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Somos todos perdedores no filme "Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência"

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Imagine se o leitor fosse um ser extraterrestre que chegasse na Terra e visse pela primeira vez aspectos do cotidiano da vida dos terrestres em bares, casas, escritórios e ruas. Certamente veria tudo com um misto de estranheza e espanto pelo artificialismo, tensões, angústias e humor involuntário de muitas situações cotidianas. Pois essa é a proposta do diretor sueco Roy Andersson no filme “Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência” (2014) que fecha a sua Trilogia iniciada há 15 anos  sobre “como ser um ser humano”. São 39 esquetes de pequenos flagrantes da rotina diária, mostrando principalmente os “perdedores” num olhar radicalmente diferente dos losers hollywoodianos. Se nos filmes de Hollywood os “losers” são orgulhosos e viram um estilo de vida, em Andersson os perdedores são a própria essência gnóstica da condição humana: estrangeiros em seu próprio planeta, sociedade, família e amigos.


Com o filme Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência o diretor sueco Roy Anderson encerra sua trilogia sobre “como ser um ser humano” iniciada há 15 anos com Songs From The Second Floor seguido por Vocês, Os Vivos– filmes analisados pelo Cinegnose: clique aqui e aqui

E qual a conclusão que ele chega nesse último filme? “Você precisa acompanhar a passagem dos dias. Ontem foi terça, hoje é quarta e amanhã será quinta. Se você não acompanha o caos se instaura...”, responde alguém que está num ponto de ônibus para outra pessoa que disse que aquele dia estava com cara de quinta-feira.

Em Um Pombo Pousou...Andersson deu continuidade aos seus personagens hesitantes, desajeitados, que parecem a cada quadro desorientados e sem rumo – a absoluta disfuncionalidade dos personagens em relação aos papéis que devem cumprir na sociedade.


O filme é composto de uma série de 39 esquetes irônicas e aparentemente isoladas, pequenos flagrantes do cotidiano onde as pessoas parecem entediadas em um universo com estranha atmosfera de artificialidade. Aparentemente isoladas porque cada detalhe que vemos poderá ser retomado em uma esquete futura.

Cada um dos longos planos (praticamente cada cena é um plano de câmera fixo com personagens entrando e saindo como estivéssemos assistindo a um filme do início do cinema) tem uma beleza estranhamente hiperreal – mistura de bege e cinza, planos meticulosamente construídos em profundidade de campo. É como se assistíssemos a uma série de quadros do pintor norte-americanos Edward Hopper (1882-1967) das suas misteriosas pinturas com representações hiperrealistas da solidão contemporânea nos escritórios, ruas, lanchonetes e hotéis.

Se no primeiro filme da trilogia Andersson focava um aspecto mais “macro” (a crise econômica e espiritual europeias) e no segundo a escala “micro” da angústia frente ao cumprimento dos papéis e convenções sociais, no terceiro filme o diretor parece aprofundar a condição dos perdedores – se no segundo filme Andersson expôs a disfuncionalidade cotidiana das pessoas cumprirem seus papéis (aquilo que a Sociologia chama de “dramas de adaptação”), aqui assistimos a derrotas e às mil pequenas mortes absurdas de todos os dias.

Morremos diariamente por termos que cumprir scripts repetitivos. Com seus planos longos e fixos, Andersson nos obriga a nos distanciar para percebermos o quanto cada cena cotidiana pode ser artificial e ridícula. Como conclui um personagem na linha de diálogo acima, somos obrigados a ser assim: obedientemente acompanhando os dias, senão “o caos se instaura”.


O Filme


Embora o filme pareça irregular com cenas fragmentadas, há um tema comum que os une: os perdedores – embora cada esquete pareça silenciosa e serena, há uma estranha tensão em cada personagem: elas parecem zumbis obrigados a cumprir seus papéis da sociedade e do próprio filme, mas parece algo querendo explodir em cada personagem. Eles tentam seguir em frente com fleugma e indiferença.

A professora de sapateado que tenta conter sua atração sexual pelo jovem aluno; uma senhora no seu leito de morte no hospital que se agarra a sua bolsa com joias e dinheiro pensando em levar tudo para o céu diante da resistência dos seus filhos e parentes; a balconista que não sabe o que fazer com o pedido do cliente que está morto no chão há mais de uma hora.

Um bar que é invadido pela comitiva do Rei Carlos XII da Suécia enquanto lá fora passa uma procissão interminável e soldados e cavalos. O Rei, reverenciado na Suécia como um gênio tático militar e ícone do machismo nacional, aqui aparece como um jovem lânguido atraído por um rapaz balconista enquanto pede um copo de água. Os soldados tentam manter a aparência diante da “espontaneidade” do Rei. Todos parecem entrar em conflito com seus papéis, convenções ou expectativas que a sociedade tem com eles em situações non sense e que beiram o humor negro.

Mas Andersson foca principalmente em uma dupla de completos losers e desajeitados: Jonathan e Sam, uma dupla de vendedores de brincadeiras – nas suas malas estão produtos como sacos de risadas, dentaduras de vampiro e máscaras hediondas do “Tio Banguela”. “Nós queremos ajudar as pessoas a se divertir”, repete mecanicamente o deprimido Jonathan.


Eles tentam repetir clichês motivacionais de vendas como “é um novo produto em que jogamos todas as nossas fichas” ou “causar boas risadas seja em festas caseiras ou corporativas”. Mas soa tão artificial como um nerd tentando ser engraçado e popular. Tentam ser otimistas, mas um tristeza profunda dentro deles conspira contra.

Por isso são tímidos, parecem não ter tato para se relacionar com as pessoas. Isso cria belas cenas de solidão que sempre remetem aos famosos personagens solitários dos quadros de Edward Hopper.

Os "losers" de Andersson


O que impressiona na construção das cenas é fleugma ou frieza dos personagens enquanto tudo ao redor está ficando pior: é recorrente no filme cenas em que uma chamada de telefone faz o personagem perder o pé da situação que está ocorrendo diante dos seus olhos. “Fico feliz que esteja tudo bem!”, fala sempre ao telefone enquanto ao seu redor tudo vai mal – a cientista ignora um macaco submetido a uma experiência de eletrochoque ou um barbeiro relutante que vê seu único cliente ir embora.

Tudo aparenta uma normalidade cotidiana que esconde algo em ebulição que está prestes a explodir.

A radicalidade do olhar de Andersson para os perdedores é que ele os vê como estrangeiros – aquele que mantêm uma relação de total estranhamento com aquilo que lhe é mais familiar e rotineiro. O que contrasta com os losers hollywoodianos representados em filmes como Pequena Miss Sunshine, Alta Fidelidade, Superstar: Despenca Uma Estrela ou Juno.

Os freaks da Kombi de Pequena Miss Sunshine ou os adolescentes deslocados de Juno parecem disfuncionais funcionais: parecem ter nascidos para esses papéis, são meticulosamente montados pelos roteiristas para se sentirem à vontade e orgulhosos pela sua condição de viverem à margem do establishment.


Perdedores e Estrangeiros


Enquanto isso, nos filmes de Andersson os losers estão obrigados a cumprirem os papéis sociais, sempre com o rosto crispados, tensos e internamente sofridos. O que apenas cria situações de absurdo humor negro. Eles são perdedores disfuncionais, nunca estão à vontade. Ao contrário dos losers de Hollywood onde o a condição de perdedor vira um estilo de vida.

Por isso Andersson explora a essência gnóstica da condição humana de estrangeira em seu próprio planeta, sociedade, família ou amigos. Para isso cria estranhas atmosferas de artificialismo em cada cena para mostrar a inadaptação dos personagens.

Para alcançar esse efeito, Andersson obriga os atores a reencenarem diversas vezes a mesma cena, até conseguir chegar a um nível mágico de artificialidade reforçado ainda pelas pesadas maquiagens em pancake.

Um artificialismo presente desde a primeira cena onde vemos o próprio diretor parado catatônico olhando para a pomba do título do filme, empalhada e pousada no galho em um museu de História Natural. Na conclusão da sua Trilogia, Andersson parece querer nos dizer que somos tão artificiais como aquela pomba. E assim deveremos ser, senão “o caos se instaura”.



Ficha Técnica


Título: Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência
Diretor: Roy Andersson
Roteiro: Roy Andersson
Elenco:  Holger Andersson, Nils Westblom, Charlotta Larson
Produção: Roy Andersson Filmproduktion AB
Distribuição: Magnolia Pictures
Ano: 2014
País: Suécia, Alemanha, Noruega, França

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A vida é uma gigantesca piada cósmica no filme "Entertainment"

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Uma produção que está na lista dos dez filmes mais estranhos de 2015. Em "Entertainment" (2015) um comediante de “stand up comedy” chamado Neil Hamburger (o alterego do humorista Gregg Turkington) vive uma espécie de autoexílio em uma turnê de shows improváveis por hotéis, bares de beira de estrada e toda sorte de espeluncas em lugares perdidos em desertos na fronteira EUA-México. Um comediante sisudo, desajeitado e amargo que conta piadas enquanto toma copos de drinks no canudinho. A incauta plateia espera piadas que a faça rir das desgraças alheias para se sentirem melhor nas suas vidas tão cinzentas quanto o deserto. Mas tudo que Neil Hamburger lhes apresenta são piadas carregadas de raiva. E também a suspeita de que todos nós estamos metidos em alguma gigantesca piada cósmica.

Fugido das ameaças do nazismo, o filósofo alemão Theodor Adorno estava em Hollywood durante a II Guerra Mundial quando acabou sendo convidado a participar de uma festa onde estariam diversas celebridades para homenagear um herói de guerra que havia perdido o braço direito em combate. Como um estrangeiro recente no país, Adorno não sabia desse “detalhe” sobre o homenageado daquele evento.

Quando foram apresentados, polidamente Adorno estendeu-lhe a mão para cumprimenta-lo. Ao perceber a gafe, em um movimento desajeitado Adorno fingiu que ia colocar a mão no próprio bolso, diante do mal estar de todos que presenciaram a cena. Atrás de Adorno Charles Chaplin observava a tudo. Vendo os apuros do seu amigo estrangeiro, pulou à frente imitou de forma brilhante e silenciosa a gafe do desconfortável Adorno, para arrancar uma explosão de risos de todos.

Mais tarde, ao homenagear o 75o aniversário do amigo Chaplin, Adorno relembrou do episódio e falou: “todo riso está muito próximo do horror que o prepara”, disse para enfatizar essa conexão automática entre riso e crueldade, principalmente na sua forma comercial na indústria do entretenimento. E completou: “rimos do fato de que não há mais nada do que rir”.


Entertainment, do diretor independente norte-americano Rick Alverson, parece ter também encontrado esse mesmo insightde Adorno no Oeste dos EUA. Mais precisamente no deserto da Califórnia em torno do deserto de Mojave onde um comediante de stand up faz uma insólita turnê em cidades esquecidas, em shows para pequenas audiências formadas por bêbados, caipiras perdedores ou novos ricos grosseiros. No meio do nada nas fronteiras entre EUA e México.

Stand up comedy politicamente incorreta


O filme é um veículo para Gregg Turkington que na vida real, há duas décadas, encarna nos palcos o seu alter-ego Neil Hamburger: um comediante sisudo, desajeitado e amargo que se apresenta por trás de seus óculos de aros grossos,  trajando um smoking barato, cabelo seboso e sempre carregando copos com doses extras de drinks que sorve com um canudinho enquanto conta piadas como essa: “Por que estupradores não comem no TGI Fridays em uma sexta-feira à noite? Bem, é difícil sair para estuprar com uma diarreia”.

Ou essa: “O que você obtém quando cruza Sir Elton John com um tigre com dentes de sabre? Eu não sei, mas é bom mantê-lo longe do seu cu!”.

Nos EUA, assim como no Brasil, o gênero stand up comedy foi dominado pelo chamado humor politicamente incorreto que arranca seu humor da chacota aos socialmente mais fracos  e perdedores. Poderíamos interpretar Entertainment também dessa maneira.

Mas o filme nos oferece algo que vai muito além disso nas piadas cruéis e amargas do protagonista: se os pequenos públicos de arruaceiros, homofóbicos, bêbados e novos ricos sem educação esperam ouvir piadas que os façam rir da miséria alheia, Neil Hamburger lhes joga na cara piadas tão ofensivas e sem graça que eles próprios sentem-se ridicularizados.


Por isso, Entertainmenté um filme estranho: parece um filme de David Lynch, porém com baixo orçamento, cheio de interlúdios e silêncios opressivos. O roteiro consiste em momentos estilhaçados que não se ligam, exceto simbolicamente: Neil testemunha um sangrento parto de uma mulher em um banheiro público, as conversas com seu primo agricultor de laranjas, o encontro com um traficante desesperado ou quando é colocado em uma cabine de luz de uma palestrante esquisita de cromoterapia, hóspede em um dos pequenos hotéis onde Neil faz seus pequenos shows.

A cada show, Neil Hamburguer quer na verdade insultar as plateias. Por que?

O Filme


O filme começa com uma sequência onde Neil Hamburguer acompanha um grupo de turistas na visita a um cemitério de aviões antigos em pleno deserto. Com seu boné e ar entre a depressão e o tédio, lembra o protagonista Trevis de Paris, Texas (1984) de Win Wenders.

No filme há diversos interlúdios silenciosos onde o protagonista contempla desertos como se estivesse perdido neles: desertos humanos como o cemitério de aviões ou os cenários abandonados de algum filme western hollyoodiano antigo que foi rodado no deserto; ou as paisagens desoladas do deserto do Mojave.

Neil parece que vive um autoexílio, na sua turnê improvável por lugares perdidos e sempre ligando para sua suposta filha cujas ligações caem invariavelmente na caixa de mensagens. Não temos certeza se essa filha é real ou imaginária.

Acompanhamos a série de shows do comediante em prisões, poços de água abandonados, bares de beira de estrada e toda uma diversidade de espeluncas. O diretor parece comparar esses pequenos lugares perdidos no meio do deserto aos desertos humanos com o  cemitério de aviões ou as cenografias de Hollywood abandonadas.

As pessoas parecem tão vazias quantos suas próprias vidas naqueles lugares inóspitos. Seus vazios interiores tentam ser preenchidos com truculência, mal gosto e grosserias. “Esses lugares deveriam ter segurança... isso dificulta meu trabalho”, reclama diante das grosserias e ameaças daqueles que “saem da linha”. “Como podem jogar uma bebida em alguém que viajou uma grande distância para trazer risos a essa comunidade!”, protesta com sua voz anasalada enquanto sorve pelo canudinho mais um drink.


O clichê do palhaço triste


A virtude de Entertainmenté de não cair no velho clichê do palhaço triste ou do artista incompreendido – o trabalho artístico como o grito desesperado da alma de um comediante. Rindo por fora, mas chorando por dentro.

Não, há uma raiva interior em Neil que cresce progressivamente durante o filme: o mundo inteiro parece ser uma grande piada cósmica diante da qual só nos resta rir. O problema é: rir do quê ou de quem. Com o seu repertório de piadas bizarras com temas como diarreia, ejaculação, sífilis etc., Neil Hamburguer faz uma caricatura da natureza riso aproximar-se tanto do horror e da desgraça como sugeriu Theodor Adorno.


Hollywood criou esse estereótipo do palhaço que chora para encobrir essa natureza gnóstica do riso – quanto mais o palhaço desperta em nós piedade ou compaixão para clichês como, por exemplo, o do “adorável vagabundo” impingido a Charles Chaplin por Hollywood, mais esquecemos das origens do riso como defesa ou escárnio do trágico e da desgraça: a suspeita de que estamos metidos em uma monstruosa piada em dimensões cósmicas.

Origens do riso e do humor


Como vimos em postagem anterior sobre o comediante Jerry Lewis (clique aqui) na história da cultura o riso e o humor assumiram tanto aspectos progressivos como regressivos: é uma forma de defesa diante da morte e a promessa de redenção (no cinema representado pelo “the last minute rescue” dos antigos filmes mudos) ou o escárnio diante da desgraça alheia, desde as formas mais suaves como as risadas diante das desventuras do Pato Donald até o prazer sadomasoquista em ver as desgraças alheias na TV para se sentir um pouco melhor depois de um dia humilhante no trabalho.

É sintomático que no filme a melhor plateia que o protagonista conseguiu foi em uma penitenciária. Pelo menos ali, a plateia tinha consciência de que estava presa e ria como esperança de um futuro melhor. Fora delas, todos sentem-se livres mas no fundo também estão presas em suas próprias mediocridades e vidas tão cinzentas quanto as paisagens do deserto que roubam a cena em Entertainment.


As pessoas querem rir do horror alheio para sentirem-se melhor. Mas tudo que Neil Hamburguer apresenta é um espelho para as pessoas verem-se a si próprias dentro de uma gigantesca piada cósmica.

Ficha Técnica


Título: Entertainment
Diretor: Rick Alverson
Roteiro: Rick Alverson
Elenco:  Gregg Turkington, John C. Reilly, Tye Sheridan
Produção: Nomadic Independence Pictures, Arts+Labor
Distribuição: Magnolia Pictures
Ano: 2015
País:EUA

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Comercial de lavadora reforça estereótipos da empregada doméstica da classe média

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Toda obra audiovisual é um sintoma de cada época. E algumas vezes esse sintoma é um ato falho, como na atual série de comerciais para a TV da Lavadora Black Panasonic onde o pensamento ecologicamente correto e tecnologia sustentável convivem confortavelmente com uma remanescência das relações entre Casa Grande e Senzala da época da escravidão brasileira: a figura da empregada doméstica uniformizada. A modelo/apresentadora Fernanda Lima aparece andando na área de serviço contracenando com uma alegre empregada que dança imitando os movimentos da máquina, em diversas situações que sugerem o estereótipo de segregação do imaginário das classes médias. Os sofisticados eletrodomésticos do século XXI tornam o cotidiano mais prático, o que dispensaria a necessidade de uma “assistente do lar”. Mas ela permanece, uniformizada, como signo da permanência da distinção de classes.


Produtos audiovisuais são verdadeiros fontes primárias para pesquisadores, assim como são os pergaminhos, correspondências, assentos de registros públicos civis e textos literários para um historiador que procura entender a mentalidade de uma época.

Cinema e vídeos publicitários são verdadeiros repositórios do imaginário social de uma determinada época, não só pela estética e linguagem que identificam aquele período mas, principalmente, pelos seus “atos falhos”: chistes, ambiguidades, conotações ou aspectos não verbais que expõem involuntariamente ideologias, visões de mundo ou preconceitos.

Quem não se lembra do ato falho de criação da campanha da Skol no carnaval de 2015 que causou indignação nas redes sociais: “Esqueci o Não em Casa” e “Topo Antes de Saber a Pergunta”. Em meio aos debates em torno dos abusos sexuais e o empoderamento feminino a campanha da marca de cerveja simplesmente estampou em mídias externas frases que iam na contramão de tudo que se discutia.

Mais do que isso: a criação publicitária politicamente incorreta foi um sintoma do crescimento de um neoconservadorismo em um momento de atmosfera política pesada onde invoca-se antigos fantasmas como o golpe militar e a ameaça comunista com bolsonaros e felicianos. E junto com isso a onda neoconservadora na moral e costumes.


Segregação e preconceito


Agora temos mais um exemplo desses inacreditáveis “atos falhos”: a campanha da Lavadora Black da Panasonic com a modelo/apresentadora Fernanda Lima. A série de  quatro comerciais do produto exaltam a “lavadora inteligente” cuja tecnologia é capaz de economizar água e energia e instigam o consumidor a também ser inteligente: “repense sua lavadora”, desafia Fernanda Lima ao final de cada vídeo.

Mas apesar de toda a modernidade ecologicamente correta, uma fotografia em matiz esverdeada e tons claros para criar uma atmosfera de leveza e positividade de uma modernidade que exigiria dos cidadãos reponsabilidade para com o planeta, há algo ainda de extremo conservadorismo: não apenas a figura da empregada doméstica uniformizada, mas todo um conjunto de signos não verbais que marcam hierarquia e distinção de classes. Além de segregação e preconceito.

Por si só a figura da empregada doméstica (que os reviews sobre a campanha da Panasonic nas publicações especializadas chamam de “assistente do lar” para se referir à personagem que contracena com a Fernanda Lima) já é uma excrescência das relações entre a Casa Grande e a Senzala na ordem escravocrata de séculos passados da história brasileira que ainda persiste em pleno século XXI.

Mas persiste através da manutenção de toda uma sorte de signos que de alguma forma continue marcando e identificando hierarquias, submissões e diferenças de classes: o uniforme azul da empregada doméstica, a roupa branca da babá, o elevador de serviço, o quartinho da empregada, o “dormir no emprego”, os clubes que exigem que “serviçais” de associados sejam identificados por uniformes etc.


A patroa desconfiada


 Cada um dos comerciais da série começa com o olhar desconfiado de alto para baixo da patroa Fernanda Lima para a empregada Lina: “vai dizer que você está lavando a roupa de novo”, “Tá convencida, hein Lina!”, “Lina, o que tá fazendo?”, diz sempre a patroa do alto dos seus saltos.

O olhar da patroa para a Lina é sempre desconfiado, interrogante, como se pensasse: “o que está aprontando?”. Sempre parece suspeitar que a Lina está fazendo corpo mole (dançando, por exemplo) até ela convencer a patroa que está apenas imitando os movimentos da máquina que limpa suavemente a roupa.

“E cada lavagem uma dança diferente?”, inquiri a patroa Fernanda Lima que passa a maior parte do tempo dos comerciais desconfiada das verdadeiras intenções de Lina.

