que Mr. Robot criará com Elliot ao longo dos episódios.

Temos aqui a paranoia no seu sentido mais gnóstico: não se trata mais de uma conspiração narcísica (o mundo contra você), mas da desconfiança consigo mesmo. Afinal, o mundo da E-Corp cria uma série de tentações ilusórias para seduzi-lo. Assim como a Matrix seduziu o traidor Cypher no filme dos Wachowski. Por isso, a meta-paranoia é a proteção contra o maior inimigo, o próprio Ego.

Mr. Robot e a “Hipótese Fox Mulder”


Como explicar que uma série comercial de uma rede de TV norte-americana (USA Network é uma subsidiária da NBC Universal Cable que, por sua vez, é uma divisão da NBC Universal, subsidiária da corporação Comcast, receita de 65 bilhões de dólares) traga mensagens gnósticas de rebelião e desconfiança em relação ao sistema?


Mais um exemplo de como o Capitalismo é capaz de absorver sua própria crítica e ainda assim atrair público e anunciantes?

Mr. Robot apresenta o verdadeiro terrorismo. Não aquele patrocinado pelo Estado e OTAN como Al-Qaeda ou ISIS que apenas cometem atentados para a repercussão midiática em alvos civis, com o objetivo de criar o medo que legitime arbítrios contra os direitos individuais.

Aqui temos o cyber-terrorismo que atinge a essência do turbo-capitalismo: as redes telemáticas que mantêm a virtualidade da riqueza e do poder.

O fato de uma grande rede do establishment das comunicações dos EUA produzir uma série com tema tão anarquista talvez seja explicado pela hipótese conspiratória que chamamos de “Hipótese Fox Mulder”: em um dos episódios da série Arquivo X o agente especial do FBI, Fox William Mulder, participa como convidado de um congresso de ufólogos.

A certa altura lhe perguntam o motivo pelo qual o governo dos EUA, ao mesmo tempo que esconde o fenômeno UFO, incentiva que Hollywood produza tantos filmes sobre o tema . E Mulder responde: “para que todos pensem que os contatos com UFOs e aliens são do mundo da ficção, coisas de cinema. Por isso, quando surgem notícias verdadeiras, ninguém acredita”.

Talvez a mesma lógica possa ser aplicada a filmes da estirpe de Matrix, Clube da Luta e de séries como Mr. Robot: banalizar a crítica ontológica radical contra a irrealidade da economia, da política e sobre a própria fragilidade de um sistema que se mantém sobre bases tão frágeis – a confiança e credibilidade baseadas em mentiras.

Através da ficcionalização, transformar a crítica séria em coisas de nerds arrogantes ou posturas pseudo-radicais.


Ficha Técnica


Título: Mr. Robot
Criador: San Esmail
Roteiro: San Esmail
Elenco:  Rami Malek, Carly Chaikin, Portia Doubleday, Martin Wallström, Christian Slater
Produção: Anonymous Content, USA Network
Distribuição: USA Network, Universal Channel
Ano: 2016-
País: EUA


Postagens Relacionadas




Série "Mr. Robot", segunda temporada: o labirinto PsicoGnóstico

$
0
0

A série “Mr. Robot” é fascinada por sistemas. Depois de mostrar a virtualidade do sistema financeiro e a sua destruição por sistemas de computadores na primeira temporada, agora a série mergulha no sistema esquizofrênico do protagonista Elliot. Dos temas CosmoGnósticos, agora a série aprofundará temas PsicoGnósticos: como o controle do Ego é uma ilusão – assim como Tyler Durden libertou-se do psiquismo do protagonista em “Clube da Luta”, da mesma forma Mr. Robot desafiará as ilusões dos medicamentos antidepressivos, psicoterapias e todo o ideário da autoajuda.


Agora que os segredos da primeira temporada de Mr. Robot foram revelados (as alucinações do protagonista foram explicadas, o porquê da relação paternal com Mr. Robot,  enquanto os mercados mundiais foram reduzidos a cinzas pelos cyber-ativistas), a segunda temporada enfrenta um grande desafio: manter a tensão e o mistério já que a brilhante primeira temporada simplesmente respondeu a todas as questões – sobre a análise do Cinegnose da primeira temporada clique aqui.

A série Mr. Robot tem que ser agora reinventada pelo criador Sam Esmail. Como o protagonista Elliot Anderson (Rami Malek) diz no início da temporada, o mais difícil não foi apagar todos os back-ups da E-Corp, mas o que virá depois.

Obviamente, o império do Mal vai contra-atacar com o FBI e a costumeira socialização das perdas com a ajuda do Governo aos mercados financeiros em bancarrota. Como todos os crashs financeiros nos ensinam, os ganhos são privatizados e as perdas sempre socializadas.

Por isso a segunda temporada abre com o mundo aparentemente o mesmo. Mas aos poucos descobrimos que há uma aparência que esconde um certo pânico: caixas de bancos impotentes, contas correntes zeradas, o dinheiro vivo como um produto escasso e o comércio querendo o pagamento em papel-moeda antecipado para qualquer transação.

E o suicídio ao vivo na TV e em rede nacional de um executivo da E-Corp que retira uma pistola de uma maleta e estoura os miolos – o episódio faz uma clara referência a um incidente real ocorrido em 1987 quando um político da Pensilvânia chamado Budd Dwyer disparou um tiro na boca em uma coletiva para a imprensa transmitida pela TV.


O labirinto PsicoGnóstico


Porém, os primeiros episódios vão se aprofundar no labirinto pessoal de Elliot e nos seus delírios esquizofrênicos com o arrogante personagem Mr. Robot (Christian Slater), uma nova versão para o personagem Tyler Durden de Clube da Luta.

Dessa forma, se a primeira temporada explorou o imaginário CosmoGnóstico de Matrix (o mundo como uma ilusão no qual estamos prisioneiros através das tecnologias virtuais – aqui, no caso, a virtualidade do sistema financeiro), agora Mr. Robot irá explorar os temas PsicoGnósticos: o protagonista prisioneiro no interior do seu próprio psiquismo, sem conseguir distinguir o delírio da realidade.

Como assistimos na primeira temporada, Elliot vive uma clivagem esquizofrênica parecida com a do protagonista do Clube da Luta. Assim como nesse filme, é a condição esquizofrênica de Elliot que o faz despertar da ilusão da realidade cotidiana.

O arrogante Mr. Robot é a nova versão de Tyler Durden que incita Elliot ao hacker-ativismo para salvar o mundo. Mas se na primeira temporada, a meta-paranoia foi o dispositivo de Elliot proteger-se de si mesmo e não sabotar a missão, agora na segunda temporada ele tenta se livrar de Mr. Robot e voltar a se apegar à rotina diária.

Aqui temos uma interessante retomada de temas gnósticos basilidianos que foram explorados em Clube da Luta: a necessidade da suspensão do Ego e da racionalidade para buscar “o grau zero”, o silêncio e a gnose.

Nos primeiros episódios da atual temporada acompanhamos a dura luta de Elliot para se livrar de Mr. Robot, a luta do Ego contra o despertar interior. Ele recorre à medicação antidepressiva, psicoterapia, grupos de autoajuda e até a religião.


Controle é ilusão


Elliot tenta fazer um diário no qual anota a cada hora o que está fazendo, apega-se a uma rotina repetitiva e vazia e participa de um grupo católico de autoajuda. Rotina, racionalidade, religião e drogas antidepressivas: os múltiplos instrumentos da nossa existência para nos alienarmos até o esquecimento.

Para o Gnosticismo, são as formas de consolação ou de racionalização para enfrentar o mal-estar provocado por esse mundo. Formas de reforçar o Ego e impedir qualquer visão ou vislumbre de consciência. O controle do Ego é apenas uma ilusão.

Sem resultado efetivo, Elliot propõe a seguinte estratégia: um jogo de xadrez com Mr. Robot. Se vencê-lo, ele terá que desaparecer para sempre. Aqui Sam Esmail faz uma curiosa alusão ao filme de Ingmar Bergman O Sétimo Selo (1956): um Cruzado retorna para sua casa e se depara com a personificação da Morte e lhe propõe uma negociação – um jogo de xadrez para ganhar tempo e indagar o sentido da vida e da morte.

Se em Bergman o xadrez é uma alegoria da busca do sentido da existência através da racionalidade, em Mr. Robot a abordagem é contrária: o jogo sempre termina empatado, até que os rivais entram em um estado de suspensão de toda racionalidade. O jogo de xadrez não foi o instrumento para a racionalidade triunfar, mas para ser suspensa.

Se em Clube da Luta, o silenciamento do Ego (mente e corpo) é por meio da dor e violência, na série é por vias mais “cerebrais”: o fracasso do Ego por meio de um “bug” inserido nele mesmo, assim como os cyber-ativistas inseriram um script exploit para detonar os servidores e derrubar os mercados mundiais.

É um tema basilidiano (de Basilides, filósofo gnóstico do início da Era Cristã) por excelência: o estado alterado de consciência da suspensão como instrumento de anulação do Ego e o despertar da Gnose.


O culto fetichista da f*society


Os primeiros episódios da segunda temporada ainda aborda um outro tema interessante: o momento em que a marca f*society torna-se tão famosa na mídia que a icônica máscara que representa o grupo cyber-ativista torna-se objeto de culto fetichista pelas pessoas. Vemos nas ruas grupos de jovens com a máscara da f*society correndo e praticando pequenas depredações.

