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Curta da Semana: "Don't Hug Me, I'M Scared" - o mundo é o inferno das boas intenções

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Fenômeno viral na Internet, a série de curtas “Don’t Hug Me, I’M Scared” (2011-2015) de um coletivo de artistas ingleses misturam fantoches, animações 3D e artistas fantasiados de animais, num assustador mix de Vila Sésamo e Backyardigans com o último pesadelo de David Lynch. Para mostrar às crianças que o mundo é um inferno de boas intenções. Os curtas começam com a linguagem dos tradicionais vídeos educativos cheios de boas intenções e saudáveis lições de moral: os temas são abstratos e existenciais (Tempo, Amor, Criatividade) e práticos (comida saudável e computadores). Mas as boas intenções se convertem em momentos sangrentos e de surreal humor negro, mostrando às crianças uma lição sobre o mundo dos adultos as espera: boas intenções amigáveis e altruístas se transforam em infernos autoritários. Curta sugerido pelo nosso leitor Francisco Narde.

Os vídeos educativos atuais fazem um trabalho razoável de ensinar a crianças e jovens habilidades básicas como matemática, linguagem e outros diversos conteúdos escolares. Mas ainda não conseguem tratar de certos temas que, apesar de intangíveis, farão parte do cotidiano no futuro: medos existenciais, a religião, o tempo, a morte, a disciplina e a obediência.

Felizmente esse vazio parece estar sendo preenchido com um série de curtas virais que parecem ter saído de um cruzamento entre Vila Sésamo, Muppet Show, Backyardigans e alguma bizarrice mais recente de David Lynch. É a série Don’t Hug Me, I’M Scared (DHMIS) – “Não Me Abrace, Estou Assustado”. Iniciada em 2011 é composto por cinco episódios com os seguintes temas: Criatividade, Tempo, Amor, Computadores e Comida Saudável.

Atores fantasiados, animações em 3D e fantoches cantando letras que parecem querer ensinar algum tipo de lição ou moral, mas invariavelmente os episódios terminam com alguma forma de terrível mutilação corporal e sequências de surreal humor negro.


A série a princípio foi voltada para o público adulto, mas viralizou através do YouTube entre o público infantil e adolescente.

Os temas dos curtas parecem ser aleatórios, mas há uma abordagem comum em todos os vídeos: a contradição entre as lições morais que a sociedade nos ensina e os resultados catastróficos no dia-a-dia. A teoria, na prática é outra! Os vídeos são verdadeiras lições do que as crianças devem esperar quando chegarem no maravilhoso mundo dos adultos, repleto de prescrições, regras, ordem e disciplina. Mas tudo embalado e florido com uma linguagem politicamente correta e amigável.

DHMIS foi criado por um coletivo audiovisual inglês chamado This Is It formado por 12 artistas entre animadores, desenhistas, diretores que escrevem, produzem e dirigem suas obras independentes. Becky Sloan e Joseph Pelling são os fundadores do coletivo e os principais diretores de DHMIS que ganhou bastante reconhecimento no mundo dos curtas metragens, ganhando diferentes prêmios em festivais.


Há algo de doentio e perturbador na atmosfera dos curtas - um estranho mix do tatibitati infantil com desfechos sangrentos e metalinguísticos. Mas, não vamos matar o mensageiro por causa da mensagem: os curtas apenas refletem muito a cultura midiática esquizofrênica que promete um mundo cheio de amor, criatividade e boa vontade e nos entrega dor, paranoia, medo e desespero.

A viralidade dos curtas está na estranheza e ambiguidade: os vídeos parecem conter mensagens simbólicas e subliminares por todos os lados, o que faz os espectadores criarem as mais bizarras teorias e interpretações sobre os personagens e os desfechos das narrativas – há leituras e releituras dos curtas em sites, blogs e em vídeos no YouTube que tentam desmontar as histórias frame a frame.

Os Curtas


O primeiro curta é sobre Criatividade: um bloco de notas ganha vida e começa a ensinar os personagens como ser criativo – ver o mundo de forma menos chata, mais poética, incentivando a procurar dentro de cada um novas ideias, cores e diferentes formas de expressão artística e emocional.

Mas tudo acaba mal: o bloco de notas revela-se autoritário. Seja criativo, desde que obedeça critérios arbitrários. Quando os fantoches tentam ser realmente criativos, libertando-se do arbítrio do bloco de notas, tudo termina em um terrível caos.

Moral da história: criatividade é perigosa! Veja abaixo:


O segundo curta ensina sobre o Tempo. Dessa vez é um relógio que ganha vida e ensina para os nossos heróis fantoches as noções metafísicas e filosóficas sobre o tempo. Até que o Tempo mostra sua face terrível e autoritária: a entropia, o envelhecimento, a morte. 

Tudo fica muito assustador até que, mais uma vez, os fantoches tentam libertar-se: um deles desafia, afirmando que o Tempo nada mais é do que uma percepção subjetiva. O que irrita o relógio demiurgo que vinga-se deles cruelmente.

Moral da história: nada podemos fazer, a não ser viver para morrer. Veja abaixo:


O terceiro curta é sobre Amor. Muitas vezes podemos nos sentir sós, incompreendidos e mal amados com tanto ódio que existe no mundo. Agora é uma abelha que ensina para o nosso herói a importância do amor, como o nosso coração bate chamando a nossa cara metade e assim por diante.

Como sempre, tudo começa a ficar assustador: a abelha na verdade revela-se um porta voz de alguma seita ou religião adoradora do “Rei Malcom” que exige oferendas (ou dízimos?). Somente ali seremos amados! E tudo termina em um piquenique sangrento.

Moral da história: somos todos mal amados e nos apegamos em miragens como seitas, religiões ou grupos de autoajuda que nos prometem amor em troca de submissão. Veja abaixo:


Computadores e a vida digital é o tema do quarto curta. Os protagonistas estão jogando um quiz com questões: “Qual a maior coisa no mundo?”, pergunta uma carta. Agora um computador ganha vida. Ele fala das coisas maravilhosas que pode fazer em segundos – contas, imprimir, informar as horas e sobre qualquer coisa que quiser achar. E podemos ser tão inteligentes como ele se fizermos tudo digitalmente.

Como sempre, o computador começa a mostrar sua face sombria e autoritária: tal como as empresas de Internet que nos rastreiam e acumulam informações pessoais dos usuários, o computador quer todas as informações íntimas dos fantoches para depois digitaliza-los e prendê-los no interior da sua mente digital – ao melhor estilo do filme Tron.

Tudo fica sinistro até que um deles tenta fugir por uma porta, em um gnóstico final no estilo Show de Truman – tudo revela-se um simulacro de realidade onde o real e o virtual se confundem com mais um desfecho cruel.

Moral da história: a tecnologia nos torna espertos ou será que estamos rebaixando o conceito de inteligência para termos relações “amigáveis” com computadores? – sobre isso, veja a crítica que o cientista computacional Jaron Lanier faz sobre o nosso apego a gadgets e aplicativos, clique aqui.



Comida Saudável é o tema do último curta. Comer pode ser um momento paranoico: nunca aceite pratos de estranhos! Uma geladeira ganha vida e ensina hábitos saudáveis à mesa – como a comida não-saudável pode te comer por dentro (mais sequências sangrentas). Como sempre, as amigáveis intenções transformam-se em um pesadelo autoritário.


Moral da história: lições sobre vida saudável são autoritárias. Ainda mais se lembrarmos que as primeiras campanhas antitabagistas e sobre as vantagens de uma dieta saudável foram feitas pela propaganda nazista e prescrita pelos médicos da Gestapo. Veja abaixo:


Os curtas possuem um sabor gnóstico, seja ontológico (os momentos de metalinguagem querem revelar a ilusão pro trás dos fantoches – cenário, câmeras etc.), político (o desafio às autoridades cuja aparência é de puro altruísmo) ou existencial – a condição humana é a do fantoche que se rebela contra os seus manipuladores. 

Veja abaixo também esse interessante vídeo sobre a reação de crianças ao assistirem aos episódios da série DHMIS:


Ficha Técnica


Título: Don’t Hug Me, I’M Scared
Diretor: Joseph Pelling, Becky Sloan
Roteiro: Joseph Pelling, Becky Sloan, Hugo Donkin
Elenco:  Baker Terry, Joseph Pelling, Becky Sloan,
Produção: Blink Industries
Distribuição: Channel 4, Dazed Digital
Ano: 2011-2015
País: Reino Unido


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Wall Street autoconsciente e cínica no filme "A Grande Aposta"

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Desde os anos 1980 fundos de investimento de Wall Street investem em Hollywood nos chamados estúdios independentes. Ironicamente, os mesmos estúdios que inventaram o subgênero “cinema da crise” que desde o crash da bolha especulativa imobiliária de 2008 denunciam as “fraudes” e “mentiras” de Wall Street em diversos documentários e dramas ficcionais. O filme “A Grande Aposta”, indicado ao Oscar desse ano, é mais uma dessas produções supostamente críticas, mas ironicamente financiadas pelo próprio sistema que denuncia. Wall Street é autoconsciente e cínica ao financiar filmes como “A Grande Aposta”? Será que  toda “ganância é boa” ao ponto do sistema financeiro lucrar com a própria denúncia de si mesmo?