Numa alusão aos jogos olímpico no Brasil, no comercial “Time da Casa” a patroa se detém na entrada da cozinha e cruza os braços observando, a princípio desconfiada, a Lina fazendo alongamentos apoiando-se em um armário.


Se nos comerciais anteriores as posições hierárquicas são bem marcadas, nesse são mascaradas pela ideia positiva do lar ser um “time” que precisa de “sincronia”, “entrosamento” e que precisa ter “o time certo” – empregada + Panasonic.

Slogan motivacional corporativo que esconde as tensões das hierarquia organizacionais com as imagens de “time”, “equipe” e “vestir a camisa” como se de repente as relações de poder e submissão desaparecessem em meio a uma boa vontade e positividade.

Mentalidade da classe média brasileira

O que mais surpreende nessa série de comerciais é como no imaginário da criação publicitária (que reflete a mentalidade da classe média brasileira) convivem confortavelmente algo tão extemporâneo como a figura da empregada doméstica (pior, uniformizada!) com uma suposta modernidade tecnológica e pensamento ecologicamente correto.

O mote do comercial é instigar o consumidor a ser “inteligente”, “repensar” e associar a vida familiar a um estilo de vida sustentável. Mudar tudo, menos as relações sociais e hierárquicas, a piece de resistance de uma classe social que foi abalada pela ascensão da classe C e financiamentos de estudos que possibilitaram empregadas entrarem na universidade.

Essa série de comerciais também comprova como o imaginário publicitário é inacreditavelmente estático diante das mudanças sócio-culturais. Desde estudos clássicos em semiologia como o livro Mitologias de Roland Barthes dos anos 1950, o mundo da publicidade e propaganda é descrito como uma estrutura invariável de signos descolada do cotidiano.


Mesmo com debates recentes estimulados pelo filme brasileiro Que Horas Ela Volta (onde a filha de uma empregada consegue passar na Fuvest colocando em xeque as relações patrão-empregada em uma casa de classe média paulistana) que apontam para mudanças na sociedade brasileira na última década, essa série de comerciais ainda reproduz o mesmo estereótipo.

A empregada sígnica


E ainda o mais curioso é que esse estereótipo é reproduzido em um comercial de produtos eletrodomésticos que, a princípio, tornam o cotidiano mais prático, dispensado a necessidade de uma “assistente do lar”.

Nos próprios comerciais, a empregada doméstica uniformizada apenas imita os movimentos da máquina de lavar roupas com passos de balé ou movimentos de dança moderna. A própria “dona” Fernanda fala para a Lina “deixar de ser convencida”. Parece que o único papel que resta para a empregada é sígnico: marcar as distinções de classe e ordem hierárquica, como percebe-se na deferência como Lina trata a patroa – “Dona Fernanda”, “vou pedir um aumento”, “a eficiência que a senhora sempre quis e a delicadeza que a senhora merece”, “Senhora”, “Dona”...

E no final, Lina chora porque será ultrapassada por uma máquina mais inteligente e eficiente do que os serviços que ela presta à patroa. Enquanto ouve Fernanda Lima dizendo: “não chora Lina, você aperta o botão como ninguém...”.

Peças audiovisuais como essa série da Panasonic servem apenas para polarizar ainda mais as posições em um país onde a atmosfera política torna-se cada vez mais pesada e tensa. Essa estrutura invariável da publicidade, que sempre existiu, num contexto como o atual passa a ter um novo significado: o de alimentar a reação cultural neoconservadora que segue no vácuo da atual polarização política.


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De anti-Collor a anti-Dilma: 24 anos depois midiatização e neomoralismo

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Depois de pouco mais de duas décadas o País está às voltas com manifestações de apoio ao impeachment de um presidente da República. As manifestações do último domingo na Avenida Paulista, em São Paulo, foram consideradas “sem precedentes”, tanto em número de participantes quanto à infraestrutura formada por trios elétricos, canhões de luzes, áreas VIP e todo um aparato voltado para o “ethos” de um perfil sócio-econômico acostumado a serviços e hábitos de consumo de alto nível. Pesquisas como a do Datafolha confirmaram isso. É importante comparar por dentro, nas ruas, as manifestações anti-Collor de 1992 e a atual anti-Dilma em aspectos como atmosfera, comportamento, marcas geracionais, signos de consumo etc. Essa comparação pode revelar as profundas mudanças na opinião pública brasileira – midiatização, neomoralismo e a ascensão do  “cinismo esclarecido”.

Vinte quatro anos depois surgem nas ruas do País manifestações de apoio a um impeachment de um presidente da República. Esse humilde blogueiro tem idade suficiente para ter vivido essas duas épocas: das manifestações marcadas pelo protagonismo dos jovens chamados “caras-pintadas” em 1992 aos protestos atuais cercado de toda uma parafernália de adereços e fantasias como patos amarelos gigantes, bonecos infláveis “pixulecos” e Dilma presidiária chagando a grupos vestidos de Batman e toda a sorte de super-heróis.


Sem falar das indefectíveis camisas amarelas da CBF, contrastando com as camisetas pretas do passado como símbolos de protesto ao então presidente Collor.

Durante as manifestações em 1992 esse blogueiro era professor da Faculdade Cásper Líbero, em pleno coração da Avenida Paulista, e local de uma série de manifestações na época. O que me permitiu ser um observador participante daquelas mobilizações.

Curioso em fazer uma comparação das manifestações atuais com as minha memórias de 1992, rumei à Avenida Paulista nesse último domingo para observar por dentro a concentração dos manifestantes. 

A comparação dos signos visuais que deram expressão midiáticas às manifestações de 1992 e a atual pode nos revelar mudanças profundas na opinião pública e esfera pública brasileiras e, principalmente, sobre a politização ou despolitização de manifestações que foram seguidamente convocadas pelos meios de comunicação e que vivem a reboque do timing das bombas de cada delação premiada vazada pelas grandes mídias.


A  marca geracional

Chegando à concentração de manifestantes na Avenida Paulista, a primeira coisa que chamou a atenção foi a faixa etária dos participantes. Um grande número senhores e senhoras de meia idade, em geral formando casais. Alguns esbaforidos, aparentemente por terem atravessado toda a avenida. Impressão visual confirmada pela pesquisa Datafolha: 73% dos manifestantes se enquadravam na faixa etária entre 36 a 51 anos ou mais.

Um violento contraste com minhas memórias de 1992 onde os manifestantes eram majoritariamente estudantes universitários e secundaristas com forte engajamento político em entidades civis como UNE e UBES. O script que a grande mídia criou para enquadrá-los foi o dos “cara-pintadas” para criar uma alusão a minissérie da TV Globo da época Anos Rebeldes.

Muitos deles eram egressos de famílias politizadas de esquerda e se tornaram líderes de Centros Acadêmicos em Universidades. Ao contrário, nas manifestações de domingo era nítido o discurso anti-política e anti-partidário.

E uma inferência lógica sobre essa faixa etária dominante nos protestos: são da geração das  mídias de massas e que atenderam às convocações diárias das grandes mídias. Onde estavam os mais jovens? Alheios à tudo no Festival Lollapaloza no autódromo de Interlagos. Jovens que não assistem mais TV.


Atmosfera

Em 1992 havia a lembrança do fim recente da Ditadura Militar (1985) e a associação da polícia com a repressão política. Por isso a atmosfera das manifestações era dominada pela tensão e adrenalina de estar tomando um espaço público para protestos.

Havia no ar uma atmosfera de transgressão e quebra de ordem, sempre à espera de uma possível repressão ou punição.

Bem diferente a atmosfera que encontrei nesse último domingo: pessoas caminhando tranquilamente como fosse mais um passeio em uma avenida que é fechada todo domingo para os pedestres pela Prefeitura. Filhos, netos, carrinhos de bebê... como fosse o encontro da família em uma preguiçosa tarde de domingo.

Aqui e ali algumas vezes eram puxadas palavras de ordem ou músicas de protestos. Mas o que chamava mesmo a atenção era o caminhar desencontrado para várias direções dos participantes. Ao contrário de 1992 onde a massa concentrava-se e se movimentava em uma única direção, domingo na Avenida Paulista haviam muitos momentos de dispersão alternando-se com concentrações irregulares quando um trio elétrico ou alguém munido de microfone postado em algum nível acima das cabeças dos participantes ensaiava algum discurso ou palavra de ordem.


Shows musicais, raios lasers, cerveja e abadás completavam essa estranha atmosfera (para um ato de protesto) de uma tarde de domingo de diversão. Em outras palavras, parecia que o evento tinha sido muito mais preparado para “ocupar” a avenida e render bons planos gerais e aéreos das câmeras do que um protesto onde os indivíduos estão organicamente ligados por uma causa ou reivindicação.

Signos de consumo

Outra coisa espantosa foi a infraestrutura sem precedentes montada pelos organizadores (Movimento Brasil Livre, Revoltados On Line e Partido Solidariedade) com uma espécie de “área VIP” envidraçada, efeitos cenográficos com fumaça verde-amarela e canhões de luz.

Cruzei com um carro alegórico e bloco carnavalesco chamado “Fora Dilma”. Tudo parecia algum tipo de carnaval fora de época. Somado ao caminhar desencontrado descrito acima, viam-se pessoas concentradas em seus Iphones e preparando-se para selfies.

Toda uma infraestrutura voltada para uma alta faixa etária de pessoas com alto nível de renda (segundo o Datafolha: 46% de 10 a 20 salários mínimos) e que, por isso, habituadas às conveniências do consumo e serviços de alto nível.

Desde as grandes manifestações de 2013, o Cinegnose vem apontando para um discurso desses manifestantes marcado pelos signos do ethos da classe média: “Vem pra Rua” (retirado de um jingle publicitário da FIAT), “O Gigante Acordou” (campanha do uísque Johnnie Walker), “Desculpe o Transtorno, Estamos Mudando o Brasil” (paráfrase das placas de obras que irritam motoristas no trânsito) etc.

Discutíamos naquela oportunidade se isso não seria um sintoma de como a Política e a esfera pública estariam sendo absorvidas pela esfera privada de consumo que pela sua própria natureza, interpela muito mais o indivíduo do que o coletivo – o sociólogo Richard Sennett chamou certa vez esse fenômeno como o “declínio do homem público” em uma “sociedade intimista” – sobre isso clique aqui.


Um passeio no shopping com a família e essa manifestação na Avenida Paulista não guardam muitas diferenças, a não ser um evento ao ar livre. Tudo com uma infraestrutura difícil de acreditar que seja mantida unicamente com a venda de “Kits Impeachment Já” (camiseta polo, boné e adesivos), botons e cupcakes. Quem pagou tudo isso? De onde vem toda essa grana?

Muito diferente dos signos políticos que dominavam as manifestações anti-Collor em 1992: bandeiras de entidades civis, de partidos políticos, punhos levantados etc.

Cada época com a sua série de TV

Em 1992 a minissérie que marcaram os protestos foi Anos Rebeldes da TV Globo que abordava o período da luta contra a ditadura militar brasileira a partir do romance entre dois jovens. A série tentava capturar o idealismo político de uma geração cuja conexão foi imediata com os protestos dos jovens cara-pintadas nas ruas. A Política e a discussão ideológica em seu momento forte como formador de opinião.

Bem diferente do momento atual onde a crise política brasileira é comparada às intrigas palacianas da série Netflix House of Cards sobre um operador político dos Democratas que conspira contra o presidente para assumir a Casa Branca. A Política na sua representação mais niilista, antiética da qual o cidadão de bem deve manter-se distante à procura de algum salvador que faça o serviço sujo por ele.


Deuses Ex Machina

Talvez por isso as manifestações anti-Dilma e anti-PT sejam tão retro: as velhas ameaças comunistas, o perigo da bandeira nacional tornar-se vermelha, conspirações sobre o suposto “politicamente correto” macomunada com gays comunas. Os álibis da Guerra Fria retornam e os militares são chamados como uma espécie de deus ex machina.

É surpreendente como manifestantes continuavam a tirar selfies com policiais militares. Mas quando apareceu na avenida um caminhão blindado de choque da PM as poses para fotos e selfies se multiplicaram junto ao enorme  “caveirão” preto. Orgulhosos, manifestantes posavam ao lado de policiais vestidos em pesados trajes, armados até os dentes e prontos para combate.

O fascínio e o fetiche por signos de força, intervenção e “solução final” se materializavam em inúmeras camisetas, adereços e faixas homenageando o comandante da Operação Lava Jato, juiz Sérgio Moro, e o militar da reserva e deputado Jair Bolsonaro – “Bolsomito” ou “Bolsonaro Presidente” eram os dizeres mais vistos.

Enquanto eram colocados para correr políticos como Alckmin, Aécio e Marta Suplicy – esta teve que se esconder no prédio da FIESP ao lado de um gigantesco pato amarelo.

Um pastiche de militarismo, judicialização da política e fetichismo da “solução final”. A manifestação desse domingo foi uma expressão visual daquilo que os analista políticos apontam como a formação de um cartel judicial-midiático: a submissão da Democracia e o Estado de Direito a um Estado policial que poderá, a qualquer momento no futuro, voltar-se contra cada uma daquelas pessoas que estavam alegres desfilando pela Avenida Paulista.


O neomoralismo

  E por fim, a essência motivadora desses movimentos de protestos tanto em 1992 como atual: o moralismo do combate à corrupção.

Historicamente sabemos que a opinião pública da Alemanha pré-nazismo foi moldada por matérias elogiosas na imprensa sobre a luta de Hitler contra a corrupção e o comunismo. Diversos estudos apontam como na época os alemães foram inebriados por matérias jornalísticas e propagandas.

Naquela época tínhamos o discurso da “moralização da política” que, na verdade, serviu de álibi para a ocupação militarista do Estado pelo Nazismo.

Mas como escreveu certa vez o pensador alemão Theodor Adorno, um dos membros da chamada Escola de Frankfurt, toda ideologia tem o seu momento de verdade. O moralismo como discurso político fazia sentido na época onde o Capitalismo era regido pela ética da operosidade e poupança, nos moldes da ética protestante tão bem descrita por Max Weber.

O desenvolvimento do Direito Administrativo na Era Moderna que procurava racionalizar o realismo político das negociações e barganhas, encontrava uma opinião pública sensível a uma assepsia na Política. Uma Política virtuosa e não mais dominada pelo “realismo” ia de encontro à ética do valor ao trabalho e o mérito.

Com o crescimento da chamada “sociedade intimista” onde o mundo público da Política e do Trabalho são absorvidos pelas esferas do consumo e entretenimento, o discurso da moralidade transforma-se em farsa – uma bandeira para objetivos bem menos nobres.

Como farsa transforma-se em neomoralismo ou “cinismo esclarecido” (Peter Sloterdijk): todos são contra a corrupção, mas convivem confortavelmente com a “corrupção boa”: sonegar impostos no cotidiano ao não emitir nota fiscal, por exemplo. Afinal, não queremos “pagar o pato” da corrupção alheia. Por isso, combatemos a corrupção com outras práticas corruptas.

O neomoralista defende a eficiência dos serviços públicos de um Estado supostamente ineficiente, mas não consegue estabelecer a conexão entre a legalidade tributária e esses próprios serviços. Sua percepção de Estado e esfera pública se enfraqueceram a partir do momento em que toda a sociedade é medida pelos princípios do consumo e entretenimento.

Nas manifestações de 1992 ainda tivemos o eco do tempo forte da Política: o discurso moralista como esperança de trazer a assepsia na gestão pública e no Poder. Agora, o cinismo esclarecido do neomoralismo toma conta da opinião pública. Uma percepção niilista e pessimista da Política cuja única solução só pode ser a final – um deus ex machina forte, determinado e impiedoso como o Deus do Velho Testamento bíblico.

Por isso, no espaço público da Avenida Paulista máscaras, faixas e adereços do juiz Sérgio Moro e do “Bolsomito” para presidente conviviam confortavelmente com um verdadeiro carnaval fora de época onde trios elétricos, shows e canhões de luzes convocavam não o coletivo mas indivíduos que caminhavam desencontrados para lá e para cá na avenida.

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Curta da Semana: "Bright Future My Love" - o amor em uma distopia gnóstica

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Da Sérvia vem esse enigmático curta distopico sobre uma mulher que tenta despertar através do amor um homem vazio de espírito e consciência num mundo que lembra "1984" de George Orwell. Mas o Big Brother não é mais um Estado opressor, mas telas de TV que exibem mensagens de publicidade e propaganda que mantém todos isolados e sós numa rotina de trabalho sem sentido. Os mitos gnósticos da Queda e de Sophia encontram-se em um mundo sombrio filmado em preto e branco. É o curta “Bright Future My Love” (2014) de Marko Zunic, um profissional de engenharia da informação de Belgrado que parece ter transformado o hobby de fazer curtas-metragens em uma expressão fílmica da distopia do mundo corporativo. 


Um homem vive isolado numa sala de concreto. Em cada dia de trabalho caminha através de estruturas abandonadas até o seu trabalho onde é alimentado por uma estranha substância leitosa através de um tubo enquanto assiste a um filme na TV.

Essa é a sua rotina diária, até cruzar no seu caminho uma mulher que tentará mudar sua vida.

Tudo lembra uma atmosfera distopica nos moldes de 1984 de Orwell, mas não há um Big Brother que a tudo vigia – há telas de TV com mensagens de propaganda que parecem prescrever hábitos e comportamentos ideais para aquele mundo. Cada dia se assemelha ao anterior: sua rota nunca muda, edifícios que parecem ruínas pós-guerra, a estação ferroviária de concreto com mais telas espalhadas com filmes de propaganda, o trem velho e surrado e o trabalho em um complexo fabril em ruínas.

Um ciclo vicioso que poderá ser cancelado pelo amor ao conhecer uma colega de trabalho.


O curta Bright Future My Love(2014) do sérvio Marko Zunic é claramente inspirado no filme seminal de David Lynch de 1977 Ereaserhead, o modelo todos os romances  excêntricos no cinema independente.

No curta do diretor sérvio o casal tentará quebrar uma espécie de barreira que os separa, já que naquele mundo alternativo todos os trabalhadores são condenados a viverem isolados uns dos outros – dividir para reinar, uma filosofia muito mais maquiavélica do que orwelliana. Nas cenas em preto e branco que se sucedem o casal tenta tocar-se, sentir cada poro das suas peles, fios de cabelo, formato do rosto.

Mas quando finalmente tentam se beijar, a tela de TV imediatamente mostra casais se beijando, interrompendo o namoro do casal. Naquele mundo, todos os desejos ou fantasias somente são realizados através do voyeurismo das imagens de propaganda. A realização é sempre virtual, nunca no mundo real dominado pelo isolamento e solidão.

Em Bright Future My Love há um claro simbolismos gnósticos da Queda e de Sophia – o homem que decaiu em um cosmos físico imperfeito que o mantém prisioneiro e Sophia, o aeon que também decaiu no caos e exílio mas que tenta despertar no homem a fagulha de luz espiritual que o reconecte de volta à Plenitude.

O mito gnóstico de Sophia é uma história de amor de um aeon que veio, assim como Cristo, da Plenitude para esse mundo não para nos “salvar” mas para nos fazer relembrar daquilo que esquecemos. E o que nos faz esquecer da Plenitude? No curta, Zunic descreve o isolamento, a solidão e as telas de TV como aquilo que nos impede de amar – ou de reconectarmos com o arquétipo de Sophia.


Isso nos mantém sempre “na linha”, em um círculo vicioso de trabalho e alienação. Por isso, no curta a atmosfera é de ausência de consciência e espírito com zumbidos desagradáveis e rugidos de máquinas onde até mesmo o farfalhar da água assume um tom sinistro.

Como um diretor sérvio, Zunic imprime no curta um tom político sobre a situação da Sérvia atual. Mas a sombria beleza da fotografia em preto e branco e a ausência de diálogos dá um apelo universal e mítico à narrativa. Sem falar que o “futuro brilhante” ao qual o título do curta se refere é bem irônico: naquele mundo, o futuro do amor só pode ser igualmente sombrio.

Detalhe curioso: o diretor Marko Zunic é formado em Engenharia da Informação na capital Belgrado e desde 2012 trabalha como desenvolvedor de banco de dados. Recentemente começou a fazer filmes curta-metragem como um hobby e se inscreveu como diretor no Academic Film Center Belgrade (DKSG).

Talvez o curta Bright Future My Love seja sua expressão artística da convivência profissional de Zunic com a atmosfera corporativa cotidiana de vigilância e controle.


Ficha Técnica


Título: Bright Future My Love
Diretor: Marko Zunic
Roteiro: Marko Zunic
Elenco:  Andrija Kispatic, Sunsica Zivkovic
Produção: Akademisk Filmski Centar Dom Kulture Studentski Grad (AFC)
Distribuição: Akademisk Filmski Centar Dom Kulture Studentski Grad (AFC)
Ano: 2014
País: Sérvia

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Em "Boneca Inflável" somos tão vazios quanto uma boneca de sex shop

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Uma fábula moderna inspirada em um mangá, onde é feita uma releitura de Pinóquio com um toque erótico: uma boneca inflável de sex shop inexplicavelmente ganha vida, ganha as ruas e procura entender o que nos define como humanos. Mas tudo que descobre é que nós somos tão vazios espiritualmente como uma boneca é vazia fisicamente. O filme “Boneca Inflável” (“Kûki Ningyô”, 2009) de Hirokazu Koreeda baseia-se em um específico problema sócio-cultural japonês (o “kodokushi”, morte solitária), mas sua reflexão sobre a solidão urbana, inércia, sonhos derrotados e a perda da inocência de uma boneca erótica aspira a um tema bem universal: o fetichismo dos produtos e serviços.