Uma delas é quando “castram” escultura de bronze do touro (o “Charging Bull”) no distrito financeiro de Wall Street e levam os seus testículos para uma festa de hackers que os ostentam como prêmio e objeto de culto fetichista: a castração do próprio poder financeiro – assim como foram simbólicas as quedas das torres gêmeas nos atentados de 2001: a castração do poder fálico dos EUA (arranha-céus são símbolos fálicos do poder financeiro mundial) pelos terroristas.

Numa evidente alusão ao episódio bíblico de Moisés no qual após descer o Monte Sinai surpreende seu povo adorando um bezerro de ouro e esquecendo-se de Deus. Zangado ao ver os hebreus adorando um falso deus, Moisés joga no chão as tábuas de pedra dos Mandamentos e manda seus homens pagarem as espadas para matar os adoradores.

Darlene (Carly Chaikin – irmã de Elliot e hacker integrante da f*society) interrompe a festa criticando a superficialidade das comemorações  e a perda do sentido da vitória. Mas nada ainda foi conquistado e a E-Corp e FBI estão vindo com tudo. É necessário traçar novos planos contra o império do Mal.  

O sistema foi danificado, mas tudo permanece ainda tecnicamente intacto.

Mr. Roboté uma série fascinada por sistemas. Mas não apenas pelos sistemas criado pelos códigos dos computadores. Mas também pela maneira como as pessoas criam sistemas internos para lidar com o caos ao redor.

Por isso Sam Esmail faz uma interessante correspondência que fica mais evidente nessa segunda temporada: a analogia entre o sistema virtual da economia que aprisiona as pessoas em débitos e dívidas e o loop esquizofrênico de Elliot, capaz de criar novos sistemas e rotinas para tentar aprisionar o Mr. Robot que há dentro dele. 

                  E que também há dentro de cada um de nós.


Postagens Relacionadas












Galvão Bueno: do patriotismo ao tautismo

$
0
0

O locutor da Globo Galvão Bueno é o homem certo para o lugar certo. Os nadadores preparavam-se para a largada na piscina do Parque Olímpico da Rio 2016 quando a árbitra parou tudo. Em meio ao silêncio exigido para a concentração dos atletas alguém não parava de falar, alheio ao momento: era Galvão Bueno, que mereceu ao vivo uma reprimenda de um comentarista do canal inglês BBC: “o colega perto de mim precisa calar a boca”, disse. Bueno é o homem certo, com sua verborragia patriótica cultivada nos tempos dos bons resultados brasileiros no futebol e F1. Os bons resultados acabaram, mas o cacoete ficou.  Agora tornou-se sintoma do tautismo (autismo + tautologia) crônico de uma emissora que de tão centrada nela mesma começa a contaminar seus jornalistas, apresentadores e artistas. Em muitos momentos o monopólio político e econômico da Globo parece fazer seus profissionais terem lapsos de memória sobre a existência de alguma coisa de real do outro lado dos muros da emissora.

Os leitores do Cinegnose estão acostumados com nossa incessante busca por sintomas sociais e culturais em produtos fílmicos e audiovisuais. Cinema, eventos políticos, telejornalismo, teledramaturgia, publicidade e marketing são espaços ideais para a manifestação não só do espírito de época, mas também de atos falhos que revelam a ideologia de seus emissores.

Em postagem anterior discutíamos como o início da cobertura das Olimpíadas Rio 2016 pela hegemônica TV Globo dava o tom pelo qual os telespectadores deveriam aguardar: o tautismo (autismo + tautologia) – neologismo que designa o patológico “fechamento operacional” onde um sistema (TV, jornal etc.) fecha-se em si mesmo de forma que os dados do mundo exterior são traduzidos por uma imagem que o sistema faz de si mesmo – sobre esse conceito clique aqui e aqui.

E qual a imagem que o sistema televisivo hipertrofiado da Globo faz de si mesmo? De que os eventos só acontecem para que possam ser transmitidos e encaixados na sua grade de programação.

Se o antigo Repórter Esso, de outros tempo do rádio e televisão brasileiras, dizia que queria ser “testemunha ocular da História”, agora para a Globo a História só aconteceu porque ela assim mostrou.

“Precisa calar a boca...”


Um sintoma desse tautismo crônico da Globo foi o inacreditável episódio de atraso no início da prova dos 200 metros do nado borboleta: a juíza suspendeu o início por falta de silêncio na arena. E segundo o canal inglês BBC a voz alta era do locutor Galvão Bueno. Para o comentarista britânico, Bueno não parava de falar.

“O colega perto de mim precisa calar a boca durante a largada. Desculpem, todo mundo está aqui quieto durante a largada, a árbitra fez a coisa certa”, disse o comentarista Adrian Moorhouse da BBC – assista ao vídeo abaixo:


Conhecido pelas narrações de Fórmula 1 e futebol, Galvão Bueno vem se desdobrando nas Olimpíadas Rio 2016 em vários esportes. Nessa terça-feira foi escalado pela Globo para as provas de natação, dentre elas as duas medalhas de ouro de Michael Phelps.

Não importa o esporte, a narração é sempre a mesma: apoplética, congestionada, fala compulsiva e indiferente se os acontecimentos contradizem seu discurso. Quando contrariado, a narração converte-se num piscar de olhos em comentários e supostas análises, deixando muitas vezes perplexo o comentarista escalado no momento que tenta oferecer um viés mais técnico ao espectador.

Enquanto as narrações nos canais fechados SporTV se caracterizam pela sobriedade e análises mais técnicas, é na TV aberta (onde a Globo ostenta todo o Poder e hegemonia nos exercícios tautistas com muita metalinguagem e auto-referência) que o estilo Galvão Bueno serve melhor à patologia crônica do autismo global.

Delírio taquilático e a ansiedade do silêncio


 Simplesmente ele não para de falar como se a transmissão fosse mais importante do que o próprio evento. Para Galvão Bueno, parece que se houver alguma interrupção na sua fala delirante o evento desaparecerá no ar.

              Nele poderíamos encontrar facilmente sintomas psicóticos do chamado “sujeito delirante taquilático” ou “hipercinético”: na aceleração da fala o sujeito é tomado pela ansiedade de não ser assaltado pelo silêncio – certamente essa aceleração leva a gafes metonímicas como, por exemplo, quando anunciou o gol do Santo André como fosse do São Caetano na final da Copa do Brasil em 2004; ou quando confundiu o nome do tenor Placido Domingo com Julio Iglesias quando visitava os boxes da F1 em 2006.




Mas acreditamos que não seja apenas um sintoma pessoal. De fato, Galvão Bueno é a pessoa certa no lugar certo. Dessa maneira, o seu discurso apoplético é também sintoma desse próprio lugar certo no qual se encontra: o sistema tautista global que busca auto-organização e fechamento em relação ao mundo exterior por dois motivos: (a) décadas de hegemonia e ingerências na política brasileira acabaram criando uma imagem de si mesma de epicentro de todos os eventos que ocorrem no País e no mundo; (b) a queda de audiência pela concorrência das tecnologias de convergência e Internet faz cada produto ou cobertura de evento da emissora relações públicas de si mesmo.

Se toda ideologia teve o seu momento de verdade, pelo menos no passado o histrionismo de Galvão Bueno tinha algum sentido: o patriotismo. A competitividade dos brasileiros na Fórmula 1 com Nelson Piquet e Ayrton Senna e as seleções brasileiras das gerações de craques das eras Romário e Ronaldo eram um pretexto para a fala compulsiva do narrador.

Do patriotismo ao tautismo


Porém, na medida em que as vitórias brasileiras escassearam nesses esportes (e a pérola “a coisa já esteve melhor para o Brasil” solta no fracasso da seleção na Copa da África do Sul foi emblemática) sua voz deixou de emoldurar um suposto patriotismo para se transformar na voz do monopólio da TV Globo.

Não é à toa que sempre fez questão de demonstrar intimidade com os protagonistas dos eventos que narrava: Ayrton Senna, Nelson Piquet, Zico, Gustavo Kuerten, Hortência, Neymar, Anderson Silva etc. Assim como a própria emissora, Galvão Bueno deve imaginar que esses nomes só existiram na história esportiva porque ele narrou os seus feitos.

A intimidade com os protagonistas dos eventos

Na literatura recente em Teoria da Comunicação, pesquisadores como Umberto Eco, Jean Baudrillard ou Lucien Sfez demonstraram como as mídias abandonaram o real para representa-lo através de simulacros da realidade. A televisão não pode se limitar a ser “testemunha ocular da História”. Ela deve fazer a própria História, produzindo, encenando ou roteirizando os eventos que transmite.

Tautismo e monopólio midiático


Mas esses pesquisadores estudaram tendências midiáticas em cenários onde os meios de comunicação eram mais diversificados. No caso brasileiro há um agravante: o monopólio midiático das Organizações Globo.

Apesar dos traços da metalinguagem e auto-referencialidade serem um traço generalizado da mídia mundial, pelo menos a imprensa esportiva internacional respeita as liturgias próprias de cada esporte. Afinal, faz parte do próprio espetáculo que ela produz, promove e transmite.

Mas no caso brasileiro, o monopólio e hegemonia da Globo é tamanho que, por razões políticas, chega a detonar o próprio evento que transmite, como no exemplo da Copa do Mundo no Brasil, para turbinar a cavalgada anti-Dilma e impeachment.