As ondas da crise financeira global de 2008 continuam se espalhando não só nas tendências econômicas, mas também no universo cinematográfico. Foi capaz de criar uma espécie de subgênero que poderíamos denominar como “cinema da crise”: Capitalismo - Uma História de Amor (2009), A Ascensão do Dinheiro(2009), O Último Dia do Lehman Brothers(2009), Trabalho Interno (2010), Margin Call: O Dia Antes do Fim (2011), O Lobo de Wall Street (2013), para ficar nos mais conhecidos.

Sejam documentários ou narrativas ficcionais, esses filmes têm em comum o esforço em tentar explicar aos leigos a terminologia hermética dos sistemas financeiros como subprimes, swaps, agências de classificação de risco, CDO sintética, CDO composta, obrigações hipotecárias, tranches etc.


A Grande Opostaé mais um filme desse subgênero que inova o esforço pedagógico ao misturar ficção e documentário, comédia e drama – um famoso cozinheiro falando das suas estratégias culinárias e Margot Robbie em uma banheira cheia de espumas fazem analogias para explicar termos financeiros; constantemente a quarta parede é rompida quando o narrador onisciente (que na verdade é um dos personagens) fala para o espectador;  movimentos de câmera característicos da linguagem documental; personagens se dirigindo ao espectador para corrigir sua própria atuação ficcionalizada.


São recursos propositais que o filme utiliza para quebrar o ritmo e criar uma impressão de autoconsciência e cinismo.

Ironias


Mas esse “cinema da crise” guarda algumas ironias. Primeira: são produções de estúdios hollywoodianos e alguns chegaram a ser premiados e/ou indicados para o Oscar, como o caso de A Grande Oposta que concorre a Melhor Filme. O mainstream da indústria do entretenimento desmascarando fraudes e mentiras de Wall Street?

Segunda: desde os anos 1980 fundos de hedge de Wall Street passaram a investir em Hollywood, impactando a estrutura dos estúdios – passaram a financiar produções de estúdios independentes como a Catch 22 Entertainment, Lionsgate, Relativity Media e a própria Regency Enterprises, produtora de A Grande Aposta – sobre isso clique aqui.

Questão paradoxal: Wall Street investe em filmes que revelam suas próprias mazelas à opinião pública? Como dizia Gordon Gekko (o inescrupulosa especulador do filme Wall Streetfeito por Michael Douglas) “a ganância é boa”. Mas ao ponto de fundos hedge de Wall Street procurarem lucros em filmes onde eles próprios são denunciados?


Talvez essa ganância pragmática não seja surpreendente tendo em vista o que praticaram em 2008: mesmo sabendo que as obrigações hipotecárias estavam podres, asseguravam a saúde financeira a seus clientes enquanto secretamente apostavam na explosão da bolha imobiliária. Afinal, dinheiro não tem ideologia, moral ou pátria.

Máquina de propaganda


Mas no caso do cinema da crise, parece haver um propósito de utilizar Hollywood mais uma vez como máquina de propaganda e de agendamento da opinião pública.

Como o filme Obrigado Por Fumarmostrou de forma magistral, em uma sociedade da informação é impossível negar, esconder ou negligenciar fatos e tendências. Esse filme mostrou como a indústria tabagista era capaz de financiar campanhas e pesquisas ao mesmo tempo contra e a favor do tabaco – deixe que as pessoas escolham o que é melhor para elas, mas o cigarro sempre estará em evidência – sobre o filme clique aqui.

A Grande Aposta parece ser mais um exemplo dessa tática, dessa vez com o sistema financeiro onipresente nas produções hollywoodianas: mostrar que a explosão da bolha imobiliária de 2008 foi o resultado da fraude, mentira e relações promíscuas (profissionais ou sexuais, como de passagem mostra o filme) entre as agências de classificação de risco e os bancos.

Fraude, mentira e promiscuidade são conceitos morais, perfeitos para um filme que se limita ao foco microeconômico (as táticas dos investidores, traders, bancos de investimento e fundos), passando ao largo das questões macroeconômicas – Banco Central e o sistema bancário norte-americano.


Veremos que A Grande Oposta, assim como todo o subgênero “cinema da crise”, é incapaz de abandonar o campo da moralização (mostrar os “bad guys”) e fazer um questionamento ontológico ou macroeconômico: como o sistema não apenas frauda, mas simula a riqueza com a substituição do dinheiro pelo crédito. E como as crises são as novas formas destrutivas de realização de lucros (quando crédito vira dinheiro), e não mais “o fim do capitalismo” como de forma sensacionalista esses filmes parecem quer passar com termos como “último dia”, “o fim” ou “o dia do apocalipse”.

O Filme


A narrativa acompanha quatro clarividentes excêntricos do mercado financeiro de diversas origens que, dois anos antes do crash de 2008, pressentem que a cintilante bolha do mercado financeiro iria explodir. Resolvem fazer apostas em massa contra o mercado imobiliário (fazer seguros de hipotecas subprimes), sob a descrença generalizada de todos: como um investidor vai apostar contra uma das instituições econômicas mais sólidas do país?

Michael Burry (Christian Bale) é um médico que se tornou um guru de um fundo de hedge. É o primeiro a pressentir que a inadimplência hipotecaria subirá incontrolavelmente a partir de modelos matemáticos de tendências.

Mark Baum (Steve Carrell) é um investidor impulsionado por uma mistura volátil de ódio contra o sistema, tristeza e profundo cinismo – considera-se o último dos justos de Wall Street.

Jared Vennett (Ryan Gosling) é um especialista de hipotecas subprime do Deutsche Bank onde está na melhor sequência didática do filme: explica o significado do colapso das subprimes a partir de uma pequena torre com blocos de madeira do jogo Jenga.

Ben Rickert (Brad Pitt) é um plutocrata com discursos conspiratórios, fala baixinho e caminha calmamente e acredita que a civilização está condenada – para ele, após “o fim” sementes para plantar serão a nova moeda. Ele vai ajudar dois jovens investidores de um escritório montado na garagem da casa da mãe a conseguir também apostar contra o mercado imobiliário.

O filme divide claramente os investidores em três categorias: os que enriqueciam sem entender a especulação que estavam manipulando e inflando (a striper que possui apartamentos e cobertura); os que sabiam perfeitamente o que acontecia mas seguiam operando sem se importar com as consequências – afinal, nada é mais sólido do que o mercado hipotecário; e os que anteciparam a crise.


Os protagonistas pertencem a essa terceira categoria que são caracterizados como freaks, outsiders, corsários, autônomos como fossem abutres pós-modernos que se antecipam à carniça. São mostrados como anti-heróis: Burry trabalha de bermudas, descalço e ouvindo rock pesado enquanto lida com modelos matemáticos; Baum odeia o sistema e é o único que apresenta algum escrúpulo com as consequências da crise para os cidadão comuns  pela miséria e desemprego; Rickert é um desiludido à espera do apocalipse e Jared um funcionário que aposta contra o próprio banco que trabalha.

Fraude, mentira e simulação


Mas, como todos os demais, suas ações são também guiadas pelo lucro. Porém, o filme retrata os heróis através dos valores mais caros da cultura norte-americana: a iniciativa individual, empreendedorismo – a cena em que Burry está atento à tela do computador e a câmera passeia pela estante de livros e para em um exemplar de Adam Smith (o pai do liberalismo econômico) e o escritório de investimentos montado na garagem da mãe de um dos investidores da dupla ajudada por Rickert, como fossem os Steve Jobs do mundo financeiro.

A Grande Aposta insiste nos conceitos de “fraude” e “a mentira” que estariam no “coração” da economia norte-americana. Esses conceitos são morais porque originam-se da noção de dissimulação– partem do pressuposto de que, em algum lugar, existe uma verdade que está escondida: a verdadeira economia voltada ao seu valor de uso: a alocação racional e justa de recursos escassos na sociedade.

Mas o que o filme não aborda é que no final todos os protagonistas ganham créditos e não dinheiro como resultado das suas apostas. Tudo que verão são números nas sua telas de computadores dos lucros creditados em suas negociações.


Desde que o Estado deixou de ser a única instituição emissora de dinheiro com as políticas neoliberais de desregulamentação, o sistema financeiro passou a ser um emissor privado também de “dinheiro” – na verdade crédito, riqueza virtual sem qualquer lastro com a economia real que simula ser riqueza.

Ou seja, os nossos heróis de A Grande Aposta que “denunciam” as grandes falcatruas por trás da crise de 2008, serão os artífices da próxima crise – em algum momento esses créditos terão que baixar à terra para transformarem-se em dinheiro: o Estado terá que compulsoriamente lastrear esses créditos socializando o prejuízo (desemprego e depressão econômica) para salvar a credibilidade do sistema financeiro. Que no final tem o Estado como refém com a sua própria dívida transformada em papéis comercializados no sistema financeiro global.

Parece que descobrimos que não é tão paradoxal Wall Street investir em produções hollywoodianas  “críticas” contra o sistema financeiro: no final, o sistema nunca é colocado em xeque – resta culpar os “fraudadores” e “mentirosos”.

Ou, como no emblemático final do filme Casablanca quando o inspetor Renault salva a vida do protagonista Rick (Humphrey Bogart) ordenando: “prendam os suspeitos de sempre”. O mesmo modus operandi aplicado ao filme A Grande Aposta: procurem os homens “maus” para permanecer um sistema onde a iniciativa individual e o empreendedorismo sempre buscam o bom lucro.