Ao longo do século XX a sociedade japonesa conseguiu combinar muitos hábitos e instituições feudais com o moderno dinamismo cultural e econômico do Capitalismo Tardio. Mas com um preço alto: fragilização dos laços familiares e uma conduta de boa parte da sociedade japonesa de evitar qualquer tipo de situação que possa incomodar outra pessoa. Chamam essa atitude de “meiwaku”.


Isso criou uma sociedade de solitários cujas vidas podem terminar em um triste desfecho: o “kodokushi” (“morte solitária”) – a cada ano milhares de japoneses são encontrados mortos em suas casas e só são descobertos depois de semanas. O “kodokushi” atinge em especial a terceira idade, mas nos últimos anos verifica-se um crescimento também na faixa entre 30 e 40 anos.

Um dos melhores cineastas japoneses da sua geração, Hirokazu Koreeda decidiu aproximar essa triste realidade das grandes metrópoles com a metáfora das bonecas eróticas de vinil infláveis de sex shop – tão vazias por dentro quanto a vida de seus solitários proprietários que necessitam de um substituto do desejo sexual.

Adaptado de uma pequena estória de mangá, surge o filme Boneca Inflável onde Koreeda cria uma espécie de versão japonesa de Pinóquio, com um toque erótico. Um dia em um bairro proletário de Tóquio uma boneca erótica chamada Nozomi (“esperança” em japonês) descobre que se tornou uma mulher real.


O conceito de uma força estranha ou alienígena experimentando uma existência humana é um tema familiar no cinema. Ex Machina (2015), Ela(2013), Inteligência Artificial(2001), Cidade dos Anjos (1998) etc. Filmes que em geral apresentam um robô ou inteligência evoluindo para adquirir características humanas artificiais.

Mas em Boneca Inflável temos uma protagonista menos provável: uma boneca sexual inflável que após ganhar vida sai pelas ruas com uma fantasia de empregada doméstica sexy, tentando compreender o que torna as pessoas humanas. E para sua surpresa, encontrará apenas solitários e vazios de esperança. Humanos que em muitos aspectos são tão vazios quanto ela.

O Filme


Nozomi é uma boneca erótica de Hideo, um solitário que a trata como fosse a esposa que ele nunca terá – senta-a à mesa para jantar e toda noite conta como foi o seu dia de trabalho antes de leva-la para a cama. Toda noite faz para Nozomi devaneios auto-importantes sobre o seu dia de trabalho como fosse em uma importante empresa com funções de grande responsabilidade – na verdade Hideo é um simples garçom.

Na manhã seguinte inexplicavelmente Nozomi ganha vida (ela descreve esse processo como “ganhar um coração”) numa delicada sequência quando experimenta a emoção sensual de um pingo de água da chuva escorrendo pela sua mão. Seu primeiro pensamento na recém-descoberta da consciência é “beau-ti-ful!”. Uma sensação de maravilhamento pelos pequenos detalhes que em todo filme será o contraponto com a desesperança dos humanos.


Depois de explorar secretamente o interior da casa de Hideo enquanto ele está no trabalho, Nozomi ganha às ruas até ganhar um emprego em tempo parcial em uma locadora de vídeos quando começa relacionamento amoroso com um tímido e também solitário funcionário.

Na loja ela aprende sobre o mundo mais amplo representado nos filmes através da fina ironia do diretor Koreeda – os DVDs são sonhos feitos de plástico, não muito diferente do material que se constitui a própria Nozomi.

A escolha da atriz coreana Doona Bae (Cloud Atlas e Sense8) não poderia ter sido mais feliz: como uma estrangeira em uma sociedade japonesa, ela consegue com seu olhar e jeito infantil ser ao mesmo tempo triste, sensual e enfática. Com seu fraseio em staccato e seu jeito de caminhar infantil no vestido de empregada doméstica francesa, a narrativa consegue enfatizar a inocência e vulnerabilidade de Nozomi numa grande cidade japonesa.

Sua curiosidade é despertada por qualquer pessoa que encontra, mas suas reações não são páreo para seu próprio espanto com tudo o que vê: apenas a felicidade frustrada nos personagens ao longo do filme.

Ironias e paradoxos


Embora o tom seja delicado, leve e bem-humorado em muitas sequências impagáveis (como, por exemplo, quando acidentalmente fura seu braço em uma prateleira da locadora e começa a esvaziar diante do assustado Junichi), o filme vai aos poucos adquirindo aspectos sombrios, principalmente na sequência final.

Como o leitor deve ter percebido, Boneca Inflávelé cheio de ironias e paradoxos: o vazio físico da boneca e emocional dos humanos, a curiosidade de Nozomi e o tédio e tristeza dos humanos, a protagonista chamar-se Nozomi (“esperança”) num mundo quem perdeu qualquer perspectiva etc.


Mas o maior deles é a solidão em meio a um bairro tão adensado, com tantas vielas e casas coladas umas nas outras. Todos parecem esquecidos em seus pequenos cubículos, apenas à espera da morte – ou “kodokushi”.

O tema da solidão em meio à multidão não é uma novidade para a Sociologia, desde o livro clássico de David Riesman A Multidão Solitária, de 1957. Mas em Air Doll um novo aspecto é acrescentado ao tema: o fetichismo dos produtos e serviços paralelo ao fetichismo sexual da boneca inflável.

O Fetichismo da mercadoria


Em vários momentos de tristeza, Nozomi cai em em si: “sou um substituto dos desejos sexuais”. Mas não só ela. Parece que todos procuram substitutos de qualquer desejo numa intrincada rede de distribuição de produtos e serviços de uma grande cidade: locadoras de vídeos, máquinas de refrigerantes nas ruas, lojas de diversões eletrônicas, restaurantes com garçons sempre sorridentes. Todos de alguma forma travam algum um tipo de relação social, porém sempre mediada por algum produto ou serviço.

Estamos diante do célebre conceito marxista de fetichismo da mercadoria onde produtos ganham vida própria e parecem satisfazer os desejos do comprador. Porém, o desejo se pulveriza na numa fantasia abstrata e genérica – a mercadoria sorri para todos, assim como uma boneca inflável de um sex shop.


Esse é apenas um lado do fetichismo da mercadoria – o lado da insatisfação psíquica. O outro mais concreto é a solidão: todas as relações humanas são substituídas por próteses mercantis. Hideo não quer relacionar-se com uma esposa real e cerca-se de bonecas infláveis (Nozomi não será a única, em uma inacreditável sequência de “traição” conjugal com outra modelo de boneca mais moderna) e o tímido e solitário Junichi somente poderia encontrar satisfação sexual soprando o plug no umbigo de Nozomi para enchê-la.

E o momento mais emblemático de Boneca Inflávelé quando Nozomi vai ao encontro do seu criador, um também solitário fabricante de bonecas eróticas – lembrando os filmes de Ridley Scott  Blade Runner (onde os replicantes procuram seu criador para poderem viver mais) ou Prometheus (onde os humanos vão ao encontros dos seus aliens criadores da espécie).

Mas assim como nesses dois filmes, Nozomi experimenta a desilusão final: seu criador é tão desesperançado como todas as outras pessoas ao seu redor – produz mais bonecas para criar mais solidão e as usadas são devolvidas e incineradas – “pelos rosto delas podemos saber se foram amadas”, diz ironicamente o artesão.

Boneca Inflável claramente se inspira num contexto social da solidão das paisagens urbanas de Tókio. Mas sua reflexão sobre solidão urbana, inércia, sonhos derrotados e a perda da inocência de uma boneca erótica aspira a uma evidente globalidade – é o próprio humano, demasiado humano.


Ficha Técnica


Título: Boneca Inflável
Diretor: Hirokazu Koreeda
Roteiro: Hirokazu Koreda
Elenco:  Doona Bae, Arata Iura, Itsuji Itao
Produção: Engine Film, Bandai Visual Company, Eisei Gekijo
Distribuição: Asmik Acé Entertainment
Ano: 2009
País: Japão

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Agenda Hollywood e os super-heróis: ingovernabilidade para o mundo

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Numa manhã de domingo de 2001 Karl Rove, Vice-Chefe da Casa Civil do presidente Bush, reuniu-se em Beverly Hills com os chefões de Hollywood. Era o início da criação da “Agenda Hollywood” para esse século – mais uma vez, a indústria do entretenimento norte-americana era convocada  a servir de braço político para o jogo geopolítico mundial. Na época, o terrorismo da Al Qaeda. Hoje, as várias “primaveras”, árabe e brasileira, e o xadrez político jogado contra os países que compõem os BRICS. Sincronicamente quando a Agenda Hollywood intensifica a presença das franquias de super-heróis nas telonas, as diversas “primaveras” (manifestações e protestos em diversos países) são tomadas por bizarros adereços do super-heróis do cinema como metáforas de solução para crises políticas nacionais. Com isso, a Agenda Hollywood avança da simples propaganda para o “neurocinema”: moldar a percepção de que problemas podem ser resolvidos através da amoralidade dos super-heróis. A palavra-chave do jogo é indução à ingovernabilidade em países emergentes, como o Brasil.


Era novembro de 2001. Sob o impacto dos atentados de 11 de setembro daquele ano nos EUA, Karl Rove, Vice-Chefe da Casa Civil da administração George Bush, reuniu-se numa manhã de domingo com os chefões da indústria do entretenimento no Peninsula Hotel, Beverly Hills.

Estavam lá Summer Redstone, dono do império Viacom (MTV e Estúdios Paramount), Rubert Murdoch (News Corporation, rede Fox, 20th Centrury Fox, rede de TV Star na Ásia e jornais The Times e The Sun), presidente da Walt Disney Co. Robert Iger, presidente da MGM Alex Yemenidijian, o chefe da Warner Bros. Television Tom Rothman. Além de diretores, atores de Hollywood e roteiristas.

Numa reunião de 90 minutos, Rove exibiu para a plateia slides em Power Point sobre a história e alcance da rede terrorista Al Qaeda de Osama Bin Laden. Com muitas informações até então restritas à Inteligência da Casa Branca.

O resultado final foi a criação de uma agenda para Hollywood projetada para os próximos 20 anos: linhas gerais de criação de conteúdos (narrativas, temas, personagens etc.) buscando transformar TV e Cinema em uma braço dos esforços de propaganda de guerra.

Filmes militares, históricos e de super-heróis


Rove pediu conteúdos não só para o público interno, mas principalmente para as unidades militares da linha de frente e para os povos das zonas de conflito: “nós temos um monte de filmes, mas todos estão velhos e já assistiram milhares de vezes”, disse Rove para a plateia. Especificamente Rove pediu mais filmes “de família” e mencionou especificamente filmes como O Senhor dos Anéis e Harry Potter e a Pedra Filosofal.


Para o público interno filmes que salientassem o heroísmo e a ameaça externa; para o mundo, os valores familiares e morais pelos quais os EUA supostamente lutam pelo mundo afora.

Desde então, Hollywood iniciou uma escalada de filmes sobre protagonistas nas frentes do Afeganistão e Iraque (militares ou jornalistas) ou filmes “históricos” cujo ápice foi o filme Argo, premiado com o Oscar em um link ao vivo direto da Casa Branca – Michelle Obama abrindo o envelope de Melhor Filme de 2013 – sobre o filme como peça de propaganda clique aqui.

Sem falar a intensificação da exibição de franquias dos super-heróis da Marvel Comics e DC Comics como Homem Aranha, Batman, Os Vingadores, Homem de Ferro (no filme de estreia o protagonista Tony Stark é sequestrado por terroristas no Afeganistão), X-Men, entre outros. O que lembra os esforços de propaganda durante a Segunda Guerra Mundial quando os super-heróis Capitão América e Super-Homem era convocados a lutar contra os nazistas nas histórias em quadrinhos.

Quinze anos depois da criação dessa agenda pelos chefões do entretenimento, tudo leva a crer que o plano convocado por Karl Rove em 2001 tem hoje novos desdobramentos geopolíticos com a ascensão dos BRICS (Rússia, China, Brasil, Índia, África do Sul – projeto orgânico de alcance global que ameaça bloquear os planos expansionistas dos EUA) no cenário político-econômico global.

Vivemos atualmente a instabilidade política em dois países dos BRICS: Brasil e Rússia. No Brasil, o coquetel jurídico-midiático da “ingovernabilidade” e contra a Rússia a demonização da “agressão russa” na crise da Ucrânia e Síria e o ataque contra o rublo.

Hoje à propaganda comum do american way of life e demonização dos muçulmanos é acrescentada uma nova tática: o neurocinema. Mais uma vez a mitologia dos super-heróis é convocada para que a percepção da opinião pública dos países emergentes seja moldada não por valores explícitos de propaganda americana – mas pela amoralidade subliminar dos super-heróis (acima do Bem e do Mal, somente a Justiça) aplicada à suposta solução da corrupção e ingovernabilidade.  


Guerra Total


Os EUA tiveram que esperar até a Segunda Guerra Mundial para compreenderem a noção de “guerra total” do nazi-fascismo – a guerra não é apenas travada no campo de batalha mas principalmente no campo do imaginário da propaganda midiática e na esteticização da política.

Desde os primórdios do cinema a elite política e cultural dos EUA via a proliferação dos nickelodeons (diversão barata  para proletários, desocupados e migrantes) como uma ameaça a ordem pública com o riso descontrolado das massas que viam seus heróis nos filmes burlando autoridades e policiais.

Com a ascensão de Hollywood como indústria a partir de 1920, as imagens e a fúria do primeiro cinema foram domesticados pelo Código Hays de restrição temática e moral e por Edgar Hoover, do Bureau of Investigation, que passou a mapear filmes supostamente imorais e “anti-americanos” numa época onde conflitos trabalhistas e repressão policial cresciam.

Mas do outro lado do Atlântico o nazi-fascismo via o Cinema de outro modo. Hitler era obcecado com o poder de propaganda dos filmes. Segundo Ben Urwand no livro The Collaboration: Hollywood’s Pact With Hitler, os nazistas promoveram ativamente filmes americanos como Capitains Courageous(1937) que, acreditavam, promovia valores arianos. O livro revela o temor de Hollywood um perder o seu segundo maior mercado de distribuição, passando a cortar nomes de judeus nos créditos de filmes e evitar roteiros que sugerissem qualquer crítica a Hitler ou Nazismo – Hollywood não faria um filme anti-nazista até 1940.

Rolos de filmes alemães ou norte-americanos que passavam pelo crivo nazi eram levados aos países ocupados pelas blitzkriegpara serem exibidos nas linha de frente como um plano que ia além da propaganda militar – disseminar os valores arianos aos povos derrotados.

Mussolini no filme "Eternal City" (1922)

Hollywood e o fascismo


Já na Itália, os fascistas contavam ainda com artistas Futuristas que viam na guerra uma obra de arte em si mesma: a destruição do passado clássico dos museus e estátuas que instituiria a nova arte baseada na modernidade radical: máquina, foguetes e velocidade.

Ao lado de Hitler, Mussolini também soube compreender como o cinema poderia ser ferramenta de propaganda. Rodado no mesmo ano da Grande Marcha Sobre Roma que iniciou sua ascensão ao poder, Mussolini atuou interpretando ele mesmo no filme The Eternal City (1922) onde o fascismo era mostrado como o grande salvador do mundo. O filme permitiu ao regime fascista aproveitar-se de uma produção americana para levar sua mensagem para além da Itália, coisa que um filme italiano jamais teria conseguido.

Ou seja, se a elite norte-americana temia que o cinema e o entretenimento pudessem provocar desordem pública e anomia social, ao contrário, os nazi-fascistas viam no cinema uma ferramenta preciosa para criar novas ordens.

Tudo mudou com o ataque japonês a Pearl Harbor, forçando a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. O presidente Roosevelt anuncia uma novidade: a Agência de Informação de Guerra com escritório em Hollywood para incentivar produtores e roteiristas a realizar produções patrióticas e anti-nazistas e anti-japoneses.

O que se viu a seguir foi uma série de filmes antigermânicos e antinipônicos com conotação racista. Alemães e japoneses eram chamados de “hunos”, “bestas”, “ratos de olho puxados”, “macacos amarelos”. E os temas recorrentes sobre histórias de sobrevivência e fuga, a vida em campos de concentração, espionagem e companheirismo nas tropas etc.


Super-heróis vão à guerra


No esforço de propaganda associam-se a Hollywood os comics do Superman (herói criado na Grande Depressão para defender “a verdade, a justiça e os valores americanos) e do Capitão América. Passada a Guerra, a mitologia dos super-heróis até viveu uma breve fase progressista ajudando a desmoralizar grupos racistas como, por exemplo, quando em um episódio o Superman enfrenta a Ku Kux Klan. Mas esse esforço em criar uma consciência social nos jovens foi imediatamente reprimida quando criou-se a Comics Code Authority, instrumento de autocensura da indústria do entretenimento para eliminar “conteúdos mais violentos”.

Mas na verdade os murros e sopapos dos super-heróis foram redirecionados para finalidades menos sociais e muito mais patrióticas no contexto da Guerra Fria e a ameaça comunista – uniram-se à TV e Cinema na forma de séries, animações e filmes. Tal como hoje onde as franquias de super-heróis voltam a dominar as telas em uma geopolítica mundial ameaçada pelos terrorismo e os BRICS.

A palavra-chave é ingovernabilidade, a arma atual de propaganda dos EUA para desestabilizar países do Oriente Médio e dos BRICS, em particular o seu elo mais fraco: o Brasil. A intensificação das franquias Marvel ou DC Comics na telona é mais um capítulo da atual Agenda Hollywood.

A mitologia dos super-heróis não é explorada como propaganda explícita de valores norte-americanos, mas atualmente como estratégia de agenda setting ou "  neurocinema" – a criação de um novo modelo cognitivo de percepção da opinião pública sobre impasses e mazelas políticas e econômicas internas de cada país alvo do xadrez geopolítico dos EUA.

As versões nacionais de super-heróis nas diversas "primaveras": acima, Egito e Brasil; abaixo, Paquistão (Batman, Superman e Lanterna Verde)

O super-herói amoral


A presença de novas versões de super-heróis nas chamadas “novas primaveras”, sejam árabes ou brasileiras (manifestações e protestos internos contra governos democraticamente eleitos, porém incômodos aos jogo global) é sintomática e recorrente. Brasil, Síria, Afeganistão e Paquistão apresentam bizarras novas versões dos super-heróis hollywoodianos em manifestações e veículos midiáticos.

A aplicação do modelo cognitivo do super-herói como expressão de problemas e soluções possui evidentes implicações ideológicas: a amoralidade política. Assim como os super-heróis são capazes de enfrentar seus inimigos destruindo cidades inteiras (desprezando baixas civis inocentes como “efeitos colaterais” na busca da Justiça), da mesma forma a busca de super-heróis nacionais implica em colocar abaixo o Estado de Direito e a Constituição como fosse  também um inevitável “efeito colateral” da luta contra governos corruptos – sobre a amoralidade dos super-heróis clique aqui.

Só existiria uma coisa além do Bem e do Mal para o super-herói: a Justiça. Em nome dela, Os Vingadoresou a Liga da Justiça podem fazer de tudo inclusive suspender direitos e garantias democráticas. Tudo que a geopolítica norte-americana precisa para tornar a política e economia interna de países-chave ingovernáveis e economicamente instáveis, quebrando a resistência de potencias regionais emergentes.


Além disso, é sincrônico não só as representações de um juiz de primeira instância como Sérgio Moro como super-herói nas manifestações. Mas principalmente, em pleno momento de radical polarização política e os primeiros conflitos nas ruas, surgem nos cinemas um novo tema na saga dos super-heróis: lutas entre eles mesmos, divisões e guerra civil – Batman Vs Superman – A Origem da Justiça e Capitão América: Guerra Civil onde vemos países com opinião pública dividida levando ao conflito entre super-heróis.  

Justamente quando lentamente, aqui e ali, em editorias de jornais, comentários em blogs e artigos em diversos veículos fala-se sobre um temor de “guerra civil” precipitado pelo atual ódio político.

Levando em consideração o histórico das ligações promíscuas entre Hollywood e as necessidades geopolíticas mundiais e como os EUA aprenderam tão bem as lições nazifascistas sobre propaganda e estetização da política, chega a ser preocupante esse timing e sincronismo entre os lançamentos do cinema e a realidade política das ruas.

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Em "Closer To God" o mito de Frankenstein enfrenta a Ciência, Mídia e Religião

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Como o clássico terror gótico “Frankenstein” seria contado no século XXI? Certamente o cientista teria a sua disposição a clonagem e contra ele o sensacionalismo midiático alimentando uma turba enfurecida de fundamentalistas religiosos pregando o fim da Ciência e uma nova Idade Média. Esse é o terror independente “Closer To God” (2014) de Billy Senese, onde vemos o drama de um geneticista criador do primeiro clone humano e que terá que enfrentar uma extensa cobertura midiática que o transforma em alvo de diversos grupos religiosos radicais e violentos. Um filme que evita os clichês hollywoodianos do “cientista louco” e do maniqueísmo “Ciência versus Religião”. Todos os lados (Ciência, Mídia e Religião) têm suas mazelas e culpas. E o único ser próximo de Deus é a pequena Elizabeth, o bebê clone inocente de toda a tragédia ao redor. Filme sugerido pelo nosso leitor Antonio Oliveira.