Portanto, a logorreia de Galvão Bueno é o irresistível cacoete de uma emissora onde seu poder político e econômico se tornou tão desmesurado que seus jornalistas, apresentadores e artistas começam a apresentar sintomas de perda da noção de que existe alguma coisa chamado realidade do outro lado.

Se Galvão Bueno é o homem certo para o lugar certo, sua atitude de simplesmente ignorar o silêncio e concentração exigidos para que os nadadores pudessem ouvir o sinal da largada é o sintoma da tautista necessidade da Globo em reafirmar seu monopólio nacional. Tautista, porque deve negar neuroticamente as mudanças econômicas e tecnológicas ameaçadoras que estão lá no horizonte ameaçando a hegemonia da Globo.

No passado, a fala compulsiva e ansiosa de Galvão Bueno estava à serviço do patriotismo. Agora, serve para reforçar o tautismo crônico da emissora.

É também sintoma de um momento onde o jornalista deixa de ser o repórter dos acontecimentos para se transformar no protagonista da informação.

PS: Galvão Bueno publicou ontem na sua conta do Instagram uma foto ao lado do comentarista da BBC junto com um pedido de desculpas. “Errei. Fim do mimimi”.

Mais um sintoma tautista: Galvão Bueno dilui o próprio pedido de desculpas com a expressão pejorativa “mimimi” – usada para ridicularizar alguém que passaria a vida inteira reclamando. Onomatopeia que imita choro, ladainha ou lamúria.

“Companheiros de outras Olimpíadas”, escreve na foto ao lado da equipe da BBC. Para o tautista Bueno, tudo parece girar em torno dele...



Postagens Relacionadas












Curta da Semana: "Getting Fat in a Healthy Way" - a Terra, a Lua e a obesidade

$
0
0

Em um universo alternativo a força gravitacional do planeta se enfraqueceu devido a uma catástrofe geofísica envolvendo Terra-Lua. Quem tiver menos de 120 quilos terá sérios problemas para levar uma vida normal – poderá sair flutuando e se perder na atmosfera. Por isso a obesidade passa a ser valorizada e vira o novo padrão de beleza. E se nesse mundo um homem magro se apaixonasse por uma mulher obesa? O curta “Getting Fat in a Healthy Way” (2015) do búlgaro Kevork Aslanyan coloca esse argumento sci-fi como pano de fundo para uma singela história de amor que suscita uma discussão sobre os padrões de beleza: se são relativos, por que se transformam em padrões ditatoriais?


A beleza é apenas uma contemplação relativa e subjetiva. Para além das condicionantes históricas e culturais, também há outros fatores de natureza mais objetiva como veremos no nosso Curta da Semana.

Seja na arte ou na percepção corporal, há fatores tanto subjetivos como objetivos que fazem mudar nosso julgamento sobre as diferenças entre o belo e o feito.

Essa natureza relativa da estética fica evidente quando se discute os padrões de beleza corporal. Por exemplo, se acompanharmos as formas como a beleza feminina era retratada no Período Colonial, Renascimento ou Antiguidade veremos que foge bastante do modelo buscado atualmente.

O curta Getting Fat in a Healthy Way (“Engordar de Forma Saudável”) do búlgaro Kevork Aslanyan entra nessa discussão com uma singela história de amor entre um homem magro e uma mulher obesa. Repentinamente os padrões de beleza do planeta mudaram porque... a força gravitacional da Terra ficou fraca: quem tiver menos de 120 quilos simplesmente se perderá no céu flutuando. Ficar gordo tornou-se uma questão imperiosa para poder levar uma vida normal.


Um sério acidente com um projeto espacial norte-americano destruiu metade da Lua, provocando uma drástica mudança na força gravitacional terrestre. É claro que se cavarmos na Física, veremos que não haveria essa relação causa-efeito, mas, afinal,  isto é ficção científica.

O curta se inscreve em um subgênero atual que os críticos chamam de “psicodramas alt. Sci-fi”: um tema de ficção científica é colocado como pano de fundo para serem discutidas questões existenciais nos relacionamentos humanos.

Esse é o curioso argumento desse curta búlgaro: a obesidade torna-se modelo de beleza após uma catástrofe geofísica envolvendo Terra-Lua.

O Curta

Em um mundo pós-comunista distópico, Constantine e seu pai Atanas compartilham um pequeno apartamento em um bloco de velhos prédios populares. Com apenas 60 quilos de peso, Constantine não pode sair do apartamento. Passa os seus dias preso no apartamento olhando o mundo com seus binóculos enquanto o seu obeso pai sai para trabalhar.

Constantine só consegue levar uma vida normal em casa porque o pai instalou um modulador elétrico que normaliza a gravidade no interior do apartamento.

Surgem problemas inusitados para o espectador como levar o cachorro para passear (eles flutuam como balões) ou inesperadas ereções nos homens.

Constantine acabou acostumando-se com a sua vida, até que muda-se para a vizinhança uma aeromoça obesa que mudará a sua vida pelo amor.

Ansioso para conhece-la, Constantine tenta engordar à base de uma dieta de fast-food e outras porcarias. Até passar muito mal, o que só irá piorar sua magreza.

Mas o seu pai trabalhará numa solução, como o leitor acompanhará no curta.

Uma das virtudes do curta é a forma orgânica como o roteiro constrói esse mundo alternativo. Percebemos os pequenos detalhes do novo padrão de beleza como, por exemplo, as capas das revistas femininas e masculinas como a Playboy, repletas de mulheres obesas em poses eróticas e fashion.


A Física da beleza

Getting Fat in a Healthy Way dá no que pensar sobre a relatividade dos padrões estéticos. Que esses padrões são determinados culturalmente, é indiscutível. Por exemplo, nas pornochanchadas nacionais dos anos 1970 celulites e estrias apareciam sem cerimônias em corpos de atrizes como Sonia Braga. Parecia fazer até parte do charme realista das cenas mais eróticas.

Mas o curta búlgaro propõe um novo viés: a Física. A atração gravitacional, inércia e entropia são os grandes limitantes humanos e cósmicos. Repare leitor como somos fascinados por artistas e esportistas que desafiam as leis da física: malabaristas, trapezistas, esportes radicais, ginastas nos seus saltos impossíveis, pilotos de fórmula 1 e motociclistas desafiando as leis da inércia.

Isso sem falar na indústria estética cujo inimigo comum, além do envelhecimento, é a lei da gravidade: tudo cai – pálpebras, cabelos, olhos afundam, os traços fisionômicos decaem etc.

Até chegarmos a solução digital do Photoshop.

Mas ser magro é uma obrigação para podermos lidar melhor com a força gravitacional. E se as leis da gravidade fossem repentinamente alteradas? Para Kevork Aslanyan tudo se inverteria e gordos e obesos seriam valorizados como novo padrão estético desejável.


É claro que após isso entra em cena a ditadura da beleza e o preconceito. Daí, entramos no campo da História e da Cultura.


O peso da decadência moderna no filme "High-Rise"

$
0
0

Um misterioso arquiteto planeja um arranha-céu que deveria ser uma incubadora de mudanças na sociedade. Um edifício idílico com todas as comodidades modernas destinado a ser uma “máquina de morar” autogerida. Mas algo deu errado, transformando o projeto em um pesadelo apocalíptico que mistura horror, sexo, drogas e a principal ironia: a Razão e a Racionalidade de um projeto futurista se converte em niilismo, hedonismo e violência. É o filme “High-Rise” (2015), adaptação de obra do escritor J.G. Ballard de 1975 cujas visões sobre o futuro são considerados por muitos como proféticas – a sociedade corroída pelos seus principais males: a luta do homem contra si mesmo e de todos contra todos.


A sociedade parece funcionar basicamente sob duas categorias de conflito: do homem consigo mesmo (o inconsciente, pulsões, desejos, instintos etc.) e dos homens entre si (lutas entre classes, grupos, estamentos etc.). Os pessimismo freudiano sobre o mal estar da civilização e as visões marxistas da violência como “parteira da História”, deram o tom para as ciências sociais do século XX.

E no cinema a ficção científica, principalmente a distópica, o desenvolvimento desses dois tipos diferentes de conflitos foram bem marcantes: a luta do homem contra si mesmo (em filmes como Blade Runner ou Planeta dos Macacos nos quais o maior inimigo do homem é ele próprio); ou a luta de classes e a exploração em filmes Expresso do Amanhã (a dialética do senhor e do escravo) ou até mesmo Jogos Vorazes– uma elite ociosa explorando mão de obra farta e barata.

No filme High Rise (adaptação do livro homônimo do escritor J.G. Ballard) assistimos a uma satírica fusão desses dois conflitos sociais em um arranha-céu que se transforma em um microcosmo dos pesadelos humanos resultantes de três traços contemporâneos: a violência, o niilismo e o hedonismo.

Falecido em 2009, Ballard foi um brilhante escritor, mas principalmente um crítico social e, para alguns, um profeta. O Cinegnose já faz uma análise de outra adaptação de uma obra de Ballard, o filme Crash – Estranhos Prazeres (1996) – clique aqui.

O livro High-Risede 1975 é um exemplo da sua visão de decadência apocalíptica, numa mistura de horror e excitação, sexo e drogas, ironia e sátira.