Ficha Técnica


Título: A Grande Aposta
Diretor: Adam McKay
Roteiro: Charles Randolph e Adam McKay baseado no livro de Michael Lewis
Elenco:  Christian Bale, Steve Carell, Ryan Gosling, Brad Pitt
Produção: Regency Enterprises, Plan B Entertainment
Distribuição: Paramount Pictures
Ano: 2015
País: EUA

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Cidade de Santos vive no caos semiótico

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Descer a serra para a Baixada Santista (litoral de São Paulo) é uma curiosa experiência. Sair da cidade de São Paulo, onde a Lei Cidade Limpa erradicou a poluição visual de outdoors e fachada comerciais, e entrar na cidade de Santos é uma experiência impactante: o acúmulos de totens, outdoors, imensas placas de fachadas, displays etc. Mas há algo de intrigante na cidade: não é apenas a poluição visual por acúmulo e adição. Há um estranho fenômeno que poderíamos chamar de “caos semiótico” – pet shop que se confunde com buffet infantil, igreja evangélica que parece um depósito de galões de água mineral, uma casa de colchões que lembra a fachada de uma casa noturna e escola que emula parque temático. É a semiótica mimética por imitação, pastiche, estilização e contaminações visuais.

Esse humilde blogueiro costuma passar as férias escolares na cidade natal de Santos/SP. Sair de São Paulo, descer a serra e chegar na cidade do litoral é uma experiência curiosa: na estrada já começamos a nos deparar com outdoors, mídia publicitária que foi banida da cidade de São Paulo com a Lei Cidade Limpa.

Outdoors com mensagens de conscientização e segurança no trânsito e outros tantos de produtos e grifes.

Mas é quando chegamos em Santos que a experiência começa a ficar impactante: lembramos do que era São Paulo antes da Lei Cidade Limpa – profusão de fachadas, placas, totens publicitários, lambe-lambes nos muros mais improváveis, cavaletes e displays. A arquitetura de antigas casas e sobrados em estilo português ou dos velhos bangalôs de madeira do início da urbanização dos bairros simplesmente desaparecem por trás de um emaranhado de placas e anúncios de ofertas, liquidações e promoções.

 Sem falar nos modernas torres levantadas próximas à praia no melhor estilo Miami pelo seu mau gosto, pastiche e a habitual truculência do poder – a sombra de alguns começam a se projetar sobre a própria faixa de areia. E novas torres ainda estão surgindo, superando o folclore dos prédios tortos da orla construídos nas décadas de 1950-60. Estes sim, com homogeneidade arquitetônica, mas que sucumbiram ao solo arenoso da região.


Em Santos só há consenso em relação a poluição visual nas épocas de eleições contra o lixo eleitoral (cartazes, santinhos etc.). Mas quando fala-se em outdoors e fachadas comerciais cria-se uma nervosa polêmica: “empresas vão fechar”, “vai piorar os efeitos da crise econômica” – muitas empresas de outdoor e comunicação visual migraram de São Paulo para a Baixada Santista.

Acredito que a poluição visual em Santos vai muito mais além do excesso de placas, totens e displays amontoados. Há um fenômeno intrigante na poluição visual santista que vem me incomodando nas visitas à cidades já há algum tempo.

Ao zapear os olhos pelas fachadas comerciais e residências, muitas vezes confundia a natureza da casa: aqui, uma residência que parecia um estabelecimento comercial; mais para frente, um pet shop cuja fachada parecia com a de um buffet infantil; do outro lado da rua, uma loja de colchões que mais parecia a entrada de uma casa noturna ou “balada”; e mais adiante, uma casa de cultos evangélicos  que se assemelhava a um depósito de entrega de galões de água; e lá na Ponta da Praia, um condomínio que emula um parque temático de Miami.

Os exemplos são inúmeros. Alguns deles analisaremos nessa postagem. O que nos leva a acreditar que a poluição visual em Santos não é apenas aditiva, pela acumulação e excesso. A poluição é também semiótica.

Os santistas parecem estar imersos em uma espécie de caos semiótico onde os signos (cores, estilos, layouts, arquitetura etc.) perderam o lastro do significado (o que cada signo representa na sua origem, a exemplo de cada palavra em um dicionário) e deslizam livres onde um signo pode estar  em qualquer lugar significando qualquer coisa. O que resulta não mais em arquitetura, sinalização ou informação, mas em cenografia caótica e ambígua.

Mas apesar do cenário ser caótico com signos deslizando aleatoriamente, há uma recorrência ou um padrão: a semiótica mimética – há um mecanismo de imitação (pet shop imita buffet infantil, uma casa de culto evangélico imita signos de igrejas góticas etc.) que produz efeitos abomináveis como o pastiche, o fake e a cenografia de parque temático. Vamos analisar alguns episódios.

Igrejas visualmente contaminadas


As casas/igrejas de culto evangélico, protestante, neopentecostal ou de seitas teologicamente não identificadas são um dos focos desse caos semiótico. Por anos passava em frente dessa casa de cultos e imaginava ser um estabelecimento de entrega de galões de água – “Fonte das Águas” associado ao azul predominante na fachada me levaram ao engano (foto 1).

Foto 1

Depois passei a ouvir música, cantorias e discursos acalorados de um pastor ao microfone e percebi, para minha surpresa, que era na verdade.

Ou essa outra casa de cultos: se passarmos distraídos pensamos ser um buffet ou uma pequena casa de eventos com a fachada em fumê e mesas com cadeiras de plástico juntas à porta (foto 2).

Foto 2

Nesse outro caso de um culto teologicamente não identificado, vemos uma fachada que se confunde com um despachante, curso de línguas etc.: “ganhar”, “consolidar”... lê-se na placa... não fosse a palavra “culto” não saberíamos do que se trata (foto 3).

Foto 3

O acúmulo de casas/igrejas de cultos (nas avenidas principais do canal 4 ao 6 temos em média um desses estabelecimentos por quarteirão) leva a inacreditáveis contaminações metonímicas – ou “piadas prontas” ou trocadilhos involuntários.

Uma casa chamada “Projeto Família em Cristo” está na frente dos fundos onde funciona o “Martinho Despachos” com um grafite que remete a estrada, autos (despachos de papeladas de veículos). Mas a contaminação é imediata – o que representa a estrada? Caminho para Cristo ou das papeladas a serem despachadas? Sem falar na contaminação de “Cristo” com “Despacho” com efeitos imprevisíveis... (foto 4).

Foto 4

A semiótica mimética está presente na imitação da arquitetura igreja evangélica de um campanário (a torre que contem o sino em uma igreja). Recurso de imitação para reforçar a alusão a uma igreja, já que sem esse campanário fake a natureza do edifício não seria tão facilmente reconhecida (foto 5).
Foto 5
O efeito fake dessa semiótica mimética encontra-se nessa gigantesco templo da Igreja Universal na avenida Ana Costa imitando vitrais góticos (muito mal estilizados) e grandes colunas que nada sustentam e apenas decoram para dar uma ar de “templo antigo e digno” – na verdade são construções pré-moldadas com esqueleto de barras de aço e concreto armado (foto 6).
Foto 6
O mesmo podemos ver nesse templo Rosacruz na avenida Rodrigues Alves: colunas que não possuem função nem arquitetônica e nem de engenharia – signos para conferir um aspecto de “antiguidade” e “dignidade” (foto 6).

Bunker ou laboratório? Casa de Colchões ou balada?


Passando pela avenida Afonso Pena, nos deparamos com um laboratório de análises clínicas... ou um bunker... ou uma dessas firmas de segurança privada e de entrega de valores de onde saem carros-forte? (foto 7).

Foto 7
Também nessa loja de colchões, uma confusão de signos: vidros em fumê e tons escuros contrastando com áreas amadeiradas lembram a entrada de alguma casa noturna ou “balada”... só falta uma promoter ou um “leão de chácara” na entrada! (foto 8).

Foto 8

Estética do desaparecimento


O pensador e urbanista francês Paul Virilio definia como “estética do desaparecimento”, uma estética urbana resultante da aceleração da visão motorizada: a arquitetura desaparece por trás de fachadas e mídias feitas para visualização rápida de um olhar em travelling.

Por exemplo, uma oficina mecânica esconde-se por trás de um outdoor? Ou uma imensa placa (“Centro Comercial”) esconde algum empreendimento não identificável? Para aumentar a confusão semiótica, parasitariamente uma outra placa nos “informa” a existência de uma escola à frente seguindo pela esquerda (foto 9).

Foto 9

Ou ainda a gigantesca placa de um comércio de carros usados possui praticamente as mesmas dimensões de um outdoor vizinho que esconde um comércio de tapeçaria. Um exemplo de como o caos semiótico santista inviabiliza a própria função de informar: o outdoor confunde-se com uma placa de fachada comercial, criando, mais uma vez, contaminação metonímica: onde termina o outdoor e onde começa a placa de uma fachada comercial? (foto 10).

Foto 10

Mais semiótica mimética...


O comércio é de “Gastronomia e Eventos”, mas a fachada toda em preto e tons escuros com uma imagem estilizada dominante. Para um observador “em travelling” a fachada confunde-se com uma cafeteria – estética dominante nas cafeterias do bairro nobre do Gonzaga. A panela estilizada confunde-se com uma xícara de café (foto 11).

Foto 11

É um Pet Shop, um Buffet infantil ou uma escola infantil?