Imagine se o clássico terror gótico Frankenstein de Mary Shelley fosse ambientada no século XXI. Certamente, o Dr. Victor Frankenstein teria à sua disposição não mais pedaços de corpos para serem costurados e revividos com impulsos elétricos, mas agora a tecnologia da clonagem e computadores.

Mas também não haveria mais aldeões enraivecidos carregando tochas nas mãos querendo matar a monstruosa abominação, mas agora um escândalo midiático, inúmeros grupos religiosos fundamentalistas gritando na sua porta e processos nos tribunais acusando o doutor de abuso infantil.

E o mais paradoxal: enquanto Shelley via no século XIX o drama do Dr. Victor Frankenstein como um Prometeu moderno, agora, em pleno século XXI, ele enfrentaria a fúria religiosa da opinião pública alimentada pelo linchamento midiático que pretende colocar Deus no lugar da Ciência.

Esse é o filme Closer To God(2014), francamente inspirado no clássico Frankenstein onde nos conta a estória do Dr. Victor Reed (Jeremy Childs), o primeiro cientista a clonar um ser humano, um bebê chamado Elizabeth. O diretor Billy Senese faz evidentes alusões à Mary Shelley: do nome do protagonista (Victor) ao bebê clonado (Elizabeth), o nome da esposa do Dr. Frankenstein morta tragicamente no livro clássico.


Mas enquanto Mary Shelley buscou mostrar o drama do cientista como um moderno Prometeu, em Closer To Godvemos o drama de um cientista que deve enfrentar a extensa cobertura midiática que o transforma em um cientista louco levando a sua porta diversos grupos religiosos radicais e violentos.

A área cinzenta do debate

A grande virtude da adaptação que o diretor Billy Senese faz do livro clássico de Shelley é a de não retratar o protagonista dentro do velho clichê do “cientista louco” embriagado com o poder de brincar de Deus, mas de alguém cansado dos embates ideológicos e jurídicos,  além de ter sua vida profissional esmiuçada de forma sensacionalista pela cobertura 24 horas da mídia. 

Parece que Senese quer fugir da polarização Ciência versus Religião sempre explorada pelo cinema.  O diretor quer encontrar uma área cinza do debate. Os diversos elementos embaralhados em busca de algum sentido: o obscurantismo dos grupos religiosos, o sensacionalismo midiático, o discurso do progresso inevitável acima da ética e da moral, os perigos da criação de seres humanos para fins de fornecimento de órgãos (tema de filmes como A Ilha), clones como seres de segunda classe sem qualquer laço familiar ou afetivo etc.

Ciência, mídia, opinião pública, religião, clonagem e financiamento privado. Ninguém parece  ter a verdade no drama de Closer To God. A única que parece estar próxima de Deus é o bebê Elizabeth que se transforma em objeto de manipulação por todos os lados.

O Filme


O filme começa com o nascimento aparentemente normal de uma menina chamada Elizabeth – exceto quando a criança recebe imediatamente uma espécie de sensor ligado à testa. Ela é a criação do Dr. Victor Reed, um geneticista determinado a usar a clonagem como forma de fortalecer a espécie humana a partir de uma intervenção direta nas regras da evolução. Quando as fotografias do bebê começam a vazar para a mídia, ele é forçado a dar uma conferência para a imprensa quando explica que, tecnicamente, ele não é o pai de Elizabeth mas o seu irmão – ela foi clonada a partir do DNA do próprio cientista.   


Depois dessa afirmação impactante as coisas só começam a piorar com uma verdadeira blitz de publicidade negativa, ameaça de processos por autoridades governamentais, multidão de manifestantes fundamentalistas e constantes vazamentos de informações para a mídia por parte de uma médica da sua equipe.

Com a ameaça de invasão do laboratório localizado no subsolo de um grande hospital, Victor não tem outra alternativa senão levar Elizabeth em um incubadora para a sua residência, uma grande casa localizada em uma região suburbana onde estão esposa, suas duas filhas e um casal de empregados (Mary e Richard) que moram em um anexo.

Mas esse casal esconde um segredo ainda mais preocupante: a primeira tentativa de clonagem mal sucedida, Ethan. Uma criança disforme, desajustada, e mantida prisioneira em um quarto na casa dos empregados. Seu comportamento é cada vez mais violento, preocupando Mary que cobra de Victor alguma providência.

 Seus gritos são cada vez mais guturais e arrepiantes, preparando o espectador para uma guinada narrativa que o filme dá ao sair do drama sci fi para entrar no campo do terror. A crítica aponta essa “emenda” como o ponto fraco de Closer To God– alguns críticos mais cínicos falam que o filme é tão remendado quanto o corpo do monstro Frankenstein!

Mas parece que o diretor deve ter se inspirado no célebre filme de terror sci-fi B O Cérebro Que Não Queria Morrer (The Brain That Woudn’t Die, 1962) onde um cientista mantém preso no quarto do seu laboratório uma experiência monstruosa mal sucedida. Com sede de vingança a criatura arranca o braço do cientista que tentava alimentá-lo e destrói o laboratório e todo o trabalho da vida do seu criador.


Porém, o plano do cientista de integrar a menina Elizabeth a sua família vai por água abaixo quando a médica da sua equipe vaza para a mídia fotos e a nova localização, dessa vez com fotos sem retoque mostrando o sensor implantado na testa do bebê. Em pouco tempo o entorno da casa de Victor Reed se transforma em um circo midiático de jornalistas e grupos fundamentalistas políticos e religiosos os mais variados e bizarros.

Alquimia criando vida


Para além do remendo narrativo apontado pela crítica, Billy Senese evita qualquer tipo de maniqueísmo evitando o clássico antagonismo Ciência versus Religião: todos os lados são mostrados com seus pecados e mazelas: a mídia, o sensacionalismo; o cientista, a ambiguidade entre a ambição e o desejo de que Elizabeth de um novo sentido a própria vida conjugal; a opinião pública, o obscurantismo de um retorna a nova idade média queimando um cientista na fogueira; e os óbvios interesses privados no financiamento da pesquisa sob o álibi do combate a doenças degenerativas como o Alzheimer.

O tema do homem criando a própria vida é um clássico tema da mitologia alquímica que narrativas como Frankensteinde Mary Shelley apenas atualiza para os tempos modernos.


A ambição científica financiada por interesses mercadológicos tem na sua essência a ambição gnóstica da Alquimia: através das transformações alquímicas da matéria (Nigredo, Albedo, Rubedo) repetir as etapas da criação a vida feitas por Deus (ou pelo Demiurgo) – se temos a Plenitude dentro de cada um de nós, podemos repetir as etapas de Criação criando a Alma a partir de uma forma material inferior.

 Mas seríamos como Prometeu moderno. Tal como na mitologia grega, o titã que roubou o “fogo do deuses” e deu para os homens (no caso atual, o segredo de criar a vida por meio da Ciência) é condenado pelos deuses: na mitologia, a ter seu fígado comido por um corvo diariamente por 30 mil anos. Na modernidade, a ter seus objetivos corrompidos pelo grande capital que financia as pesquisas e ser jogado para a fúria midiática e obscurantismo da opinião pública.

Por isso Closer To God (“Próximo de Deus”) é um título irônico: como fala a certa altura o protagonista Dr. Victor Reed, a única pessoa próxima a Ele nessa história toda é a pequena Elizabeth. Ecos da mitologia gnóstica da Queda e da Inocência – a Luz está presente em cada forma de vida que surge nesse cosmos. Porém, corrompida pelas formas que o Demiurgo cria - Mídia, Capital e Religião.


Ficha Técnica


Título: Closer To God
Diretor: Billy Senese
Roteiro: Billy Senese
Elenco:  Jeremy Childs, Shelean Newman, Shannon Hope, David Alford, Isaac Disney
Produção: Billy Senese, Jeremy Childs
Distribuição: Breaking Glass Pictures
Ano: 2014
País: EUA

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Curta da Semana: "This House Has People In It" - o terror em transmídia

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Esse curta tornou-se viral e muitos internautas tentam desvendar o mistério que envolve o destino daquela família. “This House Has People In It” é um curta assustador que aponta para o futuro do gênero terror: as narrativas transmídias onde os espectadores participam de forma imersiva em um ARG – Alternate Reality Game. Um site de uma suposta empresa que comercializa vídeos de vigilância e um misterioso vídeo de um escultor em argila disponível no YouTube são as pistas para que cada usuário monte sua narrativa e crie hipóteses para o que aconteceu naquela casa onde todos pareciam estar preparando uma inocente festa de aniversário.  O gênero “found footage” encontra-se com o tema “drama familiar”, argumento que vem fascinando os cineastas nos últimos anos.


Criado por Alan Resnick, This House Has People In Ité um curta de 11 minutos que foi ao ar recentemente na Adult Swin – canal de TV a cabo que compartilha parte do seu horário com o Cartoon Network. Na verdade, o curta é apenas a ponta do iceberg de um ARG, Alternate Reality Game – estratégia transmídia onde é proposto um jogo interativo onde, a partir de diversos sites e fontes, o usuário vai construindo sua própria narrativa a partir de outros vídeos e arquivos. Assim tentará entender o porquê dos eventos que são mostrados nesse curta.

As imagens deste curta seriam supostamente recuperadas de câmeras domésticas da empresa fictícia AB Surveillance Solutions, cujo endereço do site está no final do curta. Além de estar disponível no Youtube o vídeo do artista que trabalha com esculturas em argila assistido por um dos personagens nesse curta. São pistas através das quais o usuário constrói suas próprias hipóteses.

Se o leitor quiser começar a montar o quebra-cabeças, basta começar no site da AB Surveillance Solutions e criar um nome de usuário e senha – clique aqui. Ou veja abaixo um vídeo onde é colocados todos os vídeos, gravações e textos em ordem cronológica para facilitar a compreensãoo do mistério.


This House Has People In Ité mais um exemplo atual da expansão das linguagens em transmídia com narrativas híbridas que envolvem múltiplos dispositivos e plataformas, criando experiências imersivas para o espectador – o conteúdo parece estar por todos os lugares, criando um universo ficcional que está sempre em expansão.

O Curta

A narrativa do curta é formada por imagens de câmeras de segurança de cada um dos cômodos da uma residência de classe média. A família que vive na casa – incluindo o pai, mãe, irmã adolescente, irmão mais novo, bebê e a avó – discutem e veem TV enquanto preparam uma festa de aniversário.

Em torno da marca de quatro minutos torna-se óbvio que algo terrível está acontecendo naquela casa: a adolescente chamada Madison não está apenas deitada no chão da cozinha para fazer birra aos pais. Ela está afundando através do piso e não consegue pedir ajuda aos pais.
Através das várias imagens de câmeras parece que algo de terrível espreita aquela residência, enquanto uma criatura não identificada parece perseguir um cervo que passa no jardim diante da janela da sala de estar.


Alheia a tudo, a avó assiste a um especial de TV sobre cerâmica e modelagem de argila, onde o artista fala coisas estranhas como “húmido, húmido como um corpo quente, como o interior de um corpo...”. Mais tarde o bebê escapa da casa engatinhando. Parece o único que poderá escapar de alguma coisa terrível que está sendo preparada.

O curta é uma amostra do horror contemporâneo em transmídia que demonstra como atualmente os cineastas estão fascinados com dramas familiares misturados com narrativas em found footage(vídeos supostamente perdidos e recuperados). Essa narrativa define o tom irônico: vemos coisas na casa que os personagens não estão vendo e nosso olhar está ligado ao olho insensível das diversas câmeras de segurança.

Uma espécie de “voyeurismo branco” que parece ampliar ainda mais o horror desse tipo de linguagem.

O vídeo tornou-se um viral na Internet e toda uma mitologia multimídia está sendo construída pelos internautas.

Há ainda um site falso do Escultor que aparece na TV que descreve algum tipo de doença relacionada com a argila – “Lynks Disease”. Os e-mails que o usuário poderá receber da AB Surveillance Solutions sugerem que a argila foi comprada por membros daquela casa e podemos acompanhar em alguns outros vídeos possíveis efeitos dessa doença como ficar em estado catatônico passando as mãos no próprio rosto...


O mistério ainda está ainda está por ser desvendado.



Em "O Cérebro Que Não Queria Morrer" o pesadelo da ciência tecnognóstica

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Um filme que assombrou a infância desse humilde blogueiro. Assistido décadas depois, o filme de terror sci fi “O Cérebro Que Não Queria Morrer” (The Brain That Wouldn’t Die, 1962) comprova ser uma verdadeira cápsula do tempo: mostra uma Hollywood onde a herança cultural europeia ainda estava presente na crítica à ética do progresso científico – a consciência ou “alma” não se localiza exclusivamente no cérebro (ecos da psicologia Gestalt e da Fenomenologia), o que torna a experiência do protagonista (o transplante da cabeça de sua noiva) moralmente abominável. Bem diferente da atualidade, onde a agenda tecnognóstica na Ciência crê numa consciência descorporificada que poderia ser traduzida em bytes e aspirar à eternidade.

Assistindo ao filme Close To God(analisado pelo Cinegnose – clique aqui), e principalmente pelo seu desfecho, esse humilde blogueiro não poderia deixar de lembrar do filme O Cérebro Que Não Queria Morrer (The Brain That Woudn’t Die, 1962) que assombrou a minha infância: uma cabeça que é mantida viva em um sinistro laboratório por fios, elétrodos e um misterioso soro - assista ao filme completo abaixo.

Na época não consegui assistir ao final do filme que passava na TV: quando a monstruosa criatura (um experimento mal sucedido do cientista) escapou de um armário para matar a todos, saí correndo para o banheiro com uma baita dor de barriga de medo! Close To Godfez-me lembrar do filme daquela sequência final a qual não consegui assistir. Quarenta e cinco anos depois (o filme passou na TV brasileira no início dos anos 1970) esse blogueiro resolveu rever o filme e, finalmente, encarar a sequência final.


O filme é uma verdadeira cápsula do tempo de uma época onde thrillers psicológicos se misturavam com sci-fi sobre estranhas criaturas e o medo do progresso científico acelerado pelo impacto dos primeiros transplantes de órgão humanos. Essa atmosfera criou um fértil campo para filmes hoje cultuados.

Visto em perspectiva, O Cérebro Que Não Queria Morreré uma pérola cinematográfica por nos anos 1960  por levantar questões que atormentavam as pesquisas em Inteligência Artificial desde aqueles tempos: mas afinal, o que é a consciência humana? Ela reside unicamente no cérebro, podendo o restante do corpo ser eliminado? Ou o corpo na sua totalidade tem consciência e, por tanto, alma?

Uma questão na época complexa e cheia de sutilezas e que hoje, com o imaginário tecnognóstico que motiva as neurociências e IA, tudo parece ser resolvido com o projeto das Cartografias da Mente: a consciência poderia ser traduzida em bytes e, num futuro próximo, poderíamos fazer um upload final do nosso Eu para uma rede bioeletrônica, conquistando a vida eterna. Filmes como Transcendence ou The Machine vem seguidamente abordando essa agenda tecnocientífica atual – filmes também analisados pelo Cinegnose – clique aqui e aqui.

Além disso esse cult dos anos 1960 faz um irônico comentário sobre a erotização da indústria do entretenimento e a transformação da mulher em um boneco erótico consumista: onde mais um cientista procuraria um novo corpo para a cabeça da sua noiva? Em boates com shows eróticos e concursos de modelos.

O Filme


Para aqueles que não estão familiarizados com o filme, O Cérebro Que Não Queria Morreracompanha um cirurgião (Dr. Bill) que já há algum tempo vem fazendo secretamente experiências em manter partes de corpos vivas mesmo depois de mortas, até tentar fazer um novo ser. Uma dessas  experiências mal sucedidas vive trancada em um armário no laboratório em um porão de uma casa rural do seu pai, Dr. Cortner.

O filme começa com uma cirurgia feita em conjunto com seu pai. Numa manobra cirúrgica ousada, sob a desconfiança do Dr. Cortner, Dr. Bill ressuscita um paciente dado como morto com sua técnica de choques diretamente aplicados no cérebro.  Após uma discussão sobre ética científica com seu pai, Bill leva sua noiva Jan Compton rumo à casa de campo onde está seu laboratório.


No caminho sofrem um acidente e o carro despenca num barranco, decapitando Jan e incinerando o restante do corpo. Desesperado, Bill enrola a cabeça da sua noiva no paletó e corre para o seu laboratório que está próximo. Ajudado pelo seu assistente, Bill coloca a cabeça de Jan em uma bandeja cheia de um revolucionário soro e conectada a fios e elétrodos. Bill ressuscita a cabeça até que ele possa encontrar um novo corpo para ela ser transplantada.

Mas tudo que a cabeça deseja é morrer para não se tornar uma aberração em vida, assim como o monstro que tenta escapar do armário. Ela quer vingança depois de compreender a imoralidade das experiências do seu amante. Cheia de ódio, a cabeça vai procurar uma forma de vingança.

Gestalt, Fenomenologia e Consciência


O filme é ainda dos tempos em que Hollywood ecoava a herança cultural do velho continente europeu. Está claro no filme que a crítica ética feita ao delírio científico do Dr. Bill se fundamenta na ideia de que o homem não é uma simples soma ou subtração de partes – a consciência ou “alma” é a totalidade do corpo, numa integração completa espírito/matéria. Uma crítica à noção cientificista e cartesiana de que a consciência se localizaria exclusivamente em algum lugar do cérebro – por exemplo, o filósofo Descartes no século XVII acreditava estar localizada numa glândula do cérebro. Para ele, a única função do resto do corpo era manter o cérebro vivo.

A crítica ética do filme repercute tanto a psicologia Gestalt como a Fenomenologia da percepção do filósofo francês Merleau-Ponty. Para a Gestalt o Todo não é a soma das partes. Uma proposta epistemológica de que a realidade somente pode ser apreendida em uma única vez, em sua totalidade ou “Gestalt”.

Dessa forma, o corpo da Gestalt implica no reconhecimento do funcionamento integrado, de uma realidade co-construída mente e corpo.


Da mesma forma, a grande contribuição da fenomenologia do francês Merleau-Ponty no século XX foi estabelecer as bases cinestésicas da consciência e da percepção. Partindo de um princípio holístico, corpo e consciência estão relacionados e mutuamente engajados. A própria percepção de si mesmo e do ambiente depende do posicionamento corporal e da sua ação sobre os objetos. Consciência e experiência estão em um mesmo fenômeno e não são excludentes como encara o cogito cartesiano.

A consciência não é apenas a cabeça, mas as mãos que se tocam ou o pé que sente o chão. É compreensível o fenômeno da “mão fantasma” após o membro ser eventualmente amputado – dentro da lei de complementaridade (ou "fechamento") da mente, fantasmaticamente o membro é reconstituído para a gestalt corporal ser mantida intacta.

Bem diferente da atualidade onde a agenda tecnognóstica retorna à concepção cartesiana de consciência, não mais da forma bizarra onde cabeças ou cérebros eram mantidos vivos como no imaginário sci fi do passado, mas com a possibilidade da mente ser cartografada para ser traduzida como informação que pudesse ser estocada em hardwares.

Dessa forma, Hollywood vira as costas para o velho continente para se voltar à utopia tecnognóstica do Vale do Silício, repercutida na cinematografia desse início de século.

Em O Cérebro Que Não devia Morreressa aberração da mente viver separado de uma existência corpórea é representada na transformação psíquica de Jan: antes afável e amorosa, torna-se vingativa e com poderes telepáticos capazes de controlar a criatura do armário para arquitetar sua vingança.

Ciência e perversão


Mas o que é realmente interessante nessa releitura do filme tantos anos depois é perceber o subtexto presente nas sequências onde o protagonista procura um corpo ideal para sua noiva-cabeça em shows eróticos e concursos de modelos.


Se metaforicamente tanto os espetáculos eróticos como os estéticos nos desfiles de modelos transformam seres humanos em objetos sem individualidade que entregam-se ao voyeurismo dos espectadores, no caso do olhar do Dr. Bill vai mais além: literalmente ele vê todos corpos como que estivessem sem cabeça. Apenas uma variedade de exemplares sem dignidade humana. Simples objetos para seu experimento científico, um exército industrial de reserva para reposição.

É curiosa essa aproximação que o filme faz entre a perversão voyeurista e a racionalidade científica do Dr. Bill, o que lembra todas as discussões de Adorno e da Escola de Frankfurt em torno da Indústria Cultural – o psiquismo humano, seus impulsos, desejos e perversões, cientificamente organizados na indústria do entretenimento sob a forma da mercadoria.

Esse é o perigo do progresso científico sem ética ou moral: de repente a Ciência torna-se um álibi para a satisfação de perversões, destrutividade e dominação. A luz da razão pode também produzir sombras.


Ficha Técnica


Título: O Cérebro Que Não Queria Morrer
Diretor: Joseph Green
Roteiro: Joseph Green baseado em estória original de Rax Carlton
Elenco:  Jason Evers, Virginia Leith, Anthony La Penna, Adele Lamont
Produção: Rex Carlton Productions
Distribuição: Gaiam Americas (DVD)
Ano: 1962
País: EUA

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Em "O Predestinado" somos todos prisioneiros dos paradoxos do Tempo

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A noção de Tempo não passa de uma convenção lógica criada pelo homem para organizar os eventos da sua existência. Por isso, guarda uma série de paradoxos, assim como os sistemas lógicos matemáticos, mostrando seus limites e insuficiências. O filme australiano “O Predestinado” (Predestination, 2014) trata de um desses paradoxos: o paradoxo da predestinação – passado, presente e futuro não se sucedem mas coexistem e se interagem, condenando-nos à condição de prisioneiros em espécies de armadilhas temporais. Ciclos viciosos cuja única fuga é através da condição existencial de estranhamento, alienação e investigação paranoica. A condição de sermos como Detetives e Estrangeiros para escaparmos dessas armadilhas. Assim como certa vez o matemático Alfred Tarski resolveu o célebre Paradoxo do Mentiroso de Epiménides. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.