À esquerda, pintura de Eric Fischl. Ao lado, cena do filme

Ao assistirmos ao filme, não é possível deixar de lembrar da estranha pintura do artista norte-americano Eric Fischl de 1982 chamado The Old Man’s Boat and The Old Man’s Dog. Para muitos, uma pintura também profética sobre os tempos que viriam: jovens no convés de um barco em uma atmosfera de orgia e beberagem. Parecem se preocupar apenas com o prazer momentâneo, alheios ao futuro ameaçador: uma tormenta se aproxima no oceano. O velho homem, suposto comandante, não mais existe. O barco está à deriva decorrente do niilismo e hedonismo dos seus passageiros.

Se substituirmos o barco de Fischl pelo arranha-céu de High-Rise, teremos uma situação idêntica, agravada pela luta de classes e pela presença do arquiteto que planejou tudo, mas perdeu o controle da sua criação.

O Filme


O filme se passa em 1975, mesmo ano da publicação do livro de Ballard, com uma produção em detalhado design retro-futurista que mistura suavidade com agressividade. Uma mistura adequada que capta a atmosfera do livro original.

A narrativa acompanha Robert Laing (Tom Hiddleston), um médico fisiologista assombrado pela memória de sua irmã morta. Ele se muda para um arranha-céu futurista projetado por um arquiteto misterioso e idealista chamado Royal – Jeremy Irons.

O edifício faz parte de um complexo ainda não inteiramente concluído que Royal concebia como um experimento social: transformar em uma incubadora para mudanças sócio-culturais. Mas o edifício acaba se transformando em um microcosmo paranoico, no qual são potencializadas as diferenças de classes e as disfunções sociais.


O arranha-céu é cercado por um amplo estacionamento para os moradores que apenas saem para o trabalho – além dos apartamentos, há andares com supermercado, piscinas coletivas e toda uma infraestrutura como fosse um condomínio fechado.

Como todos os projetos modernistas em arquitetura e urbanismo, de Le Corbusier a Oscar Niemayer, que vislumbravam uma sociedade mais igualitária com áreas de convívio público, tudo resultou no inverso: acabaram contaminados pelas próprias mazelas da sociedade que pretendiam sanar.

No filme vemos a cobertura habitada pelo arquiteto em um jardim suspenso idílico onde sua esposa cavalga por um lindo gramado como uma versão futurista da Lady Godiva. Royal continua projetando o restante do complexo, mas parece ter perdido o fio da meada.

Nos andares superiores está uma elite de esnobes brutos e inclinados a devassidão e embriaguez em constantes festas da qual ocasionalmente o arquiteto participa. Nos andares abaixo estão a classe média e o populacho. Tentam imitar a elite com suas festas  e orgias, porém com bebidas e drogas baratas e em apartamentos bem mais lotados.

O pesadelo hobbesiano


Através dos olhos de Laing vamos acompanhando o arranha-céu se transformando em um pesadelo hobbesiano de anarquia quando os moradores dos andares inferiores começam a escalar para os superiores, comprometendo a hierarquia social.


Tudo começa quando Richard Wilder (Luke Evans), um residente dos andares inferiores, pretende fazer um documentário sobre o arquiteto e inicia uma ascensão simbólica pelos andares em busca de Royal: quem é ele? O que pretende? Qual o sentido daquele edifício? Wilder é agressivo e repulsivo, mas também um aspiracional – acredita que pode subir na vida com seu documentário apresentado pela TV.

Como médico fisiologista, Laing é frio e calculista: com a mesma frieza que disseca um crânio diante de assistentes no hospital onde trabalha, ele apenas vê o mundo caindo aos pedaços sem fazer nada – apenas aprende a se adaptar.

No filme a figura do arquiteto tem um simbolismo ambíguo: é tanto o fracasso da Razão e da racionalidade de um prédio planejado com todos os confortos modernos; como também representa a própria divindade e o complexo planejado por ele como fosse o próprio cosmos.

Natureza humana e pessimismo


Como o leitor perceberá no filme, Ballard possui a mesmo pessimismo hobbesiano a cerca da natureza humana. O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) na sua obra O Leviatã acreditava que o homem necessitava do Estado e sociedade fortes para estabelecer um contrato social – entregue ao seu estado natural, o homem tenderia a uma constante guerra de todos contra todos.


A experiência social do arquiteto é transformar o edifício com seus moradores numa máquina autônoma, funcionando por si mesma sem a necessidade de um “síndico”. Tudo seria autogerido. O projeto de Royal lembra muito o arquiteto modernista Le Corbusier e suas “máquinas de morar” – concepção funcional da arquitetura que almejava uma sociedade utopicamente funcional, comunitária, criando um forte sentido de “coisa pública”. Assim como os grandes vãos livres dos seus projetos seriam áreas de convivência públicas onde as diferenças de classe se diluiriam.

O que deu errado?


Mas algo deu errado, tanto na Modernidade como no arranha-céu de High-Rise: a utopia comunitário-funcional converte-se em sociedade de consumo individualista e competitiva.

No filme, o andar do supermercado é o ponto de encontro e principal atividade para os moradores.  Independente da classe social, a vida de todos se limita a compras, decidir a cor da parede que pintará o apartamento e festas, muitas festas regadas a álcool e drogas.

Hedonismo e niilismo tomam conta da convivência entre os moradores, ao ponto de o documentarista Wilder, em busca do arquiteto, perguntar sobre a existência dele a um garoto cético que responde: “o arquiteto está no céu, mas o céu não existe!”.

Essa é a pessimista profecia de Ballard: o Deus/Arquiteto/Modernidade desapareceu, assim como o velho homem da pintura de Eric Fischl. Todos alheios e preocupados consigo mesmos enquanto a tormenta se aproxima no horizonte.


Ficha Técnica


Título: High-Rise
Diretor: Ben Wheatley
Roteiro: Amy Jump baseado no livro de J.G. Ballard
Elenco:  Jeremy Irons, Tom Hiddleston, Sienna Miller, Luke Evans, Elisabeth Moss
Produção: Recorded Picture Company
Distribuição: Magnolia Pictures
Ano: 2015
País: Reino Unido, Bélgica

Postagens Relacionadas













Pokémon GO: bem vindo ao deserto do real!

$
0
0

O filme “Matrix” e o conto “Sobre o Rigor da Ciência” do argentino Jorge Luís Borges ajudam bastante a entender a atual febre em torno do jogo Pokémon GO. Não a compreender o jogo em si (de forma positiva ajuda a nos familiarizar com o ambiente urbano e nos tira do sedentarismo, a velha crítica contra os tradicionais games de computadores e consoles) mas a elucidar para qual futuro ele aponta. Realidade aumentada é a união da representação com a tecnologia, do mapa com o território, do virtual com o real. Mas se no conto de Borges pedaços do mapa ficaram grudados ao real, no mundo Matrix é o real que vira um deserto e se agarra na virtualidade. Por enquanto programas como Pokémon GO são metafóricos, anedóticos e, por isso, divertidos. Mas a tecnologia da realidade aumentada vai muito além do que ajudar a compreensão da realidade: pode desertificá-la.


Já sei o que muitos leitores devem estar pensando: mais um intelectual querendo falar mal do Pokémon GO! Pelo menos prometo fazer uma análise imparcial desse game.

Não há como negar que o game é uma resposta a tantas críticas sobre a alienação dos jogos por computadores – isolamento, sedentarismo dos corpos estáticos com olhos grudados e as mão nervosas em um console, gente esquecendo das próprias necessidades fisiológicas como fome e sede, afundado em uma cadeira de uma Lan House etc.

Pelo contrário, agora as pessoas caminham pela cidade com cenas comoventes de pais jogando com seus filhos em parques, a dopamina à toda alimentando a caça aos Pokemons, a aleatoriedade ambiental que o jogo impõe aos jogadores, incentivando-os a explorar os arredores, sair pelas ruas etc.

Conheci o Pokémon GO através do meu filho mais velho. Acompanhando-o no jogo para entender a mecânica percebi que possui muitas nuances como Pokégyms, Pokébolas, Pokéstops... Aliás, um desses Pokéstops faria a alegria de teóricos da conspiração. 

Esses pontos (para onde o jogador deve se dirigir para obter mais Pokébolas, ovos, incensos etc.) localizam-se em praças públicas e endereços culturais da cidade. Um deles ficava em frente a uma grande Estrela de David estilizada de uma marmoraria que fornece o material para um cemitério israelita em São Paulo – já imaginei paranoicos vendo mais uma conspiração judaico-iluminati da Nova Ordem Mundial...


Pokémons, mapas e desertos


Pokémon GO é um game que permite aos jogadores capturar uma variedade de criaturas digitais que se sobrepõem caprichosamente sobre paisagens reais familiares capturadas por uma câmera de smartphone. Locais do mundo real, vistos através da tela, tornam-se o habitat dessas criaturas.

É um jogo que explora a tecnologia de realidade aumentada – técnica para unir o mundo real com o virtual, inserindo objetos virtuais no mundo físico em tempo real usando a interface para manipular objetos reais e virtuais. Filosoficamente, a realidade aumentada é uma confluência entre representação e tecnologia.

Olhando a interface do jogo, mostrando um mapa dos arredores a partir da localização do usuário, fez-me imediatamente lembrar de um conto do escritor surrealista Jorge Luís Borges chamado Sobre o Rigor da Ciência que farei um breve resumo.