Outra faceta curiosa desse caos semiótico é como se assemelham as fachadas desses negócios. Desenhos com o mesmo tipo de traço e estilo, a mesma paleta de cores, a casa pintada com a cor da mesma paleta da placa de fachada. Os temas são os mesmos: bichinhos, crianças e natureza fofinha. A semelhança de layout e estética como esses temas são representados acaba criando essa curiosa contaminação (foto 12).

Foto 12
Mas o ápice dessa semiótica mimética é o Colégio Presidente Kennedy/Walt Disney. Deixando de lado as duvidosas conexões entre Walt Disney e a Pedagogia e Educação, o visual é um estranho mix de colégio e parque temático da Disneylândia, com direito a uma espécie de castelo da Bela Adormecida estilizado no interior do complexo (foto 13).

Foto 13
A escola emula um parque temático, ou vice-e-versa?

Parques temáticos e pastiche


O caos semiótico santista produz ainda outros curiosos episódios. Como um gigantesco polvo que escala a lateral de um imenso condomínio residencial na Ponta da Praia. Parece que estamos diante de um filme de horror sci fi B dos anos 1950... só que colorido (foto 14).

Foto 14
Um condomínio residencial na orla tem que reforçar sua característica “litorânea”, assim como os pilares fake rosacruz tentam saturar a ideia do “antigo”. Estamos no paraíso dos parques temáticos, onde tudo deve ser saturado, exagerado.

Ou a livraria que, para reforçar a sua “internacionalidade”, constrói em sua fachada um bizarro mini Big Ben de Londres (foto 15).

Foto 15
E no final, a colcha de retalhos do pastiche: uma loja de móveis chama-se oriental mas o estilo da fachada, com seus telhados triangulares, lembra alguma vila alemã, Alpes ou Campos de Jordão – essa cidade já é uma estilização, cópia da cópia de cartões postais europeus (foto 16).

Foto 16

Ou a duas quadras da praia, ergue-se uma torre residencial com o eloquente nome “La Grande Maison” com uma grande fachada em mármore branco, duas gigantescas portas pesadas em madeira nobre escura num pastiche vitoriano, art noveau, neoclássico e com mais pilares fake – tudo a ver com uma Rua Alexandre Martins, a poucos metros da praia. Pelo menos tenta amenizar a bizarrice com coqueiros ornamentais, para dar um toque “praiano” (foto 17).

Foto 17

Pelos menos, do outro lado da rua há uma fonte do Rei Poseidon e seu tridente ladeado por sereias, na entrada do Shopping Miramar – o shopping que também emula um parque temático com uma “estátua” com gosto muito duvidoso. Mais uma vez o pastiche: uma estátua artificialmente envelhecida ou desgastada (a saturação icônica da “antiguidade”) com a base da fonte em design  modernista “clean” (Foto 18).

Foto 18

Poluição visual ou caos semiótico?


Tramita na Câmara da cidade uma Lei Complementar do Executivo semelhante à Lei Cidade Limpa de São Paulo. Mas, se for correta a hipótese de que a poluição visual santista não meramente por adição ou excesso, mas pelo caos semiótico, então uma simples regulamentação municipal não resolverá.

Há um fator cultural na cidade que deve ser confrontado: euforia com as tecnologias de computação gráfica (provincianismo?) que acabaria criando uma padronização estética – quem não se lembra nos anos 1990 com a euforia dos efeitos do CorelDraw? O resultado era a padronização: tudo tinha cara de CorelDraw!

Ou o caos semiótico é um fenômeno generalizado da sociedade das imagens e, numa cidade como Santos, tudo ficaria mais explícito – por ser uma cidade pequena e desprovida de “álibis” artísticos que racionalizariam esse caos semiótico, tal como ocorre nas cidades maiores e culturalmente mais, por assim dizer, "cosmopolitas".

De qualquer forma, um caos onde o signo perde a sua função informativa ou de sinalização, tornando supérflua todas as mídias visuais. E os comerciantes pagam por algo que não funciona: a transformação da arquitetura em cenografia.

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No filme "O Novíssimo Testamento" Deus não morreu - apenas se tornou inútil

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Deus existe, e ele está em algum lugar em Bruxelas. Arrogante e grosseiro, passa os dias digitando em um computador ultrapassado regras para tornar a vida de todos um inferno. Mas o que ninguém sabe é que Ele tem uma filha que está decidida a ser mais bem sucedida do que seu irmão, Jesus – libertar a humanidade do jugo de um Demiurgo através do Novíssimo Testamento. Esse é o filme “O Novíssimo Testamento” (Le Tout Nouveau Testament, 2015) do belga Jaco van Dormael, uma comédia de humor negro blasfema, herética mas, principalmente, gnóstica: se soubéssemos o momento exato da nossa morte, paradoxalmente viveríamos melhor a vida que nos resta, sem o medo do caos e do aleatório que impedem o nosso livre-arbítrio. Para Van Domael, Deus não morreria, mas se tornaria inútil.

O que faria o leitor se soubesse o dia, a hora e o minuto exato da sua morte? Continuaria levando a vida normalmente cumprindo seus deveres e reponsabilidades à espera do fim? Ou mandaria tudo às favas e realizaria tudo aquilo que seus deveres e responsabilidades não deixavam?

Mas quem enviou essa informação tão precisa e perturbadora? Uma pessoa que teve acesso ao computador de Deus, roubou as informações e, por vingança, as enviou para todos os celulares do planeta via mensagem SMS.


E essa pessoa é nada mais do que a desconhecida filha pré-adolescente de Deus (sempre lembramos apenas  de Jesus) que tem um plano para se libertar do jugo do seu Pai: voltar à Terra e escrever O Novíssimo Testamento. Mas desta vez, e diferente de Jesus, sem morrer antes e ter controle total sobre a sua obra.

Esse é o novo filme do diretor belga Jaco Van Dormael (Sr. Ninguém, 2009) que a crítica especializada vem definindo como uma “comédia blasfema”. O que para o Cinegnose significa uma comédia gnóstica. Se no filme Sr. Ninguém as referencias gnósticas eram altamente simbólicas onde o protagonista lutava contra o aleatório que interferia no livre arbítrio, em O Novíssimo Testamento a visão gnóstica sobre Deus e a Criação é bem mais explícita.


Deus existe é Ele mora recluso em algum lugar em Bruxelas. Rabugento, abusivo, desbocado e vingativo vive diante a tela de um computador ultrapassado controlando a vida da humanidade e sempre preocupado em evitar que os humanos tenham ideias de “fugir de toda a merda”.

Os temas como Livre-arbítrio, Determinação e o Tempo desenvolvidos de forma simbólica e filosófica em Sr. Ninguém, em O Novo Testamento são expostos de forma direta e ironicamente divertida – se nascimento e morte são maquiavelicamente determinados por Deus em um computador, quando o homem tiver em suas mãos essas informações então poderá se libertar de toda dor e sofrimento impostos pela sociedade e ter a vida em suas próprias mãos.

Então, Deus não morrerá: apenas se tornará uma ideia inútil.

O Filme


Sobre Jesus, filho de Deus, todos nós sabemos a história: veio para esse planeta para falar de um novo Deus, capaz de compaixão, perdão e amor, diferente do Deus de Moisés – onipotente, vingativo e castigador. Foi assassinado pelos romanos no meio da sua missão e ficou para os apóstolos o trabalho de interpretar a mensagem de Jesus.

Mas ninguém conhece a história da filha de Deus (chamada Ea - Pili Groyne) que vive com seu Pai em um sombrio apartamento em Bruxelas com a sua mãe (simplesmente chamada de “Deusa”) e as memórias do falecido irmão, transformado em pequeno adereço decorativo sobre um móvel que, vez ou outra, ganha vida e estimula sua irmã em seus planos de se libertar do Pai.

Ea é uma clara alusão ao mito gnóstico de Sophia ("Sabedoria"): aquela que caiu sob o jugo do Demiurgo, mas que secretamente procura ajudar o homem ao lembrá-lo que dentro dele está a Luz que o conecta à Plenitude.

“Não tenha ideias loucas como o seu irmão”, ameaça Deus grunhindo para Ea enquanto arrasta seus chinelos e um sujo roupão.


Deus (Benoit Poelvoorde) passa o dia intencionalmente criando regras em seu computador para tornar a vida dos humanos mais miserável – a fatia de pão sempre cairá com o lado da geleia para baixo, sempre a outra fila andará mais rápida do que a sua ou um aborrecimento nunca vem sozinho. Deus brinca com maquetes de trens e cidades provocando acidentes e se divertindo com tudo.

E Deus maquiavelicamente se delicia vendo as pessoas tropeçando em suas regras e tornando tudo um inferno ainda maior.

Machista, Deus também torna um inferno a vida da sua esposa (Yolande Moreau - uma doce e simples dona de casa que faz bordados e coleciona cartões de beisebol) e da sua filha. Mas Ea tem um plano para se vingar do Pai e de ser mais bem sucedida do que seu irmão, Jesus. Ea invade a sala de controle, acessa os arquivos no velho computador e envia para cada um no planeta sua data exata da morte.

A princípio todos acham que é alguma brincadeira de algum hacker, mas quando todos começam a ver as pessoas morrerem (e sempre de uma maneira engraçada) logo percebem que é tudo verdade.