Uma das coisas fascinantes dentro da Filosofia é demonstrar os limites da lógica com seus paradoxos e incompletudes como, por exemplo o Teorema da Gödel que demonstra as limitações inerentes a todo sistema matemático. Ou o famoso Paradoxo do Mentiroso de Epiménides onde uma afirmação produz sua própria negação, produzindo um raciocínio circular, recursivo e sem solução.

“Todo cretense (natural de Creta) é mentiroso”, disse o cretense Epiménides. Mas se a frase for verdadeira, o filósofo estaria nos contando uma mentira. Mas se for mentira, a frase é verdadeira. Mas não pode ser, pois todo cretense é mentiroso, e assim por diante num ciclo vicioso sem solução.

O Tempo também é uma forma lógica de organizar nossa existência e que, portanto, também guarda paradoxos como, por exemplo, a relatividade tempo/espaço de Einstein ou o “paradoxo da predestinação” de que trata o filme O Predestinado.

O filme é uma produção australiana dirigida Michael e Peter Spierig baseada num conto do escritor de ficção científica Robert Heinlein chamado All You Zombies– adianto que a narrativa toma o termo “zumbis” apenas no sentido metafórico.


O paradoxo temporal da predestinação sempre foi a própria essência dos filmes sobre o tempo do período modernista do cinema e séries de TV como O Túnel do Tempo ( Time Tunnel, 1966-67) onde os protagonistas Doug e Tony vagavam perdidos na História, tentavam evitar tragédias mas a inevitabilidade da flecha do tempo sempre conspirava contra eles e as coisas acabavam acontecendo tal como foram descritas nos livros de História. Alterar eventos históricos poderia criar paradoxos catastróficos que, inclusive, poderia fazer desaparecer os próprios sujeitos das alterações.

O Tempo Pós-Moderno


Mas O Predestinadoé um filme pós-moderno e, como tal, vê o tempo dentro de uma perspectiva mais flexível onde os paradoxos podem ser confrontados e, assim, os protagonistas sempre podem criar novos passados ou futuros como nos filmes da trilogia De Volta para o Futuro, Primer (filme analisado pelo Cinegnose - clique aqui), Time After Time, Looper etc.

O Predestinado nos mostra a luta de um protagonista que tenta enfrentar esse paradoxo onde ele próprio figura o problema e a solução da seguinte forma: “Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? O Galo!”.

Como o leitor perceberá, o filme resolve o paradoxo de maneira análoga à célebre solução ao paradoxo do mentiroso dada pelo lógico e matemático polonês Alfred Tarski: a frase do cretense mentiroso implica num nível metalinguístico, nível superior na hierarquia semântica onde conseguimos distinguir afirmações do cretense e sobre cretenses. Ou de“ovo”e “galinha” e sobre galos.


Seguindo a tradição dos filmes gnósticos, a solução somente poderá ser encontrada no interior do próprio protagonista quando perceberá que o paradoxo não é produzido por alguma entidade estranha chamada Tempo, mas por uma própria luta interior que parece sempre mantê-lo prisioneiro em um tipo de armadilha temporal.

O Filme 


O Predestinadoé um daqueles filmes difíceis de fazer uma resenha: qualquer coisa que possa ser dita corre o risco de transformar-se num gigantesco spoiler e prejudicar a experiência da narrativa. Mas vamos ficar nos aspectos mais externos.

O filme acompanha um “agente temporal” de uma espécie de agência governamental secreta no futuro (nos anos 1990) formada por um grupo de elite de pessoas que viajam através do Tempo a fim de prevenir crimes horríveis antes que eles ocorram.

O filme começa quando vemos um desses agentes tentando desarmar uma bomba de um terrorista chamado “O Detonador Sussurrante” que explodirá quarteirões de Nova York em março de 1975. Ele não consegue e retorna para o futuro com o rosto desfigurado pela explosão. Na sede da agência é feita uma cirurgia plástica para recuperar seu rosto, quando finalmente vemos o rosto do protagonista feito por Ethan Hawke.

Obcecado em descobrir quem é o terrorista que sempre consegue vencê-lo, o agente retorna para a Nova York dos anos 1970, dessa vez como um bartender. Nesse bar ele começa uma conversa com um cara com uma aparência ligeiramente andrógina apenas conhecido como “A Mãe Solteira” – Sarah Snook. Ele ganha a vida escrevendo contos falsos sobre confissões intimistas femininas para leitoras desocupadas em revistas populares.

Em troca de uma garrafa de uísque ele promete contar para o bartender “a melhor história que você já ouviu”, na verdade a sua própria história que começa quando foi largado ainda bebê na porta de um orfanato em 1945.


Lá ele (na verdade "ela") cresce com o nome de Jane. Desde o início ela demonstra qualidades que a destacam das outras meninas: inteligência, determinação e força física. O que desperta interesse do enigmático Mr. Robertson (Noah Taylor), agente de uma agência governamental chamada SpaceCorp, agência dos anos 1960 supostamente destinada para formar mulheres que no futuro farão missões de resgate e socorro a astronautas no espaço.

Porém Jane se apaixona por um homem misterioso que a engravida e desaparece deixando-a sozinha e sem emprego – mulheres com filhos ou família não é o perfil procurado pela SpaceCorp. E para piorar ainda mais, seu bebê é sequestrado do berçário do hospital o que conduzirá a mais uma descoberta que causará uma reviravolta na sua vida.

Detetives e Estrangeiros atenção: perigo de spoilers


Fazer as conexões entre esse bartender, Jane, SpaceCorp, e Mr. Robertson será o desafio do espectador para resolver, junto com o protagonista, o chamado paradoxo da predestinação.

Os leitores do Cinegnose rapidamente perceberão que o protagonista do filme se enquadra no personagem gnóstico do Detetive: aquele que transforma a sensação de estranhamento com o mundo em um mistério que precisa ser desvendado. Mas quanto mais puxa o fio da meada, mais para sua surpresa cai em si que o mistério tem a ver com ele mesmo.

Estamos aqui no terreno clássico dos detetives, seja aqueles dos filmes noir (Relíquia Macabra, 1941) ou no gnóstico cult Coração Satânico (Angel Heart, 1987) onde na verdade o protagonista descobre que na verdade sempre esteve em busca de si mesmo.

Uma das chaves de compreensão do filme é a condição de todos os personagens da história: solitários, perdedores, gente sem filhos, família e nada a perder. São Estrangeiros, aqueles que experimentam a experiência do estranhamento e da alienação. A sensação de ser errante e deslocado no ambiente familiar em que vive.

Em muitos aspectos essa será a possibilidade do protagonista resolver o paradoxo temporal da predestinação, lembrando a forma como o paradoxo do mentiroso foi resolvido pelo matemático polonês a quem nos referimos acima.


A condição existencial do Estrangeiro é aquela que permite o distanciamento da própria vida pelo estado alterado da consciência criado pela melancolia que produz a sensação de estranhamento – a condição única de vermos a vida em perspectiva como num olhar de sobrevoo.

Um olhar metalinguístico, distanciando-se de si mesmo e criando, num relance, a totalidade na qual o protagonista está inserido. Isto é a própria metalinguagem, nível semanticamente superior da linguagem. Tal como a solução proposta por Alfred Tarski para o paradoxo de Epiménides.

E que totalidade é essa sugerida pelo filme O Predestinado? Uma perturbadora condição onde passado, presente e futuro coexistem e interagem simultaneamente no aqui e agora. O Tempo não seria mais uma sucessão de momentos, mas uma complexa tramas de paradoxos que nos prenderiam a uma espécie de eterno retorno. E a metalinguagem, estranhamento e alienação seriam a chave para nós, Detetives e Estrangeiros.


Ficha Técnica


Título: O Predestinado
Diretor: Michael e Peter Spierig
Roteiro: Irmãos Spierig baseado no conto de Robert Heinlein
Elenco:  Ethan Hawke, Sarah Snook, Noah Taylor
Produção: Screen Australia, Blacklab entertainment
Distribuição: Stage 6 Films
Ano: 2014
País: Austrália


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Agora para a Globo é matar ou morrer

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Depois de servir como um substituto midiático a uma incompetente oposição parlamentar, agora a Globo parte para o desespero: matar ou morrer, isto é, ou o sucesso do impeachment que lhe garanta sobrevivência num mundo de hegemonia dos dispositivos de convergência tecnológica ou ser engolida pelo Google. Desde que a presidenta Dilma apareceu nas mídias dentro de uma carro automático do Google controlado por GPS no ano passado, a Globo radicalizou contra um governo que promete favorecer seus adversários tecnológicos e comerciais - Facebook e Google. Nem que seja ao custo de perder anunciantes, cada vez mais preocupados com a crescente rejeição ao Grupo Globo estampado em redes sociais e manifestações de rua. Mas a Globo vive um cenário complexo: está entre a “guerra híbrida” produzida pela estratégia geopolítica dos EUA para esfacelar os BRICS e a inevitabilidade do fim do tradicional perfil de publicidade com a entrada do Google com tudo no País.


Na semana passada o programa esportivo Globo Esporte mostrou imagens de torcedores invadindo o treino do Palmeiras com narizes de palhaço e conduzindo uma faixa louvando o juiz Sérgio Moro em uma manifestação anti-Dilma. Por outro lado, nas últimas transmissões ao vivo dos campeonatos regionais de futebol vêm ignorando faixas com mensagens “Não Vai Ter Golpe” ou “Cadê a Minha Merenda” da torcida Gaviões da Fiel – relacionado a escândalos das merendas escolares envolvendo o governo Alckmin.

O apoio das Organizações Globo ao movimento de impeachment contra a presidenta torna-se nos últimos meses cada vez mais explícito com o aumento da temperatura política que indica que se aproxima o momento final do tudo ou nada para a oposição formada pelo espectro jurídico-parlamentar-midiático.

 O que mais impressiona analistas de mídia e jornalistas é que a ação política atual da Globo (capaz de politizar até mesmo a pauta do jornalismo esportivo)  estaria abandonando o próprio pragmatismo que marcou a carreira do patriarca Roberto Marinho, que sempre soube, nas suas cavalgadas políticas, o momento certo de mudar de direção quando a militância prejudicava os negócios.

Foi assim quando a Globo abandonou a ditadura militar, que ajudou a mantê-la em troca da ajuda para a construção do seu monopólio, quando o movimento Diretas Já ganhou as ruas. Ou quando ajudou a derrubar Fernando Collor apoiando seu impeachment, depois que ela própria ajudou a elegê-lo  presidente em 1989, quando percebeu a mudança de direção dos ventos da política nas ruas.

Sidney Rezende: anunciantes preocupados com rejeição à Globo

Hoje, os filhos de Roberto Marinho (como diz o jornalista Paulo Henrique Amorim, “eles não têm nome próprio”) parecem mergulhar de cabeça em uma espécie de tudo ou nada, ignorando os crescentes protestos e críticas à sua parcialidade, inclusive internas de jornalistas e atores da emissora nas redes sociais.

Um tiro no pé?


Um estranhamento que parece estar chegando aos próprios anunciantes da Globo. Segundo Sidney Rezende, ex-jornalista do canal fechado Globo News, a multiplicação de palavras de ordem, faixas e a rejeição contra o Grupo Globo estampada nas redes sociais e em manifestações nas ruas estaria preocupando anunciantes.

Tanto que na semana passada ocorreu uma reunião formada por dois presidentes que representam os interesses de companhias que estão entre os 30 maiores anunciantes do Brasil, seis vice-presidentes de empresas de áreas diversas que atuam em higiene e limpeza, setor automotivo e varejo. No final do encontro foi decidido encomendar uma análise a uma agência internacional de acompanhamento de postagens na internet para avaliar a percepção dos consumidores em relação aos produtos e serviços dos patrocinadores da Globo.

Ainda segundo Rezende, o estudo será concluído em 90 dias e se restringirá a marcas anunciadas nos veículos do Grupo Globo.

Tudo levaria a crer que a Globo estaria dando um tiro no próprio pé, num mergulho kamikaze onde a Organização estaria abandonando o pragmatismo dos negócios para dedicar-se a ação política em tempo integral e mandando às favas a sua credibilidade e profissionalismo.

O primeiro momento histórico da Globo


As Organizações Globo vivem um momento histórico tão decisivo quanto foram os tempos das décadas de 1960-70 – época da implementação da primeira network brasileira enfrentando as audiências das grandes emissoras da época: Tupi e a Record.

Naquele momento Roberto Marinho equilibrava seus interesses empresariais entre o projeto político da ditadura militar e os interesses geopolíticos dos EUA em plena Guerra Fria.


Em julho de 1962 Roberto Marinho assinava acordo com o grupo norte-americano de comunicações Time-Life. Um contrato que vigoraria até 1966, período em que a emissora pagaria ao grupo norte-americano (pelo investimento financeiro e know how tecnológico e profissional) 3,5% do seu faturamento e 49% do lucro. Marinho sabia do interesse dos EUA na criação de uma primeira network no Brasil, capaz de disseminar o american way of lifeem um país estratégico para o xadrez geopolítico na América Latina.

Um ano após o golpe militar, Marinho inaugurava no Rio de Janeiro a TV Globo e a TV Paulista em São Paulo, praticando uma ilegalidade diante da legislação das telecomunicações que vetava a participação estrangeira.

Com apoio de um lado da norte-americana Time-Life e, do outro, dos esforços dos governos militares em pavimentar o caminho da Globo com um moderno sistema de micro-ondas via satélite, Marinho criou um incrível monopólio midiático que nesse momento começa a ser ameaçado. Uma nova recomposição de forças políticas e tecnológicas está em andamento. E dessa vez, para os filhos de Roberto Marinho, é uma questão de matar ou morrer.

Globo, Guerra Híbrida e Google


Hoje os filhos do patriarca Marinho vivem um cenário onde os interesses do Grupo estão novamente entre duas variáveis, só que dessa vez são forças que podem destruí-los: de um lado a estratégia geopolítica dos EUA de aplicar no Brasil a tática de “guerra híbrida” com o objetivo político de tornar ingovernável um país membro dos BRICS; e do outro o adversário ameaçador das tecnologias de convergência, redes sociais e, principalmente, o Google.

“Guerra Híbrida” é uma tática sutil de induzir por meio da grande mídia local, ONGs e grupos de interesses empresariais associados conflitos políticos, éticos, religiosos etc. a partir da manipulação da percepção de uma “população média não engajada”. Por meio da promoção de “primaveras” como a árabe, egípcia ou brasileira desacreditar governos através do discurso da “revolução colorida” (flash mobs, militância em redes sociais, manifestações apartidárias etc.) da “luta contra a corrupção em defesa da democracia” – sobre mais informações desse conceito clique aqui.

Com essa tática, os EUA visariam esfacelar lideranças regionais que possam confrontar a geopolítica do petróleo – onde a descoberta do Pré-sal brasileiro é uma perigosa variável.


A grande mídia brasileira liderada pela Globo e seguida pela Folha, Abril e Estado, engajaram-se nessa agenda internacional, principalmente porque viram nesse cenário a oportunidade de derrubar um governo que é francamente favorável à consolidação no Brasil dos projetos do Google e do Facebook.

Assim como a Rússia, o Brasil passou a ser alvo da guerra híbrida norte-americana a partir da primeira reunião de cúpula dos BRICS em 2009, com a intensificação das “primaveras” brasileiras nas ruas a partir do anúncio em 2013 do projeto da criação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS, o que significou um golpe à hegemonia do FMI.

A origem do desespero: Dilma no carro do Google


Mas a guerra da grande mídia contra o governo federal definitivamente chegou ao desespero quando, no ano passado, a presidenta Dilma fez uma visita à sede do Google e deixou-se fotografar em um passeio num carro high tech controlado por GPS. E na pauta daquela visita, um encontro com o presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, e outras empresas do Vale do Silício.

A guerra Globo versus Google, que está por trás dessa adesão à agenda da guerra híbrida internacional, segue a mesma fórmula do chefão da News Corporation ( estúdio e canais Fox, Sky e jornais e revistas) o australiano Rupert Murdoch. Após falhar na sua tentativa de criar um modelo de negócios na Internet e ser derrotado pelos puro sangue Google e Facebook, Murdoch levou a guerra para o campo político.


Mobilizou contra o candidato Obama as maiores ferramentas de manipulação de informações, promoção de atmosferas de intolerância, ódio, terrorismo e os sentimentos mais baixos persecutórios e de paranoia. O candidato de Murdoch perdeu e, sintomaticamente, o primeiro encontro de Obama depois de eleito foi com os donos das grandes redes sociais – Google, Facebook, Apple.

Globo imita Murdoch


Tal como Murdoch, a Globo tentou criar um modelo de negócio rentável na Internet. Além disso,  modernizou a linguagem televisiva da TV Globo como muita metalinguagem, auto-referencialidade e “efeitos Heisenberg” (sobre esse conceito clique aqui) ao apropriar-se de eventos esportivos como basquete e futebol. E ainda livrou-se do visual platinado-kitsch de Hans Donner que marcou por décadas a emissora, para no lugar criar uma visualidade mais “orgânica”, interativa,  tentando incorporar vídeos de redes sociais na pauta de telejornais e programas – sobre isso clique aqui.

Mas nada adiantou. As audiências continuaram derretendo nos principais produtos de sustentação da Globo: telejornais, esporte e telenovelas.

A guerra suja de Murdoch contra Obama

De substituto midiático para uma oposição parlamentar incompetente, a Globo agora partiu para matar ou morrer, nem que seja ao custo de “queimar gorduras”- perder anunciantes tanto pela crise econômica autorrealizável promovido pelo cartel jurídico-midiático (Lava Jato – Moro – Ministério Público – Globo) quanto pela explícita partidarização no seu Jornalismo que paradoxalmente produz rejeição tanto para a esquerda quanto para a paranoica direita – para eles, a Globo não estaria mostrando ainda “toda a verdade” por estar “de rabo preso” com Lula.

O filhos de Roberto Marinho esperam pela possível era pós-impeachment: apesar de aceitar como irreversível a hegemonia das redes sociais e tecnologias de convergência acreditam ainda no poder da Globo de pautar a opinião pública e o Estado. 

Com um possível cenário político futuro novamente nas suas mãos, acredita que fará aquilo que garantiu sua sobrevivência nos anos 1990 com a chegada no Brasil das tecnologias de TV paga a cabo, MMDS e DTH: uma legislação que garantiu a Globo propriedade cruzada e o domínio, na época, não só da TV aberta como também da fechada.

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Na exposição "Mondrian e o Movimento De Stijl" o irônico final das vanguardas modernas

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De repente, pessoas pareciam esquecer de Mondrian e passavam a fotografar os detalhes “art noveau” do histórico prédio do Centro Cultural Banco do Brasil, Centro de São Paulo. Esse foi um comportamento recorrente observado por esse humilde blogueiro na exposição Mondrian e o Movimento De Stijl. Para além da ironia de uma exposição sobre uma radical escola de vanguarda moderna acontecer no interior de um prédio cujo estilo seria a síntese de tudo que o Manifesto De Stijl mais odiava, o comportamento de muitos visitantes pode ser o sintoma do também irônico destino da arte de Mondrian: inspirado na arte iniciática e esotérica da Teosofia, suas linhas retas e cores chapadas procuravam a paz espiritual. Mas tornou-se conservador e artisticamente estéril ao se tornar a base de toda estética da cultura de massas e publicidade. Da arte e design revolucionários que prometiam que um dia viveríamos todos no interior de um quadro de Mondrian, hoje vemos crianças em quartos cenográficos com alusões à animação “Carros” da Disney/Pixar.


Nesse último sábado este blogueiro que regularmente escreve essas mal traçadas acompanhou o filho em missão escolar requerida pela disciplina de Artes: visitar a exposição Mondrian e o Movimento De Stijl que realiza-se de 25/01 a 04/04 no Centro Cultural Banco do Brasil, no Centro de São Paulo.

Munidos de um bloco de notas e o celular para tirar algumas fotos começamos a caminhada que se inicia no subsolo e sobe os andares do Centro Cultural onde acompanhamos a evolução de Piet Mondrian desde a sua fase figurativa passando à abstração e o encontro com seu compatriota holandês Theo Van Doesburg, fundando a revista De Stijl (O Estilo) em 1918 e o movimento neoplasticista. Até mudar-se para Nova York em 1940 e tornar-se um dos artistas de maior repercussão no século XX – sua marca está presente até hoje na arquitetura, design, artes gráficas e publicidade.

Andando pelos corredores labirínticos do edifício do Banco do Brasil, a primeira coisa que chamou a atenção foi o comportamento de muitos visitantes: simplesmente pareciam dar um tempo à exposição e passavam a fotografar vitrais, tetos e detalhes em art noveau que compõem o prédio histórico do Banco do Brasil.

Era curioso ver uma exposição sobre vanguarda modernista (e uma das vanguardas das mais radicais cujos manifestos falavam sempre em “morte, “aniquilação” e “guerra” a tudo que era antigo) acontecendo no interior de uma edificação que certamente era a síntese de tudo que o Manifesto da Revista De Stijl mais odiava.


Típica situação pós-moderna, pensei, onde as contradições convivem confortavelmente e nada parece produzir conflitos e rupturas – que era a própria essência da velha vanguarda modernista.