Era uma vez um reino obcecado por cartografia, cujos cidadãos queriam fazer um mapa perfeito do seu território. Insatisfeitos com a exatidão de suas tentativas, passaram a criar mapas atrás de mapas em escalas cada vez maiores e com detalhes mais exatos.

Finalmente, chegaram ao mapa perfeito em uma escala 1:1 – era tão minucioso que replicava a própria paisagem. Ficou do tamanho do império, como um cobertor que cobria toda a terra.

Logo os cartógrafos perceberam quão inútil era esse mapa e o abandonaram nos desertos ocidentais do reino. Ainda seria possível ver antigos pedaços desse mapa agarrando-se à realidade.


O mapa não é o território


Qual a lição que podemos tirar desse conto? De que a representação (o “signo”) nunca será a própria coisa. A representação é uma tecnologia que signaliza a realidade. Por isso, sempre houve uma desconfiança dos avanços tecnológicos pela ambivalência dos símbolos, imagens e toda uma gama de formas de representar a realidade: podem ser mentiras, simulações, dissimulações, simulacros ou idolatria – como bem nos mostrou a exploração política das imagens pela Igreja Católica desde o Barroco.

A palavra é a tecnologia de representação mais antiga – exige uma colaboração entre leitor e escritor para criar uma ficção da realidade. Ler a palavra (técnica) e imaginar o objeto  representado – aquilo que chamamos de imaginário.

Já na antiguidade clássica Platão olhava com desconfiança atores, artistas e poetas de pretenderem fazer um fac-símile da realidade. Em A República Platão acusava-os de fazerem uma mera imitação da realidade, no mesmo estilo sugerido por Jorge Luís Borges e seus mapas.

Desde Platão, séculos se passaram e percebe-se que o avanço da tecnologia vai na direção de borrar as fronteiras entre a técnica (a representação) e o real, ou entre real e imaginário. O mapa não é o território, o virtual não é o real. Porém, cada desenvolvimento tecnológico faz com que seja mais difícil estabelecer essas distinções.

Aliás, um dos sintomas clínicos da esquizofrenia é tomar a representação como a própria coisa. Algo como entrar em um restaurante, pedir o cardápio e comê-lo achando que a foto do filé a parmegiana seja o próprio prato servido.

Se nas imagens tecnológicas clássicas como a fotografia e o cinema esse emaranhado representação/realidade já estava presente (como nas lendas de que a fotografia roubava nossa alma ou no susto da audiência com as imagens de um trem em movimento no primeiro cinema), agora com o ao vivo, on line, tempo real e tecnologias imersivas como 3D, 4D, realidade virtual e realidade aumentada as fronteiras tendem a desaparecer na percepção.

Curta "Hyper-Reality"

Realidade aumentada e hiper-realidade


Em si não há nada de perturbador sobre o Pokémon GO – a não ser as denúncias coleta ilegal de dados pessoais e de que o Niantic Labs (desenvolvedor do game) é gerenciado  por John Hanke, homem responsável pelo maior escândalo de privacidade na Internet nos seus tempos de Google: os carros de rastreamento do Google Street View copiou secretamente tráficos de internet de redes domésticas, coletando senhas, e-mails, informações financeiras etc., segundo The Interceptclique aqui.

Em termos de tecnologia, o jogo apenas arranha a superfície das possibilidades futuras da realidade aumentada. Essa talvez seja o principal ponto para ser discutido: assim como foi o velho ICQ nos anos 1990, que preparou toda uma nova geração para o uso massivo de programas de comunicação instantâneas no trabalho e lazer no século XXI.

A realidade aumentada promete ir muito além do rigor cartográfico daquele reino descrito por Jorge Luís Borges. Está muito mais próximo da metáfora do filme Matrix: o mapa superando o próprio território – se, como dizem as neurociências, a experiência da realidade nada mais é do que uma configuração de reações químicas e disparos de neurônios no cérebro, as imagens deixarão de ser apenas representações ou cartografias do território.

Superarão a realidade de tal forma que teremos apenas os farrapos do mundo real se agarrando ao mapa.

Como exemplifica o curta Hyper-Reality de Keiich Matsuda (analisado pelo Cinegnose, clique aqui) onde o protagonista caminha pelas ruas de Medelin, Colombia, com um Google Glass no qual a cidade é coberta  por camadas e camadas de dados, interfaces, menus de opções, animações, pop ups, etc.

A realidade aumentada do data-glass amplifica ou hiper-realiza o real (as ruas e edifícios ficam melhores, mais coloridos, as pessoas mais interessantes, tudo fica divertido e interativo), enquanto lá fora, do outro lado das camadas de dados, está o deserto do real.

Vivemos uma época na qual a tecnologia tem produzido representações cada vez mais divorciadas da realidade.

Pokémon GO faz o jogador despender um esforço real e tempo para capturar os animaizinhos digitais. Faz até nos tornar mais familiarizados com os nossos ambiente urbanos, mas apenas dentro do contexto de interação do jogo.

Em toda a História, as representações da realidade nos tocaram, fizeram a gente pensar e enobreceu a espécie através das artes e das comunicações. Porém, Pokémon GO é um exemplar ainda muito incipiente (e, por isso, divertido) da futura desertificação do real – o momento em que as representações tornam-se apresentações, isto é, suplantam a própria realidade.

Por enquanto, programas como Pokémon GO são apenas metafóricos e anedóticos. Sua tecnologia não tende a melhorar a compreensão da realidade, mas desertificá-la.

Postagens Relacionadas












Em "Esquadrão Suicida" o Coringa foi a maior vítima

$
0
0

A maior vítima do filme “Esquadrão Suicida” não foi a super-vilã do Outro Mundo Enchantress. Foi o Coringa de Jared Leto, vítima da diluição de todos os vilões do filme na estratégia ideológica do “good-bad evil”: maus, porém com bom coração. Os brutos também amam. Forma hollywoodiana de esvaziamento do Mal ontológico – o vilão não quer se vingar do herói, mas da sociedade hipócrita que o produziu. Em tempos de endurecimento da guerra contra o terrorismo, Hollywood não pode permitir mais um Coringa como o de Heath Ledger. Com a neutralização do arquétipo do Coringa, pelo menos Leto livrou-se da maldição sincromística que o palhaço do crime parece lançar sobre os atores que o encarnam.


Tecnicamente o filme Esquadrão Suicidaé perfeito: tem ação, efeitos especiais, edição, ritmo acelerado e aventura. Porém sua narrativa é maciça, confusa e barulhenta. É mais uma tentativa da DC Comics em criar uma série de filmes interligados  como o bem sucedido universo cinemático da Marvel.

Assim como no universo Marvel, em Esquadrão Suicidaacompanhamos o típico heroísmo amoral onde a Justiça está sempre acima de Bem e do Mal e os fins justificam os meios - toda escala de destruição e mortes não passa de efeitos colaterais. Mas enquanto na Marvel essa amoralidade está no plano da fantasia (e nem por isso menos ideológico), na DC Comics está sombriamente próximo da realpolitik do combate ao terrorismo internacional.

Apesar dessas semelhanças, Esquadrão Suicidaexplora uma novidade na atual tendência das adaptações dos quadrinhos para as telonas: por assim dizer, o “good-bad Evil”, o Mal simultaneamente bom e mau. Os piores assassinos seriais, sociopatas, psicóticos, confinados nas prisões de segurança máxima dos EUA, mas capazes de amar, ter compaixão, ser um bom pai e desenvolver algum tipo de idealismo e espírito de ética... pelo menos entre os vilões.


Como veremos adiante, o pesquisador alemão Dieter Prokop chamava esse estratégia do “cinema de monopólio” como “construção sígnica” a partir de uma tipologia baseada em “fantasias modais” de acordo com predisposições médias extraídas do público por meio de pesquisas.

Assim como a amoralidade heroica, essa construção sígnica de personagens é mais uma estratégia ideológica evitar que a “vilania” (sociopatia, psicose, sadismo etc.) se sobressaia na narrativa como produção social, como se notalibilizou a figura do Coringa de Christopher Nolan – o vilão como a contraparte do herói e como a evidência viva de uma sociedade hipócrita.

Por isso, a maior vítima do Esquadrão Suicida acabou sendo o Coringa de Jared Leto cujo resultado final virou um mix de Scarface com gangsta ostentação, diluindo a virulência desse arquetípico personagem. Ao anular a letalidade do palhaço do crime, pelo menos Leto livrou-se da maldição sincromística que acompanha atores que o encarnam – sobre isso clique aqui.


O Filme


Tudo inicia quando vemos Will Smith em uma prisão na Lousiana como o exímio atirador sniper Deadshot. Sob a música “Simpathy For the Devil” dos Rolling Stones vemos depois a sombria figura de Amanda Waller (Viola Davis), agente da Inteligência do Governo, com uma preocupante questão: “O que acontecerá se o próximo Super-Homem for um terrorista?”.

Após a morte do Super-Homem, a grande questão estratégica são os meta-humanos. E se um deles de repente quiser tirar o presidente da Casa Branca? Super-Homem era um meta-humano “bom”. Mas, e o próximo?

Meta-humanos não são confiáveis. Por isso, Waller tenta convencer os militares da necessidade de formar uma espécie de força-tarefa com os maiores super vilões do planeta para enfrentar potenciais novos inimigos.