As pessoas então começam a mudar radicalmente suas vidas, decidindo realizar seus projetos mais secretos nunca permitidos pelo deveres da vida: um sabe que tem ainda 20 anos para viver e decide deixar de ser medroso e começa a pular de prédios, aviões e precipícios. Sempre é salvo das maneiras mais engraçadas e inusitadas, porque sabe que não morrerá.

Outro decide passar o resto dos dias fazendo um Titanic com palitos de fósforos. Em todos há um efeito inesperado: deixaram de ter medo e deixaram de ter interesse em Deus.

O Novíssimo Evangelho


Ea decide escolher aleatoriamente seis pessoas para ouvir seus evangelhos, enquanto um sem-teto redige o Novíssimo Testamento: Catherine Deneuve decide mandar o marido embora e colocar um gorila do zoológico na sua cama, um menino de dez anos que decide viver o resto de seus dias como menina etc. De cada um deles Ea vai extraindo frases que a princípio parecem banalidades retiradas de algum guru de autoajuda.


Mas aos pucos Ea e seus novos discípulos acabam criando uma nova ordem social, bem mais agradável e sem o medo dos castigos divinos.

Mas Deus está irritado e vem atrás de Ea nas ruas de Bruxelas para descobrir que é incapaz de cuidar de si mesmo e ser vítima das próprias regras arbitrárias que criou para infernizar a Criação.

O filme é uma pequena fábula otimista e gnóstica cuja narrativa anárquica lembra um mix dos filmes de Terry Gilliam e Michel Gondry e com muito humor negro ao estilo Monty Python.

A grande “blasfêmia”


A grande “blasfêmia” de O Novíssimo Testamentoé a moral gnóstica implícita: se o homem tiver o conhecimento, então Deus se tornará uma ideia inútil – a Criação será vivida agora em termos humanos e não mais pelo arbítrio de um Demiurgo.

Jaco van Dormael não deixa pedra sobre pedra – até o destino trágico do filho Jesus poderia ter sido uma conspiração do próprio Pai para que suas “ideias malucas” não inspirassem a humanidade a se livrar das milhares de regras que diariamente Ele digita em seu computador.

O tema da morte e da fatalidade do Tempo, discutido filosoficamente no sci fi Sr. Ninguém, aqui é tratado sem rodeios: tudo foi obra de um Demiurgo enlouquecido que não quer aceitar sua obsolescência. Apesar disso, se auto-idolatra (a linha de diálogo em que Deus desabafa em alívio dizendo “Eu seja louvado!” é impagável) e passa os dias se gabando da sua Criação para sua esposa submissa e sua filha cada vez mais inconformada.


A virtude do filme é não deixar a narrativa cair no puro solipsismo: se cada um decidisse fazer o que bem entendesse, acabaria toda a sociabilidade e cultura. Mas não é isso que ocorre. A questão principal para Van Dormael é o livre-arbítrio: o poder de cada um decidir em que termos vai conduzir sua própria vida sem medo e restrições impostas por um Demiurgo – seja de natureza divina ou sócio-econômica como instituições e corporações.

Deus e Iphones


Também há um evidente comentário sobre as relações atuais entre o homem e a tecnologia: no filme as pessoas se conectam ao Divino por meio dos seus Iphones. Neles está a contagem regressiva para a morte.

Se o leitor assistir ao filme perceberá o olhar irônico de Van Dormael para a tecnologia – Deus se tornou tão ultrapassado quanto o sistema operacional DOS que roda no Seu computador. E os Iphones substituíram a necessidade do Divino. No filme essa substituição é concebida de maneira otimista como se a vida pudesse ser reiniciada como o sistema operacional do celular ao baixar uma nova versão.

Aqui temos um secreto simbolismo alquímico: através da tecnologia (a Alquimia) imitar o processo divino da Criação para, então, encontrar Deus dentro de cada um de nós. Dessa maneira, a ideia de Deus se tornaria inútil no Novíssimo Testamento.


Ficha Técnica


Título: O Novíssimo Testamento
Diretor: Jaco van Dormael
Roteiro: Thomas Gunzig, Jaco van Dormael
Elenco:  Pili Groyne, Benoit Poelvoorde, Catherine Deneuve, Yolande Moreau
Produção: Terra Incognita Films, Climax Films
Distribuição: LAT-E
Ano: 2015
País: Bélgica/França

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Três evidências de que o zika vírus é uma "Operação Pandemia" midiática

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Fica cada vez mais evidente que a grande mídia possui uma pauta pré-estabelecida e que ciclicamente ela é “enriquecida” com a, por assim dizer, "Pandemia da Temporada": SARS, Gripe Aviária, Gripe Suína, Ebola... e agora a pandemia Zika. Com o terrível surto de casos de nascimentos de bebês com microcefalia. Apesar de estudos científicos contrários, a mídia e Governo se apressam em estabelecer ligação inequívoca entre o zika e os casos de má formação. Evidências contrárias são imediatamente rotuladas como “teorias conspiratórias” diante da inquestionável “emergência sanitária internacional”. A Crise Zika seria mais uma “Operação Pandemia” midiática?  O objetivo dessa suposta operação seria esconder da opinião pública três outros fatos envolvidos na Crise Zika: o uso intensivo de pesticidas, a vacina TdaP e mosquitos geneticamente modificados.

Desde que o ano iniciou, o jornalismo da grande mídia brasileira parece engessado em uma pauta recorrente de cabo a rabo da sua programação diária: no Brasil, Operação Lava-Jato, corrupção e crise econômica; no Exterior, a catástrofe econômica da Venezuela (que substitui a da Argentina, agora supostamente rediviva após a vitória de Macri), o combate anti-terrorismo e a crise dos refugiados na Europa – o que para a pauta “investigativa” dos correspondentes no velho continente, sempre apressados em buscar “conexões”, terroristas e refugiados quase sempre são a mesma coisa.

 Uma pauta pré-estabelecida e urgente, que obriga os jornalistas a correrem atrás de notícias que a alimente. Na pressa ocorrem as inevitáveis “barrigas” como a mais recente: portais brasileiros (UOL, VOX Internacional etc.) noticiaram uma suposta declaração da ministra da Saúde da Venezuela de que as pastas de dentes estariam faltando no país devido ao insistente hábito da população de escovar os dentes três vezes ao dia.


Na verdade a “notícia” partiu de um site de humor venezuelano, que estressados jornalistas brasileiros leram como verdadeira pela imperiosa necessidade diária de alimentar a pauta e agradar seus editores-chefes.

Mas essa pauta engessada é também “enriquecida” por um tema que periodicamente visita as reuniões dos editores-chefes em seus “aquários”: a Pandemia da Temporada.

As pandemias de cada temporada


Só nesse século, as redações da grande mídia já foram visitadas pela SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome) que ameaçou espalhar-se da China para o mundo entre 2002 e 2003; a Gripe Aviária, onde novamente um surto asiático ameaçava espalhar-se para o mundo (2005); Gripe Suína, onde médicos midiáticos viravam do avesso na TV para tentar diferenciar dos sintomas de uma gripe comum (2009); Ebola, dessa vez a África ameaçando o mundo (2014); e agora o Zika Vírus.

Em todas essas pandemias, a OMS (Organização Mundial de Saúde) se apressa em decretar “emergência sanitária internacional” e a grande mídia em fazer previsões sobre milhões de vítimas potenciais aguardadas em poucos meses.

Por exemplo, o jornal Folha de São Paulo em 2009 antecipou-se em seu espírito patriótico de alertar a nação e, na primeira página, estampou números alarmantes – 53 milhões de brasileiros seriam atingidos pela gripe suína em dois meses, com 4,4 milhões hospitalizados. Nada disso se realizou.


De onde jornalistas tiram notícias?


Mas os jornalistas não tiram isso das suas cabeças estressadas: baseiam-se em digestos de revistas científicas sobre pesquisas em andamento e modelos matemáticos usados por ministérios da Saúde. Eliminam o contraditório, extrapolam os números, destacam números relativos e ignoram os absolutos e temos a Pandemia da Temporada.  


Um exemplo é como a cada final de semana, jornais e revistas alertam os incautos leitores sobre a descoberta de novas “doenças”. Em 20/08/2006 a Folha colocou na primeira página da edição de domingo “Pesquisa liga vírus a obesidade” – a obesidade poderia ser também contagiosa! No meio do texto explicava-se que as pesquisas nos EUA “não eram conclusivas”. Mesmo assim mereceu primeira página e nada mais se falou a respeito.

Diante desse modus operandimidiático, fica difícil não ficar com um pé atrás diante de mais esse fenômeno de “urgência sanitária internacional” alertado pela grande mídia, dessa vez sobre o zika vírus.

O que chama a atenção é como a grande mídia e o Ministério da Saúde rapidamente estão confirmando a associação entre o aumento de casos de microcefalia com o zika. Um vírus que existe desde antes de 1948 e que nunca foram relatadas quaisquer conexões com nascimentos e mortes. O histórico do efeito do vírus é que uma em cada cinco pessoas sempre apresentaram leves sintomas de gripe comum.

O fato é que desde novembro de 2015, 4.000 bebês nasceram com microcefalia no Brasil, país que normalmente apresenta 150 casos dessa má-formação em cada ano. Assombroso aumento de 13 mil por cento. Rapidamente culpa-se a zika vírus transmitido pelo Aedes Aegypti, espécie dominante no mundo dos mosquitos.