Mondrian, Cinema e o “espírito de época”


A segunda coisa foi perceber o “espírito de época” de Mondrian e o De Stijl: a busca pelo universalismo na linguagem. Arte e Cinema estavam juntas nesse espírito: a arte procurava negar o figurativismo e o naturalismo (“excrescências do individualismo” segundo o Manifesto), enquanto no cinema Cinema Chaplin, surrealistas (Buñuel) e impressionistas (Abel Gance) procuravam fugir do realismo das imagens em movimento – Chaplin negava filme falado pois via na pantomima e gags uma linguagem universal, enquanto Gance e Buñuel acreditavam que a vocação do cinema era o simbolismo universal da montagem.

A arte teosófica de Mondrian


O mais surpreendente foi descobrir as motivações para aspiração universalista de Mondrian, que levou a uma arte abstrata e racional de linhas retas e cores chapadas, principalmente inspirada no esoterismo da Teosofia de Madame Blavatsky – doutrina que condensa elementos religiosos, filosóficos e científicos, surgida inicialmente na antiga Índia, ressurgindo em plena era do neoplatonismo gnóstico do século III através de Plotino e Amonio Saccas para ressurgir no século XIX com a explosão do espiritualismo e ocultismo, de Kardec a Blavastsky.


Mondrian estudou as teorias teosóficas a partir de 1892 chegando a se tornar membro da Sociedade Holandesa de Teosofia em 1909.

É no mínimo irônica essa aventura de um movimento artístico que se inspirou no esoterismo que busca a ultrapassagem do mundo físico e emotivo para encontrar a paz espiritual do mundo mental para mais tarde se transformar em uma ferramenta para a arte industrial, design, publicidade e estética da comunicação de massas.

A dialética das vanguardas


Isso faz lembrar aquilo que certa vez o filósofo espanhol Eduardo Subirats denominou como “a dialética das vanguardas” – como a crítica, a utopia social e cultural das vanguardas tornou-se um movimento ambíguo com sua estética cartesiana e maquínica, para depois tornar-se conservador e artisticamente estéril ao integrar-se às estratégias comerciais da indústria, mídia e publicidade – leia o livro do filósofo chamado Da Vanguarda ao Pós-Moderno, Nobel, 1984.

É marcante na exposição ver as visões de utopia de Mondrian e o Movimento De Stijl. Expressar-se unicamente com linhas retas para expressar “o espiritual e o puro”, representar a “forma externa mais simples” da realidade para expressar o seu interior da forma “menos oculta possível”.

Mas, a principal marca dessa utopia é o fim da separação o entre o público e privado, individual e universal:  através da quebra das fronteiras entre arte, arquitetura, pintura e publicidade, tudo expressaria o “moderno” – o pintor se tornaria um arquiteto e finalmente as fronteiras entre realidade e ilusão desapareceriam. Poderíamos viver dentro de um quadro, a arte dominaria a vida e a estetização e design estaria por todos os lados, diluídos no dia-a-dia.

 Vemos nesse manifesto do De Stijl ecos do neoplatonismo teosófico: o mundo foi criado por Deus a partir de formas geométricas puras. Para a Teosofia, essa seria a função iniciática da arte: revelar aquilo que está oculto por trás do caos das formas impuras – a assinatura de Deus nas formas geométricas, sólidas, puras, racionais e limpas. O resultado seria o encontro do absoluto e a paz espiritual, do artista e do mundo.

Tudo é ironia nessa utopia da vanguarda. Poderíamos morar em um quadro de Mondrian ou sentar em uma cadeira ou fazer refeições em uma mesa com as linhas retas e cores do artista, como mostra a exposição do CCBB.

Arte teosófica de Mondrian: encontrar o espiritual na racionalidade e abstração

Tudo é ironia na Exposição


Ironicamente toda essa utopia de fato rompeu as fronteiras entre público e privado com a esteticização generalizada da vida com a indústria do entretenimento, design e publicidade. Tudo vira cenografia. A arquitetura cede lugar aos efeitos especiais. Do quarto infantil onde a criança parece morar num quadro de Mondrian ao quarto de uma criança atual onde móveis e decoração são alusivos à animação Carros da Diney/Pixar, o princípio é o mesmo – o neoplatonismo onde a forma “perfeita”, a imagem e o simulacro antecedem o real.

O filósofo Jean Baudrillard também falava dessa motivação neoplatônica que geraria a inversão perceptiva pós-moderna: não conseguimos mais tomar o real por ele mesmo, mas a partir de imagens feitas anteriormente sobre o real – o simulacro.

 Quase um século depois da utopia de Mondrian e De Stijl, parece que as formas puras divinas que o artista procurava no mundo foram substituídas pelos simulacros midiáticos: Campos do Jordão vira uma Suíça dos filmes publicitários, uma criança vive num quarto do filme Carros estilizado, uma mulher se mata em dietas insanas para ter um corpo parecido com os simulacros das revistas femininas e assim por diante.

Viver num quadro de Mondrian e morar no filme "Carros" da Disney/Pixar: arte e imagem confundem-se com a vida

Neoplanotismo e indústria do entretenimento


Ironicamente o neoplatonismo das vanguardas preparou o terreno para a indústria do entretenimento atual realizar o projeto utópico vanguardista para as massas. De fato a ilusão misturou-se com a realidade, a arte com a vida, ao ponto de sentirmos o mesmo mal estar pelo qual passou o protagonista feito por Jim Carrey no filme Show de Truman. Embora a cidade de Seaheaven no filme fosse a cópia perfeita da vida dos comerciais dos produtos matinais, uma inexplicável sensação de estranhamento e alienação crescia em Truman.

Talvez essa seja a dialética da vanguarda da qual falava Eduardo Subirats. A utopia de Mondrian e da revista De Stijl finalmente realizou-se, porém no plano da ironia e da farsa.

Também talvez esse mal estar explique o porquê de no meio da exposição as pessoas esquecerem de Mondrian e passarem a fotografar o art noveau do prédio do CCBB: o próprio prédio é a nostalgia de uma época onde as vanguardas ainda não tinham ainda fornecido a munição para a futura indústria do entretenimento que, por fim, nos aprisionaria no atual mundo das imagens e simulacros.

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"Samorost 3": gnosticismo em um jogo eletrônico, por Claudio Siqueira

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Vamos falar de um game saído do forno há poucos dias. Oriunda da República Checa, a equipe Amanita Design brindou o mundo com seus Point-and-Click Games no estiloAdventure, divulgando produtos e serviços através de um processo conhecido como “Gameficação”, utilizando-se da ferramenta para fins de publicidade. Como não poderia deixar de ser, o game é repleto de influências gnósticas embora os próprios criadores talvez não se deem conta disso. Prova de que o Inconsciente Coletivo reverbera em toda a esfera terrestre.

Samorost 3é o terceiro longa da equipe, e, como o próprio nome indica, é a continuação aparentemente desnecessária dos dois antecessores. Nele, o protagonista deve derrotar um estranho vilão (semelhante ao Gargamel do desenho Smurfs mas numa versão muito mais macabra) que monta um dragão mecânico de três cabeças.

Para quem não sabe, gameé o jargão utilizado para designar jogos eletrônicos, sejam eles de videogame ou computador. A asserção Point-and-Clickdesigna os games a serem jogados com o mouse, geralmente se aplicando a games de estratégia ou RPG. Adventureé um estilo de RPG presente apenas em jogos eletrônicos, ao passo que o RPG (Role-Playing Game) pode ser jogado em mesa, com tabuleiro, ou no estilo Live Action, com os jogadores interpretando os personagens, como num teatro ou filme.


O Game, passo a passo


O game começa quando uma corneta dourada cai no quintal do protagonista, sendo apanhado por seu cachorrinho de estimação, que é sequestrado no segundo game da série. Desde o primeiro game, o protagonista habita um pequeno asteroide, o que o assemelha bastante ao Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry.

Ao ser acordado pelo cachorrinho latindo, o protagonista sai de casa e pega a corneta. Ela possui o dom de ouvir a “música da natureza”, permitindo ao protagonista que toque a melodia certa para entender o que os objetos “precisam”. É algo como “entender a língua dos motores”, do clássico Se Meu Fusca Falasse (The Love Bug, no original).


O protagonista então ouve o apelo de um cogumelo gigante que diz ser capaz de se tornar uma espaçonave. Ele precisa então coletar os itens necessários para o intento de ambos.

Os Mundos do Game


A questão é que cada mundo para o qual o protagonista viaja representa uma Sephira da Cabala Judaica, também conhecida como Árvore da Vida. Para quem desconhece, Sephiroth (o plural de sephira) são as esferas que compõem a cabala propriamente dita. Cada uma possui um título e até subtítulo, e atribuições concernentes às mesmas.

Malkuth, Lar do Protagonista


O primeiro mundo, lar do protagonista, remete à décima sephira, Malkuth, que representa a Terra, e a fase justifica tal comparação pelas referências à terra (elemento), já que o protagonista auxilia outro personagem à colher cogumelos e o puzzle (quebra-cabeça) que este oferece dramatiza a luta da humanidade primitiva para se consolidar no planeta.


Yesod, a Mudança de Rumo


Ao conseguir montar a nave e alçar voo, a primeira aterrissagem se dá em uma pequena lua cujo único objetivo é encontrar uma chave que não reside no satélite. A lua representa a nona sephira, Yesod, a esfera do sonho. Isso se justifica pelo inseto adormecido que se encontra no interior do satélite.

Hod, o Cinocéfalo de Toth


O planeta seguinte à pequena lua representa a oitava sephira, Hod, regida pelo planeta Mercúrio. Sendo Mercúrio uma versão romana para o deus grego Hermes, o mesmo equivale ao deus Toth da mitologia egípcia. Toth ostentava um pequeno macaco sobre um de seus ombros e é exatamente uma dupla de símios que representa a fase.


Netzach, a Raiz do Amor


O próximo satélite é um tronco de árvore seco que orbita um pequeno planeta vulcânico. Num dos puzzles, o personagem precisa combinar o DNA de diferentes flores através da polinização. A flor é um dos símbolos de Vênus, planeta relativo à sétima sephira, Netzach. Ao fim da fase, a combinação de flores resulta em uma mandrágora. A palavra mandrágora tem sua raiz etimológica no hebraico, no radical da palavra amor (Vênus), além de atribuir-se a ela propriedades afrodisíacas.


Tiphareth, A Viagem ao Centro do Ego


O planeta vulcânico ao redor do qual orbita o tronco de árvore representa tanto Tiphareth, a sexta sephira, quanto Geburah, a quinta. O planeta é vermelho, cor atribuída à Marte, que rege a quinta sephira, Geburah.

O objetivo da fase é desgrudar a lua que orbitava ao seu redor e acabou incrustada na superfície do planeta por obra do vilão do game. Para isso, o protagonista deve descer ao interior magmático do planeta e realizar uma operação alquímica: transformar chumbo em ouro, ou seja, a Sombra (elucidada por Jung) no verdadeiro Eu (o Self), ou, no caso, a mandrágora numa bomba.


Geburah, A Bomba


Através da explosão, o satélite se desprende do planeta. A explosão representa perfeitamente o planeta Marte, além do cenário repleto de magma, claro.

Chesed, a Roda Volta a Girar


Ao se soltar do planeta vulcânico através da bomba criada a partir da mandrágora, o satélite volta a orbitar o planeta e serve de trampolim para que o protagonista, com sua nave, atinja um nível mais elevado. A quarta sephira da cabala é atribuída ao planeta Júpiter, que por sua vez é atribuído à carta do Tarô A Roda da Fortuna. Tal representação fica evidente no fato de o satélite voltar a orbitar (rodar) em torno de seu próprio planeta.


Daath, a Incógnita


É dito que a Cabala possui uma sephira invisível que representa o Nada, a vacuidade em si. Este satélite representa tal asserção através da interrogação gravada em seu meio. Neste satélite ficava guardada a misteriosa pérola negra (roubada pelo vilão) que dá vida ao cavaleiro robô que irá enfrentar o dragão mecânico no final do game.

Binah, a Circunspecção


A terceira sephira da cabala é regida por Saturno, regente de Capricórnio, signo mais circunspecto, e é este mundo, embora arborizado, que serve de lar para o vilão do game, um carrancudo personagem que acabou com a alegria do universo que exploramos até agora. Após resolver o principal desafio da fase, o protagonista faz com que o vilão desperte o dragão mecânico e voe para fora de sua base, permitindo ao personagem recuperar a pérola negra que jaz na mesa de jantar do antagonista.


Chockmah, O Despertar da Força


A segunda sephira da cabala é regida por Netuno, planeta dos sonhos e do inconsciente. Nela, o robô gigantesco jaz adormecido com sua espada cravada no solo. Sendo Binah uma sephira feminina, Chockmah, sua contraparte, é necessariamente masculina, o que fica evidente pelo símbolo fálico que é a espada.

Kether, Assim na Terra como no Céu


Chegamos à primeira sephira, Kether, o ponto mais alto da Cabala, que seria o equivalente ao “céu”. Ao fim do game, o protagonista se senta com os monges que conheceu na fase relativa à Binah e todos tocam suas cornetas douradas em cima da torre que era lar do vilão.


Sendo cada caminho da Cabala equivalente a uma letra do alfabeto hebraico, o caminho mais baixo, que liga a décima sephira à nona é a letra Tau, que serve como marco de fundação, mastro, cetro, totem ou torre. Não por acaso, o topo da casa do vilão serve de palco para representar a última/primeira sephira, onde os personagens confraternizam.

As referências a São Jorge e o Dragão e a Belerophonte e a Quimera


Ao colocar a pérola negra (que poderia muito bem representar um fragmento da Caaba, pedra negra mística reverenciada pelos árabes) no cocuruto da cabeça do robô, este acorda e o protagonista lhe incumbe da missão de destruir o dragão.


Assim como elucidado no artigo de São Jorge e o Dragão (clique aqui), passando por suas várias releituras, a batalha entre o robô gigante e o dragão mecânico lembra muito a epopeia do mito católico romano, bem como o grego. Na lenda popular, o Dragão tenta devorar a Lua e em muitas cidades do interior do Brasil, quando há um eclipse, as pessoas saem de casa para bater panelas ou o fazem mesmo sem sair de suas residências. Esse “panelaço” tem como objetivo, o impeachment do Dragão. Segundo a mesma lenda, São Jorge, após matar o Dragão, passou a “residir” na Lua.


Essa lenda advém da estória que deu origem ao mito de São Jorge: a de Belerophonte e a Quimera. No mito, após derrotar a Quimera, Belerophonte tenta subir ao Olimpo, mas é interceptado por uma vespa enviada por Zeus que pica o Pégaso fazendo com que ambos caiam. Atena torna o chão macio para o animal, mas o herói se machuca, passando a mancar para sempre. Nosso robô gigante não tem cavalo, mas está caído ao chão e, para despertar, necessita de uma “fonte de poder”, significado do nome “Belerophonte”. Seu adversário é um dragão que, assim como o antagonista mitológico, também possui três cabeças. 

Claudio Siqueiraé Estudante de Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como os panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.

Grande mídia resgata espécimes do Brasil Profundo

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Esqueça os folclóricos tipos urbanos produzidos pela recente onda do neoconservadorismo político e cultural como, por exemplo, os coxinhas, coxinhas 2.0, simples descolados etc. Esses tipos ainda são de um “Brasil Renitente”. Com o baixo astral generalizado posto em prática pela grande mídia, a pesada atmosfera psíquica nacional revela agora novos espécimes, dessa vez de um “Brasil Profundo”: retrofascistas e protofascistas, tipos-ideais mais perigosos e beligerantes: pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundem militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte. Todos, ao mesmo tempo, parecem ter sido resgatados do ostracismo e infernos pessoais graças à incansável atividade da grande mídia em produzir novos personagens que sustentem suas pautas.  

Depois desses tempos de neoconservadorismo político e cultural nos brindar com uma rica fauna urbana composta por coxinhas, coxinhas 2.0, novos tradicionalistas, simples descolados, “rinocerontes” etc. (sobre esses tipos urbanos clique aqui, aqui e aqui), a pesada atmosfera psíquica que baixou no País, decorrente da polarização política e da intensa atividade do contínuo midiático para gerar baixo astral, produziu o habitat perfeito para novos e exóticos espécimes.

Eles vieram do Brasil Profundo! Vamos listar alguns desses exemplares:

Espécime 1 – Nome: Ju Isen. Modelo anônima, famosa por tirar a roupa em uma das manifestações Anti-Dilma na Avenida Paulista em São Paulo, tentou repetir a dose como destaque no desfile da Unidos do Peruche e foi expulsa do Sambódromo. Outras modelos desconhecidas tentaram seguir o exemplo em outro protesto da mesma avenida de São Paulo, seminuas e segurando cartazes anti-PT ostentando enormes óculos de marca. Uma se excedeu ao ficar totalmente nua e foi levada presa pela Polícia Militar.

Espécime 2 – Nome: Junior de França. Ajuda a organizar o acampamento de manifestantes pró-impeachment em frente ao prédio da Fiesp em São Paulo. Às vezes se passa por jornalista, outras vezes por ator, mas na verdade recruta homens e mulheres para participar de feiras. É acusado de estelionato e de tentar fazer sexo com modelos, segundo matérias na TV Record e no Portal R7 – clique aqui.

Espécime 3 – Nome: Douglas Kirchner. Transformado em personagem nacional atuando em parceria com a revista Época no vazamento de denúncias contra Lula, o procurador do Ministério Público Federal Douglas Kirchner tem uma controversa militância religiosa e uma conturbada vida amorosa. Fiel de uma seita denunciada por explorar crianças e adolescentes, foi acusado de agredir fisicamente a esposa e mantê-la em cárcere privado no interior de uma das igrejas da seita. Ministra o seminário “Casamento Gay e Marxismo Cultural” onde ataca a igualdade de sexos e defende que o feminismo é um “ideal agnóstico das esquerdas” – sobre a história desse espécime clique aqui.

Espécime 4 – Nome: Janaina Paschoal. Assustando até os apoiadores do impeachment da presidenta Dilma, numa performance resultante do cruzamento de Death Metal com o desempenho da atriz Linda Blair no filme O Exorcista, a professora de Direito Janaina Paschoal fez um discurso em ato de apoio ao impeachment na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco em São Paulo. Transtornada e transfigurada fez alusões ao poder de uma “cobra” que mantém o país no “cativeiro de almas e mentes”. “Acabou a República da Cobra!”, gritava ensandecida em um discurso que lembrava um bispo evangélico fora do controle.


“De onde vem essa gente?”

Como perguntou certa vez o Homem-Aranha, cansado depois de enfrentar o Monstro de Areia e o Venon: “de onde vem toda essa gente?”.

Pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundem militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte.

Todos de repente parecem ter sido resgatados, todos ao mesmo tempo, de seus ostracismos, infernos e limbos pessoais para serem reciclados, ressignificados pela grande mídia e se tornarem a esperança de um futuro melhor – ou uma “ponte para o futuro”, bordão que subliminarmente vem repetindo a todo momento, em alusão ao documento do PMDB divulgado como proposta para um futuro governo pós-impeachment.

Em toda a crise política, talvez a melhor contribuição dada pela grande mídia foi a de trazer à tona esses personagens do Brasil Profundo, pescados nas águas turvas de uma conturbada psicologia de massas.

Uma verdadeira contribuição no campo da Etnografia e da Antropologia Urbana: ressuscitar espécimes que estavam em estado latente, hibernos, apenas esperando a atmosfera ideal para que voltassem a respirar em plenos pulmões. Espécimes redivivos que agora podemos finalmente ter a oportunidade de estuda-los in loco.

Nizan Guanaes: "Preciso de uma Dona Flor"

Brasil Renitente e Brasil Profundo

Por “Brasil Profundo” não estamos nos referindo a uma referência geográfica como um “interior” ou “periferia”. Mas como o ponto mais profundo de um inconsciente coletivo ou “sombra”, no sentido dado pela psicanálise junguiana.

Muito mais profundo do que o imaginário da “Casa Grande e Senzala” de um país ainda marcado pelos signos de distinção de classes (elevador social, uniformes de empregadas domésticas etc.), marcas de uma antiga ordem escravocrata. Onde até mesmo um publicitário como Nizan Guanaes (Publicidade, símbolo de uma suposta modernidade brasileira) é capaz de revelar esses velhos estereótipos em sua coluna na Folha, reclamando sobre o fim das empregadas domésticas: “Preciso de uma Dona Flor, mas que não precisa ter o corpo da Sônia Braga – precisa é cozinhar”, explicou. – Folha, 16/11/2011.

Esse não é ainda o Brasil Profundo, é o Brasil Renitente.

Ego embrutecido

“Quem é duro consigo mesmo, também é com os demais”, dizia o sociólogo Theodor Adorno na sua célebre fórmula do psiquismo do nazi-fascismo. Certamente esta fórmula poderia ser aplicada nesse estudo dos espécimes do Brasil Profundo.

Em comum, todos eles vieram do esquecimento e obscurantismo. São pessoas apegadas aos valores da meritocracia e competição, o que mais torna essa condição de anonimato em profunda frustração de um ideal de ego também atormentado por um profundo ressentimento.

Ju Isen busca a oportunidade que lhe proporcione, pelo menos, a condição de sub-celebridade; Kirchner, o típico concurseiro de editais públicos, espécime que massacra o próprio psiquismo em busca da aprovação – após a vitória, com o ego tão embrutecido e encouraçado, torna-se frio, indiferente em diversos graus, como, por exemplo, no conservadorismo político e de costumes.