Novos personagens menos conhecidos do que Batman e Super-Homem são introduzidos com rápidos flashbacks: a sensual e enlouquecida Harley Quinn – no passado foi uma doutora em uma prisão psiquiátrica na qual se apaixonou por um paciente muito especial: o Coringa.

Outros vão aparecendo como Killer Croc (que involuiu à condição de réptil), o tatuado Diablo (amaldiçoado com o poder de criar fogo), Bumerangue (assaltou todos os bancos da Austrália e tentava uma próspera carreira nos EUA), Katana (assombrada pelo espírito do seu marido morto na sua espada samurai) e outros de uma galeria de mercenários que ganharão muito pouco em troca da missão.


E para piorar, uma super-arma secreta se rebela contra os militares: a antiga bruxa asteca, Enchantress (cujo espírito possuiu o corpo de uma arqueóloga (June) e passou a prestar serviços à espionagem dos EUA) libertou seu irmão incubus e juntos planejam dominar a humanidade.

O estrago começa em uma estação de metrô na cidade de Midway (uma grande Nova York gótica). A cidade é evacuada e a força-tarefa do Esquadrão Suicida é convocada para entrar na cidade e derrotar a vilã do Outro Mundo.

Girl Power?


As mulheres parecem dar as cartas no filme: Waller e Enchantress são polos opostos de poder. Enquanto Harley Quinn, a amante do Coringa, é a cara do filme, o personagem disruptivo e mais ousado. E há ainda Katana, a samurai que com sua espada absorve o espírito das suas vítimas.

Girl Power? Esse é o início das camadas de aparência do filme. Waller é mulher e negra. Mas que repete a mesma amoralidade do poder dos brancos: é capaz de matar friamente os inocentes funcionários do FBI da sala de comando da força-tarefa para “apagar arquivo” como um infeliz efeito colateral. Uma referência involuntária ao presidente democrata Obama, senhor das armas e guerras que repete o mesmo traquejo belicista dos presidentes republicanos?

Harley Quinn veste-se e comporta-se como um fetiche ao voyeurismo masculino – parece ser o complemento erótico para tanta testosterona de metralhadoras e explosões.


O personagem mais interessante parece ser mesmo a deusa vilã Enchantress: ela revolta-se com um mundo que não respeita mais deuses e apenas idolatra máquinas. Tenta mudar tudo isso abrindo um portal para o Outro Mundo para criar uma máquina divina que destrua as máquinas humanas.

Mas esse interessante tema arquetípico é apenas sugerido em uma simples linha de diálogo. Para depois ser diluído em sequências risíveis que lembram um pastiche do filme Ghostbusters.

Vilões com bom coração


O que realmente desaponta em Esquadrão Suicidaé o Coringa de Jared Leto. Como todos os outros vilões da força-tarefa suicida, sofre a construção sígnica do good-bad evil.

O pesquisador Dieter Prokop encontrou essa forma de diluição ideológica do vilões com o exemplo da mulher fatal ou vamp. Surgida no cinema pré-monopolista das décadas de 1910-20 era uma mulher autônoma, arruinava-se a si mesma e levava os homens à destruição através da sua sensualidade, como bem representou o mito de Greta Garbo.

A partir dos anos 1930 temos um novo tipo de mulher: a good-bad girl (garota boa-má), uma combinação de signos que jamais seria possível na realidade. Há um processo de desmanche do antigo estereótipo da mulher vamp, onde os pedaços dos filmes antigos (esquemas, sequências etc.) são juntados. A mulher vamp, com personalidade forte, é, no cinema moderno, tão má como a antiga, mas no decorrer da narrativa transforma-se, reconciliando-se com o mundo - veja MARCONDES FILHO, Ciro. Dieter Prokop, coleção grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1987.


A good-bad girl fascina pela sua loucura, sensualidade e aparente desajustamento, mas no fim descobrimos que podemos levá-la para casa e apresentarmos às nossas mães.

Os brutos também amam


O Coringa de Heath Ledger foi talvez uma exceção na construção da vilania nos filmes das franquias Marvel e DC Comics: em Batman - O Cavaleiro das Trevas, o Coringa é um produto social, o outro lado da moeda da Ordem e da Justiça – a Ordem produz desordem, e a Justiça, injustiça. Como a vilã vamp, quer vingar-se não do herói, mas do mundo nem que para isso tenha que morrer no final. É o Mal ontológico.

Em Esquadrão Suicida, temos, ao contrário, o vilão com bom coração. Tudo o que eles querem no final é canais de TV a cabo nas suas celas ou um dia para Deadshot ajudar sua filha fazer lição de casa e ser um bom pai.

Por isso, Jared Leto pode ficar tranquilo quanto à maldição sincromística que o arquétipo do Coringa parece lançar aos atores que o performam: o seu Coringa é, no final, um bruto que também ama.


Ficha Técnica

Título: Esquadrão Suicida
Diretor: David Ayer
Roteiro: David Ayer
Elenco:  Will Smith, Jared Leto, Margot Robbie, Viola Davis,
Produção: DC Comics, Warner Bros.
Distribuição: Warner Bros.
Ano: 2016

País: EUA



Grande Mídia vê Olimpíadas Rio 2016 como anestésico político

$
0
0

Depois da Copa de 2014, cujo baixo astral culminou com os 7 X 1 da Alemanha contra o Brasil, as coisas mudaram na cobertura da grande mídia dos Jogos Olímpicos Rio 2016: tudo é espetáculo, da organização do evento ao desempenho olímpico dos atletas brasileiros. Se em outros tempos eventos negativos eram repercutidos para criar evidências de desorganização e fracasso, agora são minimizados ou se transformam em instrumento de uma inesperada verve patriótica, como no caso dos nadadores norte-americanos pegos na mentira, depois de anos de um interesseiro culto ao complexo de vira-latas. Porém, na cobertura tautista (autismo + tautologia) principalmente da Globo “gafes” acontecem: William Waack que acidentalmente saiu script patriótico que a Globo agora quer turbinar (o vício falou mais alto para Waack) e, mais uma vez, o narrador Galvão Bueno comete atos falhos, sempre alheio à realidade externa ao seu falatório. Para a grande mídia as Olimpíadas se transformaram num anestésico político para o grave momento que atravessa o País do impeachment.



Mortes, atrasos, manifestações, arrastões contra banhistas nas praias do Rio de Janeiro, descontentamentos, gastos excessivos. A cada semana o Brasil produzia uma notícia ruim na cobertura midiática negativa da Copa de 2014
Hotéis lotados, Agência Moody’s avaliando positivamente legado dos jogos para o País, o Rio atraente de novo, sinais de recuperação econômica, o espetáculo da abertura no Maracanã. Esse foi o clima que antecedeu as Olimpíadas Rio 2016. Cobertura positiva, principalmente após o afastamento da presidenta Dilma.
O ministro Henrique Meirelles aproveita o clima olímpico e fala em “sinais de recuperação econômica”. Empresários falam que afastamento definitivo da presidenta vai “destravar investimentos”.  Vice-presidente do Secovi-Rio, Leonardo Schneider, fala que Olimpíadas serão “sementinha plantada para florescer pós-jogos”.
Para a grande mídia, a Rio 2016 transformou-se numa espécie de blindagem ou de anestésico político para um incômodo processo de impeachment que repercute negativamente no Exterior. Como a grande mídia foi uma das grandes armas para gerir a atmosfera de instabilidade política e econômica,  principalmente desde o início cobertura do chamado Mensalão em 2005, chegou o momento de tirar o pé do acelerador e mudar de direção.
Repentinamente, do fundo do abismo, o País renasce como num passe de mágica. Afinal, crise é “psicológica” como sugeriu em certo momento o atual vice-presidente-interino-em-exercício Michel Temer.


O duplo papel estratégico da Globo


Se toda a crise é de natureza psicológica, nada melhor do que deixar todo o trabalho de produção do cimento da retomada para a mídia tautista (Autismo + Tautologia), principalmente da cobertura da TV Globo – sobre o conceito de “tautismo” clique aqui.
Com direitos hegemônicos de transmissão dos jogos, a Globo tem consciência de que deve desempenhar um duplo papel estratégico: ser relações públicas de si mesma (por meio de metalinguagem, auto-referências etc.) para manter a imagem de que ainda é poderosa e influente; e abandonar a síndrome vira-latas cuidadosamente cultivada nos últimos anos (a conhecida editoria “este País é uma merda!”) criando a percepção do País da retomada do crescimento econômico.
Apesar do hábito fazer o monge e trair alguns dos seus apresentadores como veremos adiante no caso de William Waack, apresentador do Jornal da Globo.

Primeiros movimentos do renascimento do Brasil


Tudo começou com a suposta ameaça de uma “célula terrorista amadora” no Brasil que estaria tramando sombrios planos para acabar com a paz dos jogos. Com pompa e circunstância, o ministro da Justiça Alexandre de Moraes convoca a imprensa para anunciar a prisão de terroristas brasileiros que se comunicavam por WhatsApp e compravam armas do Paraguai pela Internet...
Primeiro movimento para demonstrar que o País havia alcançado a maioridade internacional: também possui terroristas que são corajosamente combatidos. Diligentemente a mídia repercutiu acriticamente o episódio – sintoma tautista: Alexandre de Moraes confirma a escalada diária dos telejornais com notícias de ataques em Nice e cidades alemãs. Também efeito Heisenberg: a mídia cada vez mais cobre a si mesma e os seus efeitos sobre a política e economia – sobre esse conceito clique aqui.