Médicos e repórteres investigativos independentes como Jim Stone, Dr. Kathy J. Forti, Jim West e Jon Rappoport, além de artigo na revista científica Nature dos pesquisadores Ieda Orioli e Jorge Lopez-Camelo vêm questionando essa conexão – diagnósticos errados e o impacto midiático poderiam ter aumentado a atenção ao problema de má formação – clique aqui. Previsivelmente, são contestados por órgãos internacionais e governo brasileiro e ganham pouquíssimo espaço nos veículos noticiosos.

O Cinegnose apresenta abaixo três evidências apontados pelos autores acima, levantando suspeitas de que poderíamos estar diante de mais uma “Operação Pandemia” com o objetivo de esconder efeitos perversos de vacinas, interesses de grandes laboratórios e políticas de controle populacional em países emergentes – sempre tendo em vista que os setores de armamentos, farmacêutica e tabaco são os que mais investem em táticas de agenda setting para pautar a mídia mundial.


1. Uso de pesticidas no Brasil


Apontado como centro da crise zika (o zika teria chegado ao país com turistas asiáticos na Copa de 2014 – sempre os asiáticos...), o País usa mais pesticidas do que qualquer nação do planeta. Muitos deles proibidos em 22 outros países. Aqui está um trecho  de um artigo da Environmental Health Perspectives de 01/07/2011 “Urinary Biomarkers of Prenatal Atrazine Exposure”:
“A presença versus ausência de níveis quantificáveis do pesticida atrazine ou um metabólito atrazine específico foi associado à restrição do crescimento fetal... e redução do perímetro cefálico... O perímetro cefálico foi também associado à presença do herbicida metolacloro”.

Atrazina e metolacloro são ambos usados no Brasil.


2. A vacina TdaP


No final de 2014 o ministro da Saúde anunciou que a vacina TdaP (contra coqueluche acelular reduzida, tétano e difteria toxicoide) em gestantes seria obrigatória a partir de 2015.

Em 2011 o CDC (Centro de Controle de Doenças) não conseguiu provar que o uso da vacina era seguro durante a gravidez. Na verdade, a TdaP é classificada pela FDA como droga de Classe C, indicando que não é uma escolha segura durante a gravidez como informa o National Vaccine Information Center: testes adequados ainda não teriam sido feitos com humanos para demonstrar a segurança em mulheres grávidas e nem totalmente avaliados os efeitos adversos potenciais genotóxicos.

O que nos leva a Bill Gates, conhecido como um entusiasta das vacinas, eugenia e controle populacional seletivo. Em 2015 a Fundação Bill & Melinda Gates doou 307 mil dólares para o Programa de Pesquisa de Vacinas Vanderbilt para estudar a resposta das mulheres grávidas ao TdaP. Mas não houve nenhum dado publicado dessa suposta pesquisa.

O aumento de casos de microcefalia no momento em que a TdaP foi implementada em mulheres gravidas brasileiras será mera coincidência? As consequências dessa vacina estariam sendo varridas para debaixo do tapete da “Operação Pandemia”? E agora laboratórios dos EUA estão implementando estudos para o desenvolvimento de uma vacina para o zika. Mais vacinas lucrativas? Laboratórios criam primeiro a doença para depois venderem a cura?


3. Mosquitos geneticamente modificados


Em parceria com municípios brasileiros, a empresa britânica Oxitec, com unidade em Campinas/SP (Mais uma vez, financiada pelo eugenista Bill Gates), vem desenvolvendo pesquisa com mosquitos geneticamente modificados para combater a dengue.

A hipótese científica: mosquitos transgênicos que, quando cruzam com as fêmeas selvagens, geram descendentes que morrem antes de chegar à fase adulta, diminuindo, portanto, a população de insetos adultos. Esses insetos geneticamente modificados não picam, não colocam ovos e nem transmitem a doença.

Em abril do ano passado a Oxitec recebeu aprovação da CNTBios do Ministério da Ciência e Tecnologia brasileiro para a liberação comercial dos mosquitos geneticamente modificados.

Os testes começaram em 2011 em Juazeiro/Bahia e em 2015 se estenderam para Piracicaba/SP.

O Dr. Kathy Forti e outros investigadores rotulados como “teóricos da conspiração” acusam que por trás dessas pesquisas não há ciência, apenas “garantias tranquilizadoras”. Não haveria nenhuma maneira de dizer que elementos tóxicos esses mosquitos transgênicos poderiam estar abrigando, além daqueles que os pesquisadores da Oxitec afirmam.

Suspeitam que em vez de neutralizar a potencialidade nociva do mosquito transmissor da dengue, essa mutação genética traria novas doenças para os brasileiros.


Forti é mais enfático: notoriamente adepto das vacinações forçadas e controle populacional seletivo, Bill Gates teria a realização do seu projeto que vem trabalhando desde 2003 -  mosquitos geneticamente modificados produziriam a necessidade de vacinas uma vez libertados no ambiente. Gates é um forte defensor da tese do controle populacional através de vacinação em massa como solução para as pandemias – leia “With Vaccines, Bill Gates Changes The World Again” in Forbes 02/11/2011.

Sem falar que toda essa experimentação em larga escala ocorreria em grandes populações que sequer foram consultadas. Tudo sendo feito através do governo e editais corporativos. “Experimentação humana em larga escala”, acusa também Jon Rappoport da Activist Postclique aqui.

Operação Pandemia


Todas essas suspeitas são reforçadas pelo documentário da TV espanhola Operação Pandemia (2009) que na oportunidade apontava uma estranha “coincidência”: por trás do processo de produção da vacina Tamiflu para combater a pandemia da gripe suína (que nunca aconteceu) estava Donald Rumfeld, que foi secretário de Estado da Defesa do governo Bush, membro da direção da Biofarmacêutica Gilead Science (detentora da patente do Tamiflu) desde 1968 e que se tornou presidente da companhia ao fazer um acordo com a Roche para fabricar e distribuir a vacina até 2016. Ao lado da histeria midiática da suposta pandemia da gripe suína, o Tamiflu era apontado como a única cura para o vírus H1N1 – assista ao vídeo abaixo e reflita.

Não esqueçamos que os Jogos Olímpicos do Rio estão chegando. Há vários cenários possíveis que poderiam ser criados para serem exibidos a uma audiência de TV global atemorizada. O zika vírus como uma pandemia mundial e uma vacina magicamente descoberta no auge da crise sendo produzida às pressas.

O medo induz à conformidade cega a ordens médicas e governamentais com uma gigantesca estrutura de companhias biofarmacêuticas por trás. Um vírus transformado em micro-terrorista, personagem perfeito para a atual pauta da grande mídia – a ameaça constante do terrorismo e de refugiados sujos, feios e malvados.


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Curta da Semana: "O Sanduíche" - e no final do abismo tinha um sanduíche

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Brilhante jogo de “narrativa em abismo” (um filme dentro de outro filme e dentro de outro filme e assim por diante), o curta “O Sanduíche” (2000) do brasileiro Jorge Furtado quer trazer o espectador dos simulacros da tela para a realidade de um set cinematográfico – o que um espectador acostumado a ver os filmes prontos na sala do cinema acharia de ver ao vivo o filme sendo produzido no próprio set de filmagem? É o que Furtado propõe: cair em um abismo narrativo até encontrar no final um prosaico sanduíche.

Jorge Furtado é sem dúvida o cineasta brasileiro que mais profundamente explorou a linguagem do formato curta-metragem. Ilha da Flores (1989) é o curta mais lembrado do cineasta e o mais visto na história do cinema brasileiro – considerado pela crítica europeia um dos 100 curtas mais importantes do século passado.


Em 2000 Jorge furtado lançou o curta O Sanduíche, unindo experimentalismo e simplicidade e iniciando a sua temática documental e metalinguística sobre as mídias que iria desenvolver de forma cômica nos longas Saneamento Básico(2007, analisado pelo blog, clique aqui) e séria em O Mercado de Notícias (2014) sobre as mazelas do jornalismo brasileiro atual.

O curta O Sanduícheé um exercício que em narrativa cinematográfica chama-se “narrativa em abismo”: um filme dentro de outro filme e dentro de outro filme e assim por diante. Curta instigante: imagens que, como se estivessem projetadas num espelho, refletem outras imagens de si mesmo.


O curta começa com uma singela cena de separação, que revela-se ser outra coisa. Sempre o final de alguma coisa é o início de outra – encontros, separações e descobertas que procura levar às últimas consequências o princípio metalinguístico de filmes dentro de filmes: um ensaio de uma peça de teatro revela-se um filme dirigido por outro ator que está em outro set de filmagem sendo dirigido por outro até tudo se converter em documentário onde espectadores dão depoimentos sobre porque gostam do cinema.

O Sanduíche vai além da dualidade ficção e realidade, mas como esses dois planos se confundem e se refletem até se tornarem uma coisa só. Percebemos a desconstrução não só da técnica cinematográfica (diretor, gruas, câmeras, refletores, cenários etc.) mas também da própria atuação do ator – não sabemos mais quando vemos o personagem representado por um ator ou um ator possuído pelo personagem.

O curta possui duas características presentes nos filmes gnósticos: a ironia e o multifacetamento da realidade – a realidade como um constructo artificial  que se abre em múltiplos níveis, ao estilo de filmes como O Décimo Terceiro Andar (1999), O Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006) ou Um Sonho Dentro de Um Sonho – Slipstream, 2007. Este último, mais próximo da proposta de Jorge Furtado – onde um roteirista é contratado para reescrever um filme de mistério e real, o roteiro, a mente e a filmagem do filme que o protagonista roteiriza e do próprio filme que assistimos se confundem – sobre o filme clique aqui.