Sub-celebridades: perdedoras de si mesmas

Janaina Paschoal, com seu ego igualmente embrutecido em um meio tão competitivo e masculinizado como o campo do Direito; e Júnior de França, oportunista de ocasião no mundo das sub-celebridades que vivem a fama como farsa.

Ressuscitados do seu estado de torpor pela eletricidade das mídias, descobriram que tinham nas mãos uma hiper-tecnologia: redes sociais e dispositivos móveis para poderem amplificar em tempo real seu ódio e ressentimento.

Retrofascismo

Como alertava o sociólogo canadense Arthur Kroker no final do século passado, o futuro seria do “retrofascismo”: uma situação ambivalente de hiper-tecnologia e primitivismo. Kroker dizia que “o fascismo é a revoltados derrotados”. A vida dirigida pelo ódio de si mesmo (o ressentimento pelo ostracismo e obscurantismo) vingando-se através da destruição do outro - leia KROKER, Arthur. Data Trash, New York: Saint Martin's Press, 1994.

Como nos informa o prefixo “retro”, esses espécimes protofascistas são nostálgicos de um passado de pureza onde supostamente haveria lei e ordem. Nos nazifascistas do trágico passado, a pureza da raça em um Idade do Ouro; nos retrofascistas, a ordem militar que nos mantinha seguros de feministas, gays e comunistas - sobre o conceito de retrofascismo clique aqui.


Brasil Profundo e Neodesenvolvimentismo

Ao contrário do Brasil Renitente, o Brasil Profundo foi parido nessa última década. A inclusão de milhões de brasileiros à sociedade através do consumo (que o economicismo e neodesenvolvimentismo faziam o PT acreditar que por si só geraria consciência política e de cidadania) na verdade produziu um perverso efeito inverso: despolitização por meio da percepção de que qualquer direito seria um oportunista substituto do mérito e do trabalho.

Estado policial e militarismo é a atmosfera ideal para esses espécimes protofascistas – a oportunidade de destruir o outro mandando à favas todas as formas de direitos e garantias sociais. Destruir todos esses preguiçosos corruptos que vivem à sombra do Estado com bolsas famílias e créditos educativos.

A ironia é que esses espécimes são perdedores na corrida meritocrática: concurseiros que se mataram em concursos públicos para conseguirem estabilidade dentro de um Estado tão odiado, pequenos escroques, oportunistas intelectuais e acadêmicos condenados à própria mediocridade, além de roqueiros esquecidos pelo mercado.

Ressuscitados por uma grande mídia ávida por novos personagens que deem sustentação às suas pautas, sentem na nova atmosfera a chance de vingar no outro a dureza com que tratam a si mesmos.

Fora de suas tocas onde se mantiveram hibernos, hoje esperam uma tradução política para, mais uma vez na História, ocuparem o Estado.

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Curta da Semana: "Right Place" e "Break Up Services" - como terceirizar a solidão

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Um curta premiado em Cannes que projetou internacionalmente o diretor japonês Kosai Sekine e o seu olhar “neo-futurístico” para as metrópoles do país, presentes nos seus projetos que vão de curtas a vídeos publicitários. “Right Place” (2006) aproxima o transtorno obsessivo compulsivo de um funcionário de uma loja de conveniência com a solidão de Tóquio. Um olhar social que também aparece em um vídeo publicitário para a Adidas, “Break Up Services” (2009), onde uma empresa de serviços terceiriza corações partidos e crises conjugais – o japonês é um povo polido e ocupado demais para confrontar outra pessoa. Então, uma empresa termina o relacionamento para o cliente.

Assistindo ao Boneca Inflávelpara uma postagem recente sobre esse filme japonês que aborda o tema da solidão e alienação nas grandes metrópoles daquele país (clique aqui), o Cinegnose buscou outros filmes do Japão sobre a mesma temática. E encontrou o diretor Kosai Sekine que passou a ser conhecido internacionalmente depois de ser premiado em Cannes com o curta Right Place em 2006.

Morando em Tóquio, o diretor nesses últimos anos tem se envolvido na produção de vídeos publicitários para TV, web filmes, curtas, vídeo clips trabalhando para clientes como Adidas, Nike, NEC e Uniqlo. Mas apesar da variedade de projetos, Kosai Sekine tem um estilo e um olhar próprios para as metrópoles japonesas que ele chama de “neo-futurístico” – pequenos, excêntricos e solitários personagens que vivem nas grandes cidades japonesas onde o visual urbano, organização, limpeza e estrutura de serviços por si só lembram uma cidade do futuro.

Selecionamos para os leitores do Cinegnose o curta premiado Right Place (2006) e um dos seus mais recentes trabalhos: um vídeo publicitário para a Adidas Safety Wear Collection - Break Up Services.


 Right Placeé uma pequena fábula japonesa: a história de um solitário e excêntrico obsessivo compulsivo que luta para encontrar o seu “lugar certo” no mundo. O curta acompanha um dia na vida de um homem com mania de organização, simetrias e uma vida metodicamente organizada: a xícara deve estar exatamente centralizada no pires, o ovo frito cortado em quadrados perfeitos, o nó da gravata em perfeita simetria e o terno alinhado.

Para depois caminhar, sempre sobre faixas brancas, para o seu trabalho em uma loja de conveniência. Na loja a preocupação do protagonista parece ser menos atender aos clientes do que deixar prateleiras e produtos metodicamente alinhados e simétricos. Cada cliente que entra é uma dor de cabeça para ele, pois vai desorganizar todo o seu esquema compulsivo de ordem onde cada lote de produtos deve estar com os rótulos perfeitamente visíveis e alinhados. E tudo acompanhado por um tique de estalar do pescoço enquanto arruma sem parar as gôndolas.

O protagonista vive o que a psicologia chama de transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva – inflexibilidade, perfeccionismo, obstinação, temor a mudanças, colecionismo, avareza, incapacidade de se desafazer de objetos, respeito escrupuloso a regras, austeridade, pontualidade e preocupação excessiva com limpeza.

A virtude do curta é a de contextualizar a obsessão do protagonista: as cenas iniciais da ordem do café da manhã do protagonista são depois confrontadas com planos gerais do imenso conjunto de prédios onde ele mora, com janelas simétricas e ambiente asséptico.

Kosai Sekine faz aqui um comentário sócio-cultural: aproxima solidão, alienação, frieza das relações humanas e o comportamento obsessivo compulsivo.

Mas o curta tem um curioso desfecho com uma evidente interpretação gnóstica: o protagonista tentou a vida inteira buscar organizar o mundo ao redor, mas no final a solução está dentro dele mesmo – encontrar o lugar certo para ele no mundo.


Terceirizar corações partidos


No vídeo da Adidas Break Up Services, Sekine aborda outro aspecto patológico da sociedade japonesa: o “meiwaku” (“incômodo”). À primeira vista japoneses são muito polidos e educados nas relações pessoais. Mas por trás dessas atitudes está o temor de causar “meiwaku” nas outras pessoas – causar algum tipo de incômodo, embaraço, inconveniência ou preocupação em estranhos. Isso acaba contribuindo no problema da solidão chegando ao extremo de se cometer suicídio para garantir que não causarão meiwaku aos outros – família, escola ou empresa.

O curta acompanha a vida de Akira que oferece um serviço único em Tóquio: o “Break Up Services”, empresa que ajuda o cliente a terminar relações amorosas, conjugais, amizades etc. Akira é o mensageiro das más notícias porque “o japonês é um povo muito polido e ocupado para enfrentar o fim de relacionamentos”. É a terceirização de corações partidos e crises conjugais.

Por isso, Akira atrai o ódio e vingança dos destinatários: vive fugindo pelas ruas e estações de metrôs de Tóquio, perseguido por maridos que foram traídos, mulheres que foram trocadas pelos seus namorados.

Mais uma vez Kosai Sekine confronta patologia social (meiwaku e break up services) com as paisagens da solidão de Tóquio: pessoas solitárias em escritórios, nas ruas ou em “hotéis cápsulas” – hotéis onde o cliente pernoita em assustadores cubículos por 1 metro de altura por 1 metro de largura, lado a lado, um em cima do outro. 


Diferente do curta de 2006 premiado em Cannes, aqui o clima é de “alto astral” publicitário: com tênis e roupas esportivas Adidas o consumidor se manterá seguro porque “o amor é perigoso”. Um olhar publicitário cínico para uma patologia social.



Em "A Bruxa" a mente é o combustível do horror

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Bruxas e a moralidade de puritanos da América colonial do século XVII narrado com explícitas alusões à família que se autodestrói no filme "O Iluminado" de Kubrick e a referência visual do quadro de Goya "O Sabá das Bruxas". Tudo leva a crer que “A Bruxa” (The Witch, 2015) é mais um filme do gênero terror com sustos, sangue e perseguições. Mas o estreante diretor Robert Eggers sabe que a mente é o  verdadeiro combustível do horror: mantém o espectador no fio da navalha entre a realidade e a ficção: a dúvida se o elemento sobrenatural sugerido no filme é real ou se atmosfera claustrofóbica da moralidade puritana foi capaz de criar bruxas e demônios. O resultado é uma verdadeira psicanálise dos arquétipos do horror e das bruxas que sempre foram “bodes expiatórios” dos horrores que povoam nossas mentes.

Desde que Linda Blair vomitou um líquido verde e girou a cabeça em O Exorcista em 1973, o gênero terror acabou confundindo-se com efeitos especiais, monstros dismórficos e muito sangue e vísceras espirrando para a câmera. Foram décadas de serial killers do outro mundo como Jason e Fred Krugger, zumbis e bruxas cujas vassouras se transformam em arma mortal para decepar cabeças.

Décadas que acabaram fazendo o gênero esquecer os seus fundamentos no distante expressionismo alemão de Fritz Lang, Robert Wiene e Murnau onde o víamos o horror muito mais no rosto dos protagonistas (olhando para o contra-campo – aquilo que está fora do enquadramento), na cenografia fantástica e na atmosfera de pesadelo. O terror e o susto substituíram o horror humano diante do próprio Mal.

Mas o filme A Bruxa, na estreia do diretor Robert Eggers em longas metragens, resgata esse horror fundamental e esquecido nos últimos tempos: um profundo e inquietante conto do folclore da Nova Inglaterra em uma América colonial. Perturbador e totalmente inesquecível.

Mas um ponto fora da curva dentro das atuais convenções hollywoodianas do gênero. Tanto que o diretor encontrou dificuldades para encontrar financiamento. Entre outras produtoras, precisou também de uma produtora brasileira, a RT Features (responsável por filmes como Tim Maia e O Cheiro do Ralo), que apostou em um filme estranho aos clichês atuais gênero.


Nas entrevistas com a imprensa especializada, Eggers afirma que o filme foi, de um lado, o resultado de vinte anos de paixão e desconstrução do filme O Iluminado de Kubrick e, do outro, o fascínio pelos filmes de horror inglês da Hammer (produtora de filmes dos anos 1960) inspirados em contos do folclore daquele país.

O processo de autodestruição de uma família como em O Iluminado e as personagens das bruxas do folclore, cuja melhor tradução visual está nas pinturas de Goya, foram os principais elementos para a construção do filme A Bruxa. Para tanto Eggers fez uma extensa pesquisa sobre a vida familiar e o folclore da década de 1630 na Nova Inglaterra, algumas décadas antes do infame julgamento das bruxas de Salém – onde 20 pessoas, a maioria mulheres, foram julgadas e executadas.

 Mas principalmente o filme A Bruxa busca o horror que está dentro de nós: a forma como projetamos no outro um bode expiatório para tentar expiar o Mal que instituições como a família e a religião criam e que levam elas próprias à autodestruição.

O Filme


A narrativa acompanha uma família de agricultores que foi excomungada de uma comunidade puritana depois de o pai William (Ralph Ineson) acusar os laços religiosos frouxos que sustentariam aquela sociedade. William muda-se com sua família para uma cabana isolada ao lado de uma floresta fechada e sombria, vendo a possibilidade de praticar uma vida mais próxima a Deus e dos fundamentos da religião puritana.

Mas o otimismo e o fervor religioso começam a ser postos em prova quando a filha adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy) não percebe o desparecimento do bebê da família enquanto brincava com ele. Então o espectador é introduzido a uma figura encapuzada correndo com o bebê através da floresta.


O que se segue é o centro do conflito do filme: a família luta em manter a fé em Deus diante de tal tragédia. Além disso, as coisas continuam a piorar com a pobre colheita do milho e o perigo da família morrer de fome com a aproximação do inverno.

A fé dos membros inclui a mãe Katherine (Kate Dickie), o filho pré-adolescente Caleb (Harvey Scrimshaw) e dois jovens gêmeos indisciplinados  Jonas (Lucas Dawson) e Mercy (Ellie Grainger). O tempo inteiro oscilam entre as questões puritanas sobre o pecado original, o destino do bebê após a sua morte ou se eles foram redimidos aos olhos de Deus. É possível ir para o céu se você pecou? Podemos saber com certeza se Deus perdoa? O que significa permitir a entrada do pecado em sua vida? E como podemos identificar as consequências?

Essas dúvidas começam a atormentar cada vez mais os corações e mentes da família enquanto os infortúnios vão se sucedendo, o que se transformam em suspeitas de uns contra os outros. Alguém deve ser o responsável pela má sorte. Se não é Deus, com certeza será alguns deles.

O susto e o medo


O filme lida com o medo e não com sustos. O filme sugere que há alguma coisa de sinistra e sobrenatural  no interior da floresta que cerca a cabana. Mas Eggers sabe que o verdadeiro poder de filmes como esse não é mostrar um vilão icônico e familiar para o gênero. Há uma dúvida sobre a existência real de algum círculo de bruxas no interior da floresta, ou se a própria floresta sombria não passa de uma projeção da crescente paranoia e ansiedades religiosas daquela família.


Há diversos sub-plots no filme (a relação de Caleb com o pai, a incompetência do pai em manter a subsistência da família, a crescente histeria religiosa da mãe, mentiras e hipocrisias que aos poucos vem à tona etc.).

Mas todos esse subtemas terminam na menina Thomasine. Ela está entrando na puberdade, tornando-se um fator de desequilíbrio na dinâmica familiar. Sutilmente, Eggers mostra como a natural sensualidade de Thomasine começa a afetar a todos, a cada um de uma maneira diferente.

O que impressiona é como a moralidade puritana torna cada membro daquela família duro consigo mesmo: se todos são filhos do pecado original, então somos naturalmente culpados e condenados ao inferno desde o início, tornando a vida uma série de gestos e penitências que buscam pedir o perdão de Deus.

O inferno puritano procura um bode expiatório


Com esse inferno psíquico puritano somada a série de infortúnios que atinge a família, a pressão torna-se cada vez mais insuportável para todos. Como em qualquer instituição social, essa pressão deve ser necessariamente aliviada pela busca do chamado “bode expiatório”- alguém deve ser o culpado por não ter fé suficiente ou de simplesmente ser um traidor.


O que Eggers faz no filme é uma verdadeira psicanálise dos contos de fadas, no melhor estilo do livro clássico Psicanálise dos Contos de Fadas de Bruno Bettelhein. A figura mítica da bruxa surge como um recurso desesperado para manter uma família ou comunidade coesas quando estão à beira da autodestruição.

As acusações dos pais contra Thomasine onde tentam encontrar alguma lógica religiosa para acusa-la de bruxaria foram retiradas das pesquisas do diretor sobre os relatos do Julgamento das Bruxas de Salém. Somado ao assustador design de áudio e os sets unicamente iluminados por velas e lampiões, cria-se uma atmosfera claustrofóbica que em muitos momentos faz o espectador lembrar do filme O Iluminado.

A mente é o combustível do horror. Eggers sabe disso e mantém a narrativa e os espectador no fio da navalha – os constantes enquadramentos com os personagens olhando aterrorizados para o contra-campo; as sequências das imagens da floresta profunda sugerindo às vezes o horror sobrenatural e, outras vezes, apenas o medo natural diante das intempéries; a ameaça de alguma força demoníaca que parece crescer ao mesmo tempo em que se acumulam as tensões e são reveladas as mentiras e hipocrisias daquela família puritana. E a dúvida permanente do espectador entre a realidade e ficção, bruxas reais ou delírios de puritanos atormentados pelo culpa e pecado.

Eggers conseguiu fazer uma história arquetípica do horror da Nova Inglaterra após pesquisas junto a historiadores, museus de história natural e os arquivos do infame Julgamento de Salém. Mas, principalmente, também conseguiu fazer uma psicanálise dos colonos puritanos que iniciaram a América.

Assistindo ao filme, fica a questão que continua martelando a mente desse humilde blogueiro: qual as conexões desse horror gótico do século XVII com o mundo moderno? Como esses medos puritanos que, foram a base cultural da América, continuam presentes no mundo atual? Principalmente em um mundo onde a cultura norte-americana é irradiada para todo o planeta através da indústria hollywoodiana.


Ficha Técnica


Título: A Bruxa
Diretor: Robert Eggers
Roteiro: Robert Eggers
Elenco:  Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Schrimshaw
Produção: RT Features, Parts and Labor, Rooks Nest Entertainment, Cod Red Productions
Distribuição: Universal Pictures International (UPI)
Ano: 2015
País: EUA, Brasil, Canadá

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Impeachment: Sincromisticismo, Efeito Copycat e Parapolítica

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Loren Coleman, pesquisador norte-americano em Sincromisticismo e os chamados “efeitos copycat” midiáticos, dá um “alerta vermelho” para o mês de abril. O quarto mês do ano historicamente é marcado por “coincidências significativas”. Homicidas e terroristas parecem querer conferir notoriedade a seus atos ao aproximá-los de datas marcadas por acontecimentos tragicamente históricos, dentro de um efeito de imitação (efeito copycat). Também como evento planejado e roteirizado para produzir rendimento midiático, a votação do impeachment em abril também guarda “coincidências” que acabam se tornando muito significativas. As diversas coincidências no planejamento das datas da votação do impeachment sugerem que poderíamos estar diante de um evento que vai para além da Ciência Política para entrar no campo esotérico da Parapolítica.

Em uma sociedade tão midiatizada como a atual, os fatos não podem apenas acontecerem: precisam ser emblemáticos, icônicos, simbólicos para ganharem notoriedade no contínuo midiático e se transformarem, de fato, em notícia e, quem sabem, em História.

A esses fatos que disputam a atenção das mídias para poderem existir, alguns pesquisadores chamaram de “pseudo-eventos” (Daniel Boorstin), “eventos-encenação” (Umberto Eco) ou “não-acontecimentos” (Jean Baudrillard). Em comum nesses conceitos está a natureza de acontecimentos vazios porque perderam a espontaneidade – são planejados para o timing midiático, incitados para facilitarem a logística de cobertura e plantados nas reuniões de pautas das redações.

Não é novidade para ninguém que, desde o escândalo do Mensalão, o seu julgamento no STF e, finalmente, o rali da Operação Lava Jato, os acontecimentos foram roteirizados de acordo com o tempo da cobertura midiática: prisões sendo executadas em feriado prolongado, vazamentos e delações às vésperas de finais de semana para as revistas semanais repercutirem etc.

Mas há uma novidade com a aproximação dos capítulos finais (o desfecho do impeachment da presidenta Dilma) de um processo iniciado há 10 anos, desde que o deputado Roberto Jefferson denunciou, indiciado na CPI dos Correios, a existência de um “mensalão do Lula” no Congresso.

Boorstin, Eco e Baudrillard: pseudo-eventos, eventos-encenação e não-acontecimentos

Com a divulgação de que a votação do impeachment estaria planejado para o período entre os dias 11 e 21 de abril (com direito a extensa transmissão ao vivo no domingo, dia 17, antecipando datas de jogos dos campeonatos regionais de futebol), o evento começa a ficar cercado de coincidências e sincronismos envolvendo as datas e o próprio significado histórico do mês, abril.

Parece que, além de alinhar as etapas finais do processo de impeachment ao timing midiático, o evento (ou “evento-encenação”, “pseudo-evento” etc.) pretende criar também conexões significativas para torná-lo simbólico e emblemático. Fazer o impeachment ter uma força para além de naturalmente midiática (para pressionar os deputados indecisos e criar o efeito manada do já ganhou): uma força simbólica e oculta a partir de conexões no campo do sincromisticismo no oceano de pensamentos. Campo onde, em determinadas condições, eventos sedimentam-se em egrégoras e arquétipos capazes de produzir “conexões significativas” que dão a acontecimentos políticos e sociais a força de repercussão dentro da psicologia de massas.

Vamos entrar no controvertido campo da chamada hipótese sincromística e do também chamado “efeito copycat”, efeito de imitação produzido pela onipresença midiática.

A hipótese sincromística


Loren Coleman é um dos mais reconhecidos pesquisadores sobre a hipótese sincromística. Sociólogo e psicólogo, Coleman busca no seu blog Twilight Language“conexões significativas” entre eventos aparentemente aleatórios. Ele procura significados ocultos em “coincidências”, onomatologia (estudo dos nomes) e toponímia (estudo dos nomes dos lugares).

Explicando melhor: busca padrões e coincidências significativas que envolvam nomes, lugares, datas, comportamentos etc.


Coleman vem alertando para o “perigo da zona vermelha do mês de abril”. Para ele, o quarto mês do ano tornou-se um campo minado de rememorações de aniversários e lembranças de eventos trágicos que acabam inspirando indivíduos violentos, homicidas e suicidas facilmente vulneráveis a influências de efemérides ou datas, muitas vezes relembrados pela própria mídia.