Ironicamente, os únicos turistas inocentes feridos não foram obra de alguma célula amadora do Estado Islâmico, mas de uma simples câmera suspensa por cabos do Parque Olímpico que despencou em uma tarde de fortes ventos. Sete pessoas, entre adultos e crianças, foram atingidas. “Sem gravidade”, destacavam as manchetes que minimizavam o incidente.
Fosse em outros tempos, entraria em ação a editoria “esse País é uma m*!”. Se destacaria a falta de planejamento, má organização, imagens da turista em close ensanguentada. Pouco importaria informações de que a câmera é responsabilidade da OBS, empresa que pertence ao COI.
A partir daí, os jogos seriam marcados pelo clima de insegurança. Por exemplo, um incêndio como o de ontem em uma barraca de cronometragem do Triatlo seria mais uma notícia dessa verdadeira retranca dos jogos que seria aberta: os Jogos do Medo! 
Porém, o mais surpreendente foi o caso dos quatro atletas da equipe de natação dos EUA vítimas de um suposto assalto após saírem de uma festa na Zona Sul do Rio. Após depredarem o banheiro de um posto de gasolina, denunciariam em uma delegacia que teriam sido vítimas de assalto, uma invenção para encobrir um caso extraconjugal de um deles na festa e o vexame da depredação.
Novamente, fosse em outros tempos seria a oportunidade da grande mídia mais uma vez sensacionalizar o episódio como evidência de Jogos Olímpicos inseguros e atletas do mundo inteiro em perigo pelas ruas da cidade.
É claro que as descobertas posteriores como a câmera de segurança mostrando os norte-americanos chegando na vila olímpica com seus celulares e carteiras ou as contradições do caso seriam descartadas da pauta dos noticiários.
Surpreendentemente, a grande mídia transformou o caso numa oportunidade de afirmação patriótica: ver os norte-americanos pedindo desculpas não tem preço, além de ser uma oportunidade de reverter a imagem negativa do País feita pela mídia estrangeira... Afinal, eles também insistem em dizer que há golpe no Brasil...
Americanos pedindo desculpas não tem preço

Apenas William Waack saiu do script de renascimento patriótico: foi traído pelo próprio traquejo automático da síndrome de vira-latas adquirida. “São meninos, sim”, admitiu Waack. Para depois emendar: “mas devem ser desculpados pela fama de criminalidade do Rio de Janeiro”.
Até o Ministério Público resolveu tirar uma casquinha da onda midiática patriótica para decidir aumentar a multa dos atletas para R$ 150 mil.
O problema dessa verve patriótica é que a grande mídia enfraqueceu um plot importante do seu script: a demonização dos russos. A foto espalhada pelas redes sociais de supostos membros da delegação russa flagrados colocando vodka em garrafas d’água antes de ir para a vila olímpica acabou não tendo a repercussão necessária. Os nadadores norte-americanos depredadores e mentirosos roubaram a cena.
E até agora não foram identificadas as pessoas da foto, se eram atletas ou sequer parte técnica da delegação russa... essas redes sociais repercutem qualquer coisa... - veja foto abaixo.
Quem eram os supostos russos?

O viés estatístico


Apesar do País sediar o evento, o número de medalhas para o Brasil não teve o rendimento esperado, retrocedendo aos números das Olimpíadas de Atenas em 2004.
Se em outros tempos essa informação seria repercutida midiaticamente como mais uma evidência da falência de um evento que, para nada, o Brasil ousou sediar, agora é tudo diferente. Basta mudar o viés estatístico.
Um analista da SporTV observou o desempenho olímpico nacional negativo. Mas, outro comentarista, Raphael Rezende, foi rápido no gatilho: “mas chegamos a 70 finais comparado as 40 das Olimpíadas de Pequim... crescimento de quase o dobro...”. Esse garoto tem futuro nas Organizações Globo.

Galvão Bueno e o atleta paraolímpico Fernando Fernandes

Mais tautismo de Galvão Bueno


E o nome que é a própria encarnação do tautismo da TV Globo, Galvão Bueno, aprontou mais uma. Depois de adiar a largada de uma prova de natação por não ficar calado no momento de concentração dos atletas (clique aqui), agora cometeu uma inacreditável gafe ao pedir para todos ficarem de pé com cadeirante no estúdio.
Após o final dos 200m de atletismo com mais uma medalha para Usain Bolt, Bueno pediu para todos ficarem em pé para ouvirem o hino da Jamaica, cantado pelo comediante Marcelo Adnet. O que causou constrangimento para o velejador Lars Grael e o atleta paraolímpico Fernando Fernandes. Os outros comentaristas levantaram, para se sentarem rapidamente ao perceberem a “gafe”.
Mas dentro desse contexto aqui analisado, o incidente foi apenas mais uma “gafe”. Assim como William Waack, Galvão Bueno continua sendo traído por uma fala automática que esqueceu do mundo exterior. Isso é o que o Cinegnose chama de “autismo”.

Postagens Relacionadas













Curta da Semana: "Third Reich" - Hitler não morreu para os "The Residents"

$
0
0

A banda mais estranha da história do rock faz um vídeo obscuro e surreal de um dos discos mais enigmáticos dos anos 1970. Estamos falando da banda “The Residents” e do disco “Third Reich N’Roll” de 1976. Ao comemorar o trigésimo aniversário em 2001, “The Residents” lançaram o box com DVD e CD chamado “Icky Flix”. Ao longo de décadas os membros da banda se mantiveram incógnitos, não dão entrevistas e nos shows apresentam-se em estranhos disfarces. O vídeo-clip “Third Reich” do DVD Icky Flix” é tão estranho quanto a banda. Se o pensador Theodor Adorno estivesse vivo, certamente gostaria desse curta – Hitler e o nazi-fascismo foram destruídos, mas seu “modus operandi” permaneceu na Indústria Cultural.

Se o pensador alemão Theodor Adorno (expoente da chamada Escola de Frankfurt) estivesse vivo, certamente teria escrito alguma coisa sobre um obscuro grupo musical chamado The Residents. Talvez Adorno não gostasse da música, mas muito provavelmente aprovaria a postura dessa banda em relação à Indústria Cultural.
The Residentsé a mais influente banda anônima da história do “rock”, se é que é possível assim definir o gênero musical desse grupo – uma idiossincrática mistura de acordes eletrônicos, distorções pós-punk, avant-jazz e rock-progressivo, reinterpretando qualquer coisa de John Philip Souza, George Gershwin e Beatles a Hank Williams e James Brown.
Há quem jure que o grupo jamais existiu. Em quatro décadas de existência, sempre mantiveram suas vidas e música na obscuridade. Os membros da banda se recusam a dar entrevistas e nunca expuseram suas identidades. Nas apresentações ao vivo sempre se apresentam totalmente disfarçados. O disfarce mais conhecido consiste em smoking, cartolas e imensas máscaras de globos oculares injetadas de sangue.
Eles justificam essa atitude como inspirada em uma tal de “Teoria da Obscuridade” de um suposto teólogo e músico chamado N. Senada: a arte deve se manter pura, sem a influência do público ou do mercado. A arte deve ser julgada apenas pelo seu trabalho – etnia, gênero, identidade etc. devem ser mantidos no anonimato.
The Residents pertencem a um grupo que os empresaria: a The Cryptic Corporation. O grupo serve de porta-voz da banda, em geral rebatendo questões sobre identidade com repostas vagas e evasivas. Há teorias de que The Residents seria na verdade formado por artistas do pop e rock famosos, mas que mantêm o anonimato em um trabalho paralelo.

Quando o grupo comemorou seus 30 anos de existência em 2001, lançou uma caixa combinando DVD e CD chamado Icky Flix com vídeo-clips e versões remixadas e novas versões da sua extensa discografia.
Dos vídeo-clips o Cinegnose selecionou esse curta-clip chamado Third Reich, um vídeo-clip relativo ao segundo disco do The Residents lançado em 1976 chamado Third Reich N’ Roll uma sátira não só do Nazismo, mas da própria indústria musical, mostrando Hitler  (representado pelo cantor Dick Clark) segurando uma cenoura.
O disco continha apenas duas longas canções: “Swastikas On Parade” e “Hitler Was A Vegetarian”. O disco era recheado de paródias com o ditador nazista com fragmentos de várias canções clássicas do rock e do funk. Um dos prazeres dos ouvintes era identificar a origem dos fragmentos musicais.
Após o lançamento do disco, The Residentsfez três concertos em Berkeley, Califórnia. Os shows são lendários: são os únicos realizados durante toda a década de 70; foi feito atrás de um vidro meio opaco, como se estivessem dentro de um aquário e todos estavam vestidos de múmias.
The Residents em 1976 em show do lançamento do "Third Reich N'Roll"

O Curta


Inteiramente em stop motion e em pb, o curta é estranho e surreal e com um significado tão obscuro como a própria banda. Mas fica claro que há um tema latente que certamente chamaria a atenção de Theodor Adorno: a moderna indústria do entretenimento como uma continuidade da máquina de propaganda nazista.
Assistimos a um grupo musical mascarado por capuzes de jornal (talvez os próprios Residents) que repentinamente são subjugados de forma violenta por sirenes e uma figura armada e ameaçadora. Para depois tudo se transformar numa espécie de bizarro altar nazi-midiático: um aparelho de TV com a suástica na tela empunhando uma guitarra se destaca no desfile de estranhos objetos ao som de um tema rock n’roll em sintetizador.
Nesse altar nazi-midiático, onde desponta o próprio Hitler no alto, sugere que a banda que vimos na primeira metade do vídeo, foi submetida, controlada e suas guitarras roubadas.