Porém, falta um elemento decisivo que tornaria o curta O Sanduíche uma narrativa gnóstica: a angústia de que perdemos a relação plena com a realidade, a desconfortável sensação de hiato entre homem/mundo e, o mais importante, a situação dos protagonistas prisioneiro em um desses mundos sem saber a existência dos demais – cuja descoberta levaria à gnose. Ou no caso do curta de Furtado, uma bizarra experiência dos personagens presos em um dos filmes e se deslocando esquizofrenicamente pelos outros filmes, produzindo estados paranoicos ou alterações de consciência.

O curta é muito mais um brilhante jogo formal, uma homenagem não só ao cinema como também a transição da cena do teatro para a cena cinematográfica. E também uma desmistificação do próprio cinema: os espectadores no final não assistiram ao curta, mas a filmagem (a captação de imagens no set) do curta. O que é decepcionante para o espectador médio, acostumado a ver o resultado final no cinema: “chato”, “repetitivo”, “não sabia que demorava tanto”, são algumas percepções das pessoas que viram no set o curta sendo produzido.

No final, Jorge Furtado quer trazer o espectador para a realidade: dos simulacros da tela onde tudo é espelho refletindo outro espelho, cópia da cópia, reflexo de outro reflexo, o curta quer nos conduzir para a mesma realidade onde está o sanduíche – o único elemento do filme que se mantém constante, está sempre lá atravessando todos os planos ficcionais.

E lá no final dessa narrativa em abismo, está a realidade e um sanduíche.


Ficha Técnica


Título: O Sanduíche
Diretor: Jorge Furtado
Roteiro: Jorge Furtado
Elenco:  Janaina Kremer Mota, Felipe Mônaco, Nélson Diniz, Milene Zardo
Produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
Distribuição: Case de Cinema de Porto Alegre
Ano: 2000
País: Brasil

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Platão se encontra com Tarantino no documentário "The Wolfpack"

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O leitor deve lembrar da alegoria da Caverna de Platão, diálogo filosófico sobre a condição humana prisioneira de imagens simulacros do mundo real. Na inacreditável história contada pelo documentário “The Wolfpack” (2015, disponível no Netflix) de Crystal Moselle, essa alegoria deixa de ser uma tese filosófica para se tornar real: o que aconteceria se o homem conseguisse sair da caverna de Platão e olhasse a realidade? Sete irmãos cresceram presos pelos seus pais em um apartamento em Nova York. Sem sair às ruas tinham o cinema hollywoodiano (e principalmente filmes do Tarantino, seus favoritos) como o único contato com o mundo exterior e passavam os dias reencenando sequências dos filmes – montavam cenografias e fantasias com papelão de caixas de cereais. O apartamento tornou-se uma caverna midiática e quando finalmente se libertaram, conseguiram ver a realidade apenas a partir das referencias cinematográficas.

Na antiguidade o filósofo Platão acreditava que se o homem conseguisse sair da caverna de onde era prisioneiro, a luz do mundo lá fora e do fogo que projetava os simulacros na parede seria tão intensa que iria ferir os olhos, e ele não poderia ver bem.

Muitos pensadores falam que a caverna de Platão atual é a midiática e que, mesmo se conseguíssemos tentar ver o mundo real desligando todos os equipamentos elétricos e eletrônicos, ainda assim veríamos as coisas a partir das referencias do mundo das imagens que persistem em nossas mentes.


Pois essa discussão deixou de ser meramente filosófica ou hipotética, desde que a documentarista Crystal Moselle acidentalmente encontrou na First Avenue em Nova York um grupo de rapazes com cabelos compridos, óculos escuros, ternos e gravata pretas com camisas brancas. Como se tivessem saído de algum filme de Tarantino, Cães de Aluguelou Pulpy Fiction.


Então Moselle perguntou se eram irmãos e disseram que moravam a poucas quadras. Ela estranhou porque nunca os tinha visto por ali. “Um deles perguntou-me em que trabalhava, disse que era cineasta e responderam que gostariam muito de trabalhar na indústria do cinema”, lembrou Crystal Moselle.

Dessa maneira começou a produção de The Wolfpack, documentário sobre a inacreditável história da família Angulo, cujos filhos passaram a vida toda trancada pelos pais em um apartamento em plena Manhattan. Foram educados em casa pela mãe e quase não saiam às ruas (no máximo duas vezes no ano em saídas monitoradas), proibidos pelo pai que temia as influências da sociabilização nos filhos numa cidade como Nova York.

O único contato que os irmão (hoje com idades entre 16 e 24 anos) tinham com o mundo na medida em que cresciam era a visão da cidade pelas janelas do apartamento em um andar elevado e através dos filmes de Hollywood. Distantes da sociedade, os filmes passaram a ser a única referencia do mundo exterior – assistiram cerca de 5 mil filmes da coleção do pai, que depois eram reencenados no apartamento. Entre os favoritos estavam Pulp Fiction e Cães de Aluguel.

Foi numa dessas saídas monitoradas pelo pai que Moselle os descobriu para realizar um documentário sobre uma verdadeira experiência involuntária comportamental e cognitiva. Um verdadeiro reality show muito diferente dos isolamentos fakes de programas do gênero como Big Brother ou A Fazenda. Ou até mesmo o Na Real, primeiro reality show da história da TV feito pela MTV em 1992 centrado em um apartamento com jovens na mesma cidade de Nova York.


The Wolfpack mostra como seria na atualidade o desfecho da narrativa da alegoria da Caverna de Platão, dessa vez com uma família real e numa das cidades mais filmadas e fotografadas do mundo.

O Filme


O pai Oscar Angulo conheceu sua esposa, a norte-americana Susanne, em uma visita ao Peru. Ele era guia de turistas em Machu Pichu, adepto da religião Hare Krishna e um hippie fundamentalista. Ela, também uma fundamentalista religiosa do Meio Oeste dos EUA. Por trajetórias filosóficas diferente, ambos rejeitavam os valores consumistas da sociedade. Se casaram, foram para Nova York “ganhar algum dinheiro” – ele não queria trabalhar para não “servir o sistema” e Susanne recebia ajuda do Estado como mãe licenciada para dar aulas em casa. Lá, Oscar achou ser um “iluminado” e, assim como o Deus Krishna, deveria ter 10 filhos e isolá-los de um mundo corrompido e que aprisiona todos.

Porém, The Wolfpack não conta essa história de forma cronológica. O espectador deverá estar atento aos depoimentos dos irmãos – todos doces, suaves e com uma tristeza em seus olhos. Principalmente os mais velhos. “Éramos crianças assustadas... essa é uma das primeiras lembranças que tenho”, diz o Angulo mais velho e o mais crítico: ele jamais perdoará o que o pai fez com todos.

Aqui e ali nos depoimentos percebemos pequenas frases que denotam algo de sombrio e doentio nas relações – há sugestões de que o pai bebia muito, batia na esposa e mantinha a família (ou a “tribo” como se referia o pai Oscar) junta pelo medo do mundo exterior.


 O documentário mistura entrevistas com cada membro da família com imagens dos vídeos caseiros em VHS mostrando flagrantes de como era a vida enclausurados naquele apartamento. Vemos como os meninos reencenavam cenas de filmes como O Cavaleiro das Trevas e Cães de Aluguel– com papelão das caixas de cereais construíam elaboradas cenografias, fantasias e máscaras como a do Batman. Copiavam as linhas de diálogo dos vídeos VHS e DVDs, transformavam em roteiros e produziam as cenas.

Um documentário irônico


Na medida em que The Wolfpackavança tudo fica cada vez mais irônico: o pretexto da clausura é mantê-los longe da contaminação por uma sociedade doentia, mas ironicamente os filhos formam a percepção do mundo exterior através de filmes hollywoodianos violentos – eles constroem armas detalhadas em papelão para re-encenar sequências dos filmes e fantasias realistas de Freddy Kruger e Jason.

Outro ponto interessante é a fixação dos irmão pelos filmes do diretor Quentin Tarantino, o que é outra ironia: seus filmes são verdadeiros pastiches – colcha de retalhos de estilos e referencias cinematográficas de diversas épocas: western clássico, western spaghetti, kung fu, dance music dos anos 70 etc. Se a referencia do mundo através do cinema já é desde o início por meio de signos, em Tarantino já é pelo simulacro: signos que copiam outros signos, cópias da cópia.

Literalmente acompanhamos a família construir naquele apartamento a moderna caverna platônica: cenografias de segunda mão feitas com papelão e restos de embalagens que imitam o que já eram imitações.


Grande parte de The Wolfpack descreve como os meninos aos poucos começam a se sentir ressentidos com o pai, e, principalmente o mais velho, a se rebelar e aos 15 anos ultrapassar a porta do apartamento sem dar satisfação a ninguém. Moselle vai descrevendo como aos poucos todos vão emergindo da prisão.

Ver o mundo a partir do cinema


Nesse ponto, The Wolfpack fica filosoficamente interessante: do campo da hipótese filosófica de Platão passamos para um caso com personagens vivos que saem para a realidade depois de crescerem imersos em uma caverna de simulacros midiáticos. O resultado é instigante: com medo e inseguros consigo mesmos, olham para praças, pessoas, a praia etc. a partir das referencias visuais que deixaram no apartamento dos pais. Quando veem as árvores comparam com as do filme Senhor dos Anéis, diante do mar, assustados, decidem na moeda quem vai entrar “assim como o Duas Caras no filme Cavaleiro das Trevas”, além das diversas cenas nas ruas que associam a filmes como Homem Aranhaou Os Bons Companheiros.


E, claro, saem nas ruas como Mr. Pink, Mr. Orange e Mr. White personagens do filme Cães de Aluguel.

E a culminância da ironia: os sete irmão foram assistir a exibição de The Wolfpack no Festival Sundance. Eles que cresceram prisioneiros assistindo a milhares de filmes como único contato com o mundo, quando conhecem a realidade terminam vendo a si mesmos na tela do cinema.  

The Wolfpacké hábil em mostrar como o contato dos irmãos com milhares de filmes foi uma maneira do pai Oscar Angulo manter os filhos entretidos e conformados com a prisão domiciliar – dessa forma, o interior do apartamento passa a ser um microcosmo do mundo do lado de fora. Mas, ao mesmo tempo, esses mesmos filmes conseguiram colocaram em cada um deles a semente da contestação da autoridade e a rebelião.

Mas os mesmos filmes que ajudaram a libertar-se, passam a ser a única referencia para compreender o real. É a inversão pós-moderna: é o real que passa a copiar a imagem, a mesma sensação hiperreal quando vemos uma maçã tão vermelha que achamos ser de plástico. Temos a necessidade de apertá-la para termos certeza que é de verdade – não confiamos mais em nossa percepção.

The Wolfpack nos mostra como seria o desfecho da Alegoria da Caverna de Platão no mundo atual: ficamos tão saturados de simulacros midiáticos em nossas mentes no interior da caverna que ao vermos a luz do lado de fora achamos que são os spots do estúdio.



Ficha Técnica


Título: Wolfpack
Diretor: Crystal Moselle
Roteiro: Crystal Moselle
Elenco:  Família Angulo
Produção: Candescent Films, Kotva Films
Distribuição: Magnolia Pictures
Ano: 2015
País: EUA

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Adeus à carne: uma história gnóstica do Carnaval, por Claudio Siqueira

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Chegamos a mais um carnaval, a famigerada “Festa da Carne”, embora a etimologia não seja bem essa. Sagrado para os foliões e profano para os carolas, as origens de tal festa possuem  raízes gnósticas como não poderia deixar de ser. Se “a voz do povo é a voz de Deus”, no Carnaval não poderia ser diferente; ainda que esse deus fosse Dionísio. Embora pouco conhecido pela metafísica do inconsciente coletivo nacional, o maior ritual hedonista brasileiro tem muito a ver com essa antiga divindade grega, que em Roma atendia por Baco. Duvida? Basta reparar no gordo Rei Momo que preside essa folia. Sim, senhoras e senhores! Os arquétipos sempre se repaginam, e o maior ébrio do Olimpo não ia ficar de fora da Saturnália dos trópicos. O "Cinegnose" disseca a história do carnaval, sem se esquecer da Sétima Arte, que o retratou com maestria.

O carnaval brasileiro no cinema


Em 1933, A Voz do Carnaval lançava Carmen Miranda e Oscarito; a primeira, como atriz-cantora do assim chamado “Ciclo Musicarnavalesco”; o segundo, como um dos mais antológicos comediantes das chanchadas nacionais. Com direção de Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga, a primeira produção sonora da Cinédia inaugurava, sem saber, uma safra de filmes do gênero. Por ironia do destino, a novela O Ébrio foi uma de seus maiores sucessos. Não falei que tinha dedo de Dionísio nisso?

No embalo de A Voz do Carnaval, Carmem Miranda e Oscarito, já estrelas, despontam em Alô, Alô Carnaval, em 1935. Nessa época, as marchinhas eram lançadas primeiramente nos filmes, caindo automaticamente no gosto popular.

Último dia de filmagem de "Alô, Alô, Carnaval". Ao centro, o diretor Adhemar Gonzaga; Carmem Miranda à esquerda e sua irmã, Aurora Miranda, à direita.

Em 1949, a comédia musical Carnaval no Fogo traz a dupla Grande Otelo e Oscarito, além do consagrado ator gaúcho José Lewgoy e marca a estreia de Jece Valadão.

Já na década de setenta, o cinema em torno do carnaval já não apelava apenas para o humor e a imagem estereotipada de um Brasil paradisíaco. Em 1972, sob a estética do Cinema Novo, Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, traz Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia como protagonistas e até Elke Maravilha, no papel de uma atriz francesa. No mesmo ano, Amor, Carnaval e Sonhos, de Paulo César Saraceni, último filme estrelado pela lendária Leila Diniz.


Como será visto mais adiante, toda a pré-história do Carnaval trabalha a inversão de papeis sociais. E ainda que desconhecida pelos produtores nacionais, o inconsciente coletivo não brinca em serviço.

Grécia e Roma – A Saturnália


Começando no dia 17 de dezembro e com o intuito de celebrar o Solstício de Inverno, os gregos e, posteriormente, os romanos celebravam um evento que deu origem tanto ao nosso Natal quanto ao Carnaval. Tratava-se da celebração a Cronos, ou, Saturno, daí o nome do “evento”.

Expulso do Olimpo após ter sido derrotado por Zeus, Cronos encontrou refúgio no Monte Capitolino ou Capitólio, a mais baixa das Sete Colinas de Roma e possui dois picos separados por uma depressão. Foi acolhido por Juno, o deus dúbio das decisões, regente dos inícios e fins, e da região de Lácio. Seu período de regência foi conhecido como “Idade do Ouro”, devido à prosperidade que a população alcançou.

Saturno devorando um filho.
Tela de Francisco Goya, 1823
         Cronos deu continuidade à obra do deus ensinando a agricultura aos homens. Lembremos que Saturno é o regente de Capricórnio, signo da perseverança e do elemento Terra, assim como Touro (o animal que puxa os arados) e Virgem, o que separa o joio do trigo e semeia as plantações.

No início, as festividades duravam quatro dias, mas Augusto, fundador do Império Romano decidiu cortar o barato da galera reduzindo a festa para apenas três dias, para que não comprometesse o andamento da vida política e jurídica da pólis. Calígula – claro – decidiu ampliar para cinco dias, como é festejado até hoje.

Durante a Saturnália, que, em sua abertura, contava com banquetes e sacrifícios, a saudação comum era “Io Saturnalia!” e os “foliões” da época trocavam presentes como é feito hoje em dia no Natal. Ninguém trabalhava e os escravos eram soltos, podendo fazer o que bem entendessem, sendo, inclusive, servidos por seus amos.

Essa subversão total de valores era tanta que chegava a ser escolhido, a esmo, um “rei” para essa folia: o Princeps, que, simbolizando Cronos, ironizava o Princeps Senatus, uma espécie de Primeiro Ministro do Senado Romano. Vestindo uma máscara espalhafatosa de cor vermelha, esse personagem da divina comédia social talvez tenha sido o embrião tanto do Rei Momo quanto do Arlequim.


Também uma espécie de carro alegórico percorria as ruas da cidade: tratava-se do CarrumNavalis, onde as pessoas desfilavam seminuas vestindo máscaras e do qual, segundo alguns deriva a etimologia do termo que dá nome à festa. Pode não ser verdade, mas é inegável a influência deste aos atuais carros alegóricos que desfilam com as escolas de samba.

Babilônia – As Saceias


Na Babilônia, dois procedimentos ritualísticos antagônicos, porém complementares, fundamentavam as Saceias: um prisioneiro ou escravo assumia o papel do rei durante alguns dias. Vestia-se de rei, degustava de suas iguarias e tinha acesso às suas esposas. Ao término do período era chicoteado e depois enforcado ou mesmo empalado. O rei por sua vez era encaminhado ao templo de Marduk, que, na mitologia babilônica, matara Ti’âmat, tal qual o nosso São Jorge e seu Dragão, como já elucidado neste blog (clique aqui). Lá, era “destituído” do cargo ao perder suas insígnias e surrado na frente de todos para só então reassumir o trono.

Tal feito era repetido por Luis IX, rei de França, coroado em 30 de novembro de 1226 com apenas 12 anos de idade devido ao falecimento de seu pai, Luis VIII. Já adulto, quando se confessava, exigia do padre que o açoitasse com um azorrague trazido por ele mesmo, não desejando ser tratado por “Sua Majestade”.

A Quaresma e a oficialização do Carnaval


Como todas as adorações pagãs, tais ritos marcavam passagens tais como os equinócios e solstícios. As saturnálias precediam a primavera e eram uma maneira do povo inflar-se de esperanças para as colheitas vindouras. Tais ritualísticas estavam perfeitamente vinculadas aos ciclos naturais e dificilmente seriam suprimidas por tradições impostas.

               Com esse pensamento em mente, a Igreja Católica decidiu oficializar o Carnaval, alegando que seria oportuno um período de expurgo para mais tarde a população dedicar-se a um momento de reclusão e consequente devoção. A partir dessa ideia, surge o Carnem Levare, a atitude de “suspender ou suprimir a carne”, e tida como etimologia mais aceita para o nome da festa.


Kemp Zwischen Fasching Und Fasten