Datas podem ser causas extremamente ocultas no desenrolar de incidentes, mas podem se tornar estímulos para mais eventos como “efeitos copycat” de imitação – em busca da notoriedade de seus atos, atores sociais desde loucos e homicidas até manipuladores políticos podem secretamente inscrever suas ações nesse “oceano de pensamentos” que busquem energia nessas egrégoras ou arquétipos em um Plano Astral.

Como no mundo real são fatos vazios (não-acontecimentos) porque destinados à difusão imediata pelas mídias pela busca de notoriedade ou impacto, precisam injetar neles essa energia sincromística presente em datas ou períodos do ano. E o mês de abril é um período fértil, onde desde já as últimas semanas vem apresentando estranhas “coincidências”

As “coincidências” de Abril


(a) Dia 17 de abril, data marcada para a votação do impeachment na plenária da Câmara dos Deputados”, é marcado pela trágica lembrança do massacre de Eldorado dos Carajás onde 19 sem-terra foram massacrados pela Polícia Militar do Estado do Pará.

No último dia 7 desses mês, dois sem-terra morreram em confronto do MST com policiais em um acampamento no Norte do Paraná.

Convém lembrar que o possível impeachment da presidenta poderá mergulhar o País na violência com o levante de protestos por movimentos sociais – de qualquer maneira, seria uma situação desejável para a geopolítica internacional do petróleo onde os EUA veriam mais um membro dos BRICS mergulhar no caos econômico e político. Estaríamos diante de uma “coincidência significativa”?

(b) A data de 17 de abril também é marcada pela infame e famosa Invasão da Baia dos Porcos, quando um grupo de exilados cubanos financiados e treinados pela CIA tentou derrubar o governo de Fidel Castro em 1961. Mais uma coincidência significativa sobre a importância dos últimos acontecimentos para a geopolítica?


(c) O dia de 21 de abril é colocado como data limite para o rito do impeachment. Mais uma data significativa para a história brasileira – é a data do enforcamento do líder dos inconfidentes mineiros Tiradentes no Brasil Colonial. E também data da morte do presidente eleito indiretamente Tancredo Neves, avô do atual senador Aécio Neves, candidato derrotado pela atual presidenta e um dos articuladores políticos do impeachment.

Também convém lembrar que o domingo do dia 21 de abril de 1985, data da morte de Tancredo Neves, foi uma data controversa para muitos naquele momento. Era um domingo de extensa cobertura ao vivo do Instituto do Coração de São Paulo. Convenientemente, o anúncio da morte foi em pleno horário nobre do programa Fantástico da TV Globo (22h23). O Timing e conveniência fizeram muitos analistas desconfiarem de que o presidente já estava morto há dias, esperando a data significativa de 21 de abril para anunciar o falecimento e torná-lo num evento emblemático e histórico em pleno horário nobre televisivo.

Da mesma forma como o presidente da Câmara Eduardo Cunha conseguiu antecipar a votação para o dia 17, um domingo, quando provavelmente também o desfecho das votações será no horário nobre do Fantástico da Globo – a emissora mais interessada na queda de Dilma por motivos principalmente comerciais ao ver a chegada do Google e Facebook ameaçar a mudança do perfil publicitário que tanto a favorece – sobre isso clique aqui.

(d) Dentro desse período determinado para a votação do impeachment (11 a 21 de abril) está uma sombria data que, para Loren Coleman, inspira muitos homicidas e loucos a cometerem atentados: o aniversário de Hitler no dia 20 de abril. Sincronismo perturbador, sabendo-se que na verdadeira caixa de pandora que a oposição parlamentar abriu para angariar militantes pró-impeachment, entre eles estão neo-nazis e carecas vistos nas manifestações empunhando socos ingleses com bandeiras de São Paulo ou com dizeres “Fora Dilma”, “Hate” (Ódio) ou “Proud” (Orgulho) urrando dizeres como “Comunistaaaaa! Vai pra Cubaaaaa!”.


Isso sem falar em um grupo do Movimento Brasil Livre em protesto anti-Dilma em Santa Catarina fazendo saudação nazi com a indefectível camisa da CBF.

E também lembrar que ratos foram soltos durante a CPI da Petrobrás no Congresso quando o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, entrou no plenário para prestar depoimento no dia 09 de abril. O responsável foi um servidor do vice-presidente da Câmara que também trabalhou como secretario parlamentar do Paulinho da Força. Essa tática de terror era comum entre os militantes nazistas na década de 1930 – por exemplo, na estreia do filme Nada de Novo no Front (1930, filme considerado “judeu-americano”), nazis jogaram também ratos na plateia do cinema.

(e) Massacre da Escola Columbine nos EUA (morte de 13 pessoas) em 1999 e na Johan Fuster School nas proximidades de Barcelona em 2015 (uma professora morta e quatro feridos) também no dia 20.

Para Loren Coleman, são típicos exemplos do efeito copycat de imitação pela data do aniversário de Hitler, o que torna o mês de abril perigoso (“alerta vermelho”) ao inspirar outros incidentes: o atentado a bomba na Maratona de Boston em 2013 (sobre a característica sincromística do atentado clique aqui), o massacre de Virginia Tech em 2007 onde um atirador matou 33 pessoas, o atentado a um desfile da família real da Holanda em 2009 quando um motorista avançou contra o público matando oito pessoas – mais um efeito copycat: o motorista tinha a cabeça raspada no estilo do anti-herói homicida feito por Robert De Niro em Taxi Driver (1976).

(f) E o que torna o impeachment mais emblemático é que 1 de abril culminou com os fatos que levaram ao Golpe Militar em 1964 e a deposição do presidente eleito João Goulart.


Efeito Copycat e Parapolítica


Todas essas “coincidências” que envolvem o mês de abril e o período de votação do impeachment seriam importantes dentro do Sincromisticismo, principalmente porque o evento foi deliberadamente organizado para favorecer uma extensa cobertura midiática tentar torna-lo emblemático, simbólico e histórico.

Por que a “escolha” do mês de abril para o desenlace de uma crise política que se arrasta há 10 anos? Seguindo os pressupostos do Sincromisticismo podemos formular duas hipóteses:

(1)Efeito Copycat 

O impeachment no mês de abril seria ideal  pela força simbólica e notoriedade histórica que a imitação trás. No final, é essa notoriedade que homicidas e terroristas buscam ao aproximar seus atos a datas que foram marcadas por fatos históricos. Em suas mentes ao mesmo tempo calculistas e delirantes pretendem tomar emprestado pelo menos um quinhão desses simbolismos para que seus atos conquistem um importante espaço no continuo midiático.

(2)Hipótese esotérica ou Parapolítica 

O Sincromisticismo parte de um princípio Teosófico ou esotérico: o tecido da realidade seria formado por uma trama de acontecimentos que se conectam no tempo e espaço, criando um “oceano de pensamentos” onde em dadas circunstâncias sedimentam-se em egrégoras e arquétipos, criando “formas-pensamento”. Essas conexões criarão “coincidências significativa” que darão energia psíquica a novos acontecimentos que por sua vez produzirão cadeias de eventos que reforçarão esses verdadeiros “nós” pré-existentes no Plano Astral da humanidade, marcando com força simbólica certos dias ou meses do ano. Portanto nessa hipótese esotérica, a força política do evento do impeachment é retirada do plano das formas-pensamento.

O que significa que certos políticos são mais do que operadores e negociadores de questões terrenas. Seriam como magos negros capazes de intuitivamente direcionar eventos políticos ao encontro desses “nós” no tecido da realidade.  Daí, sairíamos da Ciência Política para entrarmos no campo da Parapolítica.

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Em "Ele Está de Volta" o século XXI recebe Hitler de braços abertos

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O que aconteceria se Hitler reaparecesse hoje graças a algum estranho fenômeno temporal que o fizesse escapar da morte em seu bunker em 1945? A resposta que o filme “Ele Está de Volta” (Er Ist Wieder Da, 2015), disponível no Netflix, dá é no mínimo preocupante. Combinando ficção e documentário, o desconhecido ator Oliver Masucci fez uma turnê pela Alemanha – em 300 horas de gravação somente duas pessoas reagiram negativamente. A maioria tirava selfies com Hitler e confessavam sua preocupação com estrangeiros e refugiados que, para eles, estariam destruindo a Alemanha. Borrando a fronteira entre ficção e realidade, Hitler é recebido como um comediante que não consegue sair do papel e vira uma celebridade midiática. Mas embora ninguém pareça estar levando a sério, ele prepara planos para finalmente construir o Terceiro Reich através da melhor invenção que veio depois do cinema: para Hitler, a TV.  

Tanto Hitler quanto Mussolini eram obcecados por cinema. Mussolini chegou a interpretar ele mesmo em uma produção hollywoodiana chamada The Eternal City em 1928. Por isso, muitos historiadores afirmam que suas performances histriônicas e dramáticas em suas aparições públicas tinham um quê de Chaplin, Gordo e o Magro e todos os galãs canastrões do cinema mudo. Uma canastrice estudada e autoconsciente.

Por exemplo, para o historiador Michael Stürmer Hitler foi subestimado: ele parecia ser uma caricatura de alguma coisa que existia antes dele. Por isso, não foi levado a sério no início e todos acreditavam que o frisson nazi “iria passar”. Mas todos acabaram se acostumando com ele, com a sua familiaridade fílmica, para tudo terminar em tragédia com uma nação inteira acompanhando um líder canastrão.

No filme Ele Está de Volta, baseado no best-seller homônimo de Timur Vermes, Hitler reaparece magicamente em um conjunto habitacional em Berlim, ao lado do local onde estava o bunker onde ele teria se matado no final da Segunda Guerra Mundial. Depois de um encontro casual com um produtor de TV, os executivos da emissora começam a elaborar um plano para torna-lo uma celebridade midiática.


Todos acreditam que aquele homem é um comediante que não consegue sair do papel, uma caricatura do antigo Hitler, enquanto ele traça planos para utilizar uma nova mídia que descobre ser mais poderosa do que o cinema: a televisão. O objetivo do diretor David Wnendt não era ser historicamente preciso, mas tomar traços conhecidos da personalidade de Hitler e transformá-los em comédia.

Essa é a parte engraçada do filme, a ficção. Ator pouco conhecido, Oliver Masucci, caracterizado como Hitler, fez uma turnê pela Alemanha para rodar o filme se infiltrando em situações banais do cotidiano alemão em praças, supermercados e parques de diversão.

Agora, essa é a parte assustadora: surpreendidos com uma réplica perfeita de Hitler em seu quepe e uniforme, as pessoas desandam a tirar selfies com o “comediante” e a confidenciar para ele a bagunça que está o país com os estrangeiros e a invasão de refugiados. Muitos deitam a falar mal dos políticos e da democracia e clamam por alguém que “faça a coisa certa”.

Lembrando o filme Borat de Sacha Cohen, o filme mistura ficção e realidade, atores com anônimos das ruas, e humor com Hitler numa combinação politicamente incorreta. Cada cena do filme parece provar que a Alemanha de Angela Merkel (“uma mulher robusta com o carisma de uma macarrão molhado”, fala a certa altura o impagável Hitler), da crise econômica do Euro e da austeridade estaria pronta para receber um novo Hitler de braços abertos.

E o que é pior: tal como no século passado, todos o veem como um palhaço inofensivo, como uma caricatura de todos os Hitlers encenados pelo cinema, enquanto o verdadeiro Hitler ressuscitado trama a volta ao poder através da TV, seguindo passo a passo as teses do seu livro Mein Kampf.

E como fala a certa altura do filme, ele tem um “bom material de trabalho pela frente”: uma sociedade totalmente midiotizada e idiotizada. Para ele, a Direita nunca leu seu livro e skinheads não passam de “fracotes”. Hitler vê na TV a única novidade promissora para finalmente construir o Terceiro Reich.


O Filme


Estamos em Berlim de 2014. Hitler acorda em um terreno baldio, envolto em fumaça, sujo, com uma grande dor de cabeça. Olha para o céu e, surpreendido, não vê aviões bombardeiros cruzado o céu e nem ruínas. Tudo está limpo e organizado. Vê crianças com estranhos aparelhos colados nos ouvidos. Confuso, procura informações de como chegar na Chancelaria e lamenta por não contar com sua esposa, seu amigo Himmler e a SS.

Assustada, uma mãe levando seu bebê joga spray de pimenta nos olhos de Hitler que acaba esbarrado numa banca de jornais, olha para as capas de revistas e toma pé da situação: de alguma forma escapou da morte em seu bunker em 1945 e acordou no futuro.

Fabian Sawatski, um aspirante a produtor de TV demitido de uma emissora de televisão chamada MyTV e que vive às custas de dinheiro emprestado pela mãe, descobre o “comediante” perambulando pelas ruas e vê nele a chance de produzir um vídeo que lhe abriria as portas da TV.

Com um furgão emprestado da floricultura da mãe, Fabian roda a Alemanha com seu insólito artista registrando suas interações com as pessoas. Em mais de 300 horas de filmagem, somente duas pessoas reagiram negativamente à presença do Hitler do ator Oliver Masucci. Todos reagem com emoção e diversão – posam para fotos e executam a famosa saudação com o braço levantado para ele.

Uma mulher confessa a Hitler que todos os problemas da Alemanha estão com a chegada de estrangeiros. Outro homem diz que a chegada de imigrantes africanos está rebaixando o QI do alemão em 20%. E em uma cena particularmente preocupante, Hitler facilmente convence um grupo de torcedores de futebol a atacar um ator que fazia comentários anti-alemães. Para o diretor, a produção não esperava que o Hitler de Masucci convencesse tão rapidamente aquele grupo, colocando em risco a vida do ator e obrigando técnicos e câmeras intervirem imediatamente.


Hitler politicamente incorreto


Enquanto isso, Hitler desfila linhas de diálogo de impagável humor politicamente incorreto. Expressa o choque pela existência da Polônia (“Ainda existe! E dentro da Alemanha!) e manifesta sua aversão à democracia moderna, apoiada pelos anônimos que cruzam seu caminho. Para Hitler, o único partido que lhe inspira simpatia é o Partido Verde porque “defender a natureza é defender a Pátria...”. Quanto à Direita, “não leem e são todos uns fracotes”.

Em crise de audiência e vendo os anunciantes debandarem, os executivos da emissora MyTV descobrem o projeto do demitido Fabian. Chamam ele de volta, roubam o seu projeto e simplesmente admitem Fabian como copeiro.

Transformam o “comediante” Hitler em celebridade com um programa onde livremente fala suas lições do Mein Kampf. Suas frases e tiradas se transformam em vídeos no YouTube, memes em redes sociais e links compartilhados. Hitler vira também uma web-celebridade instantânea.

Ninguém sabe ao certo o tom dessa espécie de show de stand up político: é para levar a sério? É uma comédia? O fato é que o discurso de Hitler confirma toda a raiva contida dos alemães contra estrangeiros e refugiados, mas que todos têm medo de falar por causa “dos estigmas do passado”.


“Eu faço parte de todos vocês”


Para o diretor David Wnendt “foi notável a facilidade como pessoais normais expressavam suas opiniões diante de um homem vestido de Hitler. O preocupante é que essas opiniões não partiam de neonazistas, mas de pessoas normais, de classe média”.

A certa altura do filme Hitler sentencia: “Não podem se desfazer de mim, eu faço parte de todos vocês!”. Primeiro pop star da cultura da celebridade produzida pela exposição repetida de personalidades à mídia (Goebbels, ministro da propaganda, dizia que uma mentira martelada diversas vezes se tornaria uma verdade), Hitler teve tantas versões no cinema e na própria política que se o verdadeiro surgisse ninguém o reconheceria como o original.

Essa é a ironia de Ele Está de Volta: a força do Hitler histórico estava no cinema, na forma como ele mesmo era uma alusão à canastrice dramática dos filmes de Hollywood. Da mesma maneira como a força do Hitler interpretado por Oliver Masucci está nas diversas cópias da cópia dos Hitler do cinema e da TV. Uma personalidade tão icônica que todos nas ruas se detinham diante dele e manifestaram espontaneamente os Hitlers presentes dentro de cada um: raiva, ódio mas, principalmente, a busca de alguém que leve a culpa do seu próprio mal estar.

“O povo está calado, mas com raiva. Frustrado com as condições de vida, com em 1930. Mas na época não havia um termo para isso: analfabetismo político”, faz Hitler o diagnóstico da Alemanha atual. E os diversos Hitlers que a História criou e os que ainda serão criados sempre se aproveitarão disso: aos analfabetos, a canastrice da propaganda política.


Ficha Técnica


Título: Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da)
Diretor: David Wnendt
Roteiro: David Wnendt baseado no livro de Timur Vermes
Elenco:  Oliver Masucci, Fabian Busch, Thomas Köppl
Produção: Mythos Film, Constantin Film Produktion
Distribuição: Constantin Film, Netflix
Ano: 2015
País: Alemanha

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Em Observação: "Zoom" (2015) - a metalinguagem até as últimas consequências

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Um filme inspirado nas imagens recursivas e metalinguísticas do artista plástico M.C.Escher. São três histórias interligadas onde o desenrolar de uma determina o destino de outra como fossem narrativas dentro de outras narrativas, produzindo uma circularidade infinita. É o filme “Zoom”, uma co-produção Brasil/Canadá dirigida por Pedro Morelli. Recursividade e metalinguagem são temas do filme gnóstico – são formas linguísticas de desvelar a ilusão e mostrar o multifacetamento da realidade ao serem exploradas até as últimas consequências. Mas também são recursos perigosos onde o filme pode se transformar em mero exercício vazio de estilo. É o que o “Cinegnose” vai conferir.

Título: Zoom

Diretor: Pedro Morelli

Plot: Uma modelo sonha em ser escritora e prepara um romance sobre uma garota insatisfeita com sua própria imagem e, por isso, faz de tudo para conseguir suas próteses nos seios; por sua vez essa garota está produzindo uma HQ sobre um aspirante a cineasta que usa o sexo como forma de manipulação, cujo próximo filme é sobre uma modelo que tenta ser escritora.

Por que está “Em Observação”? - o leitor deve conhecer as obras mais emblemáticas do artista M.C. Escher tais como a mão que desenha uma outra mão e as suas famosas escadarias e estruturas que parecem ser infinitas. Tal como nessas obras emblemáticas de Escher, o filme Zoom explora três histórias interligadas onde o desenrolar de uma determina o destino da outra, produzindo uma narrativa emaranhada ou recursiva.

Cada segmento tem linguagem, ritmo e elenco próprios como, por exemplo, a sequência da HQ toda feita em técnica de rotocospia (precursor da captura digital do movimento, é uma técnica de animação a partir de uma referencia filmada) lembrando filmes como Waking Life (2001) ou O Homem Duplo (A Scanner Darkly, 2006).


A proposta de Zoom é levar ao extremo as ideias de metalinguagem e recursividade na narrativa cinematográfica.

O filme é uma co-produção Brasil e Canadá, contando no elenco com a brasileira Mariana Ximenes, o ator mexicano Gael Garcia Bernal e a canadense Alisson Pill. O filme foi rodado em locações de Toronto, Rio de Janeiro e São Paulo.

Dentro dessa estrutura metalinguística e recursiva, Zoom explora diversos sub-temas como a crítica sobre a busca da perfeição e os padrões de belezas, a maneira como nos tornamos prisioneiros de tendências visuais, contestações sobre a submissão da arte ao mercado – a certa altura o filme ironiza o próprio merchandising que a narrativa tinha acabado de fazer etc.

O Cinegnose tem um particular interesse em filmes que exploram metalinguagens e recursividade. Essas ideias de narrativas em abismo ou de filmes que explicitam para o espectador a própria ilusão da sua mídia (a edição, a cenografia, a montagem etc.) têm grande possibilidade de transcender de um mero exercício de estilo para um questionamento sobre a natureza do real: multifacetamento da realidade, desnudamento da ilusão da realidade assim como a ilusão do próprio filme etc.

A literatura romântica do sec. XVIII-XIX de William Blake ou Gerard de Nerval já explorava essa “ironia transcendental” – a ironia como elemento auto-reflexivo como tematização da lacuna ou distância entre a linguagem e a realidade empírica. As palavras somente dão nomes às coisas, mas não conseguem expressar a própria naturezas das coisas. Essa angústia fundamental dos românticos (o vazio entre a representação da linguagem e a presença do mundo) levou à desconstrução auto-reflexiva da linguagem e o apego ao misticismo em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas.


O Cinegnose já possui um histórico de filmes analisados que trazem para o cinema essa ironia metalinguística romântica  como Um Sonho Dentro De Um Sonho,Mais Estranho Que a Ficção ou Sinédoque, Nova York.

Portanto, o blog vai conferir se o projeto experimental de Pedro Morelli com o filme Zoomé um mero exercício de estilo vazio ou possui um conteúdo com implicações gnósticas ou existenciais, como nos filmes citados acima.

O Que Esperar?– A crítica parece que não vem poupando Zoom. Alguns apontam que o filme não tem nada de experimental ou inovador, consistindo num “mero apanhado da carreira do roteirista Charlie Kaufman – Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e Sinédoque, Nova York. Outros apontam para um filme sem conteúdo e um mero exercício de técnicas e linguagens que a tecnologia cinematográfica atual pode oferecer. O argumento das três histórias seriam mero pretexto para o diretor Pedro Morelli brincar de estilo. Será uma pena se isso for verdade, pois dentro da cinematografia brasileira é um dos poucos filmes a levar o tema da recursão e metalinguagem tão longe. O Cinegnose irá conferir.

O filme já está em cartaz nos cinemas brasileiros.

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