No livro clássico Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, o conceito de Indústria Cultural ia muito além da noção de “meios de comunicação de massa”. Eles viam uma linha de continuidade entre as técnicas modernas de propaganda (a esteticização da política) criadas pelo nazi-fascismo e a atual cultura de massas. Hitler e o nazismo foram destruídos, mas seu modus operandi permaneceu e prosperou como uma próspera indústria de entretenimento.
Em Adorno e Horkheimer o nazismo conseguiu banalizar o mal através de uma estética kitsch repleta de estereótipos de felicidade por meio de uma incipiente cultura de celebridades – onde Hitler despontava como o primeiro pop star da História.
Principalmente para Theodor Adorno, a arte teria sido roubada (transformada em pop, design e comunicação visual) para criar uma embalagem banalizada, “bonita” e excitante para um conteúdo horrível e desumano. É o que estaria por trás da mercantilização da arte, da qual os Residents tentaram fugir e satirizaram por 40 anos.

A carreira dessa banda estranha e bizarra vale à pena ser conhecida. É um exemplo de como a indústria do entretenimento pode ser enfrentada dentro dos seus próprios domínios.

A distopia do esquecimento no filme "Embers"

$
0
0


Uma doença neurológica contaminou a maioria da população do planeta, na qual as pessoas perdem as memórias de curto prazo. A vida em sociedade torna-se impossível, transformando grandes cidades em espaços vazios e ruínas por onde vagam pessoas tentando sobreviver imersas no esquecimento. Esse é o filme “Embers” (2015), uma co-produção Polônia/EUA que faz uma abordagem bem diferente do tradicional tema das distopias pós-apocalipse: aqui não há um mundo novo a ser reconstruído por adição, mas um mundo cruel que opera por subtração. O filme questiona: o que nos torna humanos? A memória ou o esquecimento? Mas “Embers” também é sombriamente profético -  num mundo digital no qual a memória é frágil e efêmera, a única coisa que sobrará serão os suportes analógicos dos livros, a última esperança para recuperar a humanidade esquecida. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

O que nos define como humanos: a capacidade de lembrar ou de esquecer? A memória pode ser a base da nossa identidade, aquilo que define quem somos. Mas em muitas ocasiões, transforma-se num fardo opressor que não permite a libertação. Porém, o que chamamos de realidade pode ser baseado no esquecimento daquilo que fomos. E o que é pior: podemos ter esquecido que esquecemos, tornando a realidade banal e aceitável.
Essa é a indagação central em um distópico mundo futuro mostrado pelo filme Embers (2015) onde uma não identificada doença neurológica contaminou a maioria da população do planeta, fazendo as pessoas perderem a memória de curto prazo em diferentes níveis.
Sobreviventes de um mundo que está em ruínas (nas grandes cidades a perda da memória das pessoas simplesmente colapsou toda infraestrutura de energia e serviços) vagam por paisagens vazias tentando reunir fragmentos de suas sinapses cerebrais desgastadas para, daqui a alguns momentos, esquecer tudo para novamente recomeçar do zero. A vida não mais opera por adição, mas agora por subtração.
Em muitos aspectos, Embers lembra o filme Ensaio sobre a Cegueira (2008) onde uma inexplicável epidemia de cegueira atinge a todos que passam a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários.


Diferente disso, Claire Carré (na sua estreia em direção de longas) e Charles Spano optam por uma abordagem mais (desculpe o trocadilho) cerebral e episódico concentrando-se em uma série de personagens que vivem a doença neurológica em diferentes estágios e tentam seguir em frente nas suas vidas.
Para muitos, Embers parece ser mais um filme sobre distopias, tema comum no cinema sci-fi. Um tema dileto por roteiristas, porque após o apocalipse o mundo surge como um espaço livre para criar novos personagens, narrativas, situações e cenografias soltas das amarras da verossimilhança.
Embers, por outro lado, afasta-se dessa abordagem comum das distopias, optando por atravessar um terreno mais existencial focado nas questões que envolvem a identidade e a realidade. Em vez de construir um mundo diferente com um novo conjunto de regras e orientações, o filme nos mostra uma narrativa de desconstrução e subtração: embora estejamos no pós-apocalipse, falta ainda desconstruir aquilo que entendemos por humanidade, realidade, racionalidade e identidade.
Um filme cruel, porque após a sociedade humana ser destruída fisicamente, falta agora destruir o próprio senso de identidade, aquilo que supostamente nos definiria como humanos.


O Filme

Nada é explicado sobre a origem da epidemia neurológica. Apenas que se iniciou nos grandes centros urbanos.
O filme começa com um casal de errantes (Jason Ritter e Iva Gocheva) que acorda juntos, mas sem conseguir lembrar de nada sobre o outro. E nem de si mesmos. O par assume que deve ter algum tipo de relacionamento romântico, mas estão fadados a repetir o mesmo esforço em resgatar indícios de memória todos os dias.
Enquanto esse romance minimalista vem e vai, conhecemos outros personagens paralelos: um professor (Tucker Smalwood) que criou um engenhoso sistema em sua casa em uma zona rural para resgatar memórias do dia anterior através de anotações e cordas estendidas que o faz não esquecer o caminho de volta para casa; uma criança (Silvan Friedman) que vaga pelos bosques e vive uma espécie de loop mental, resmungando e correndo em círculos; um homem psicótico e raivoso (Karl Glusman) que passa o dia arrebentando para-brisas dos carros abandonados pelas ruas sem saber o porquê desse impulso.
Aliás, as únicas coisas que restaram foram memórias reflexas como, por exemplo, andar de bicicleta ou certas habilidades manuais como rachar lenha – o que resulta em mais um esforço de memória: como eu sei fazer isso? Mas esse breve momento de lembrar de que algo foi esquecido vai embora. Esquecer que esquecemos torna a realidade estranha e divorciada de qualquer racionalidade.
O contraponto de tudo isso é um homem rico (Roberto Cots) que conseguiu escapar da contaminação com a sua filha chamada Miranda (Greta Fernandez), confinados em um bunker subterrâneo high-tech. Todas as manhãs Miranda responde a perguntas de um sistema de diagnóstico computadorizado para garantir que ela não foi infectada com a doença.


No bunker estão todas as memórias da sua família e da própria espécie humana. O pai quer garantir o que restou de humanidade: quadros, o HD do computador e um violoncelo que Miranda toca diariamente. Mas tudo não passa de um museu morto. Para Miranda a memória e o tédio são pesadelos numa prisão sem vida. Ela quer o oposto: sair de lá para se sentir viva, nem que seja ao custo da infecção e perda eterna da memória.

Esquecimento e inocência

Embers explora esse polo oposto: de um lado a memória do bunker como um museu sem vida; e do outro o mundo de fora onde está o esquecimento, mas por outro lado pulsa de experiências e sensações que, no final, é o que nos torna vivos. Porém, sem conseguirmos fixa-las em símbolos ou linguagem.
O filme sugere uma inocência na luta pela sobrevivência dos personagens – afinal, sempre estão experimentando experiências como fosse a primeira vez (o toque da areia nas mãos, os pés na água do mar). Todas as experiências que normalmente seriam traumáticas, não são superadas, mas simplesmente esquecidas. Todos apenas vivem o momento, a intensidade do tempo e do espaço.
Nem podemos dizer que os personagens vivem numa cultura hedonista ou niilista, porque a dimensão ética e moral desapareceu – esquecemos que esquecemos, não há mais referência nem de passado ou futuro.


A esperança nos livros

Mas é justamente por isso que o mundo se arruinou em uma distopia inconsciente. Apenas os habitantes do bunker sabem o que foi perdido. E também o professor na sua casa de campo, imerso na sua engenhosa metodologia para se apegar a índices de memórias. E nos livros que o rodeiam, nos quais faz diariamente uma pesquisa prometeica para tentar encontrar um meio de recuperar as sinapses neuronais. Mas  a cada dia está condenado a recomeçar do zero.
É nesse ponto que Embers sugere um tema atual e urgente: livros foram o único registro de humanidade preservado. Num mundo tecnológico e digital, os registros magnéticos em suportes informáticos são frágeis e efêmeros, diante da memória analógica dos livros. Em uma catástrofe, facilmente esses frágeis suportes seriam perdidos, desmagnetizados ou simplesmente corrompidos.
Ao contrário dos suportes analógicos, capazes de resistir a séculos de História. Se hoje fazemos História, é devido ao legado analógico. Será que as gerações futuras terão algum registro da nossa civilização? Nesse sentido, o filme Embers pode ser sombriamente profético.


Ficha Técnica

Título: Embers
Diretor: Claire Carré
Roteiro: Charles Spano, Claire Carré
Elenco:  Jason Ritter, Iva Gocheva, Greta Fernandez, Tucker Smallwood, Roberto Cots
Produção: Chaotic Good, Papaya Films
Distribuição: Bunker Features
Ano: 2015
País: Polônia/EUA

Postagens Relacionadas













Viewing all 2058 articles
Browse latest View live


<script src="https://jsc.adskeeper.com/r/s/rssing.com.1596347.js" async> </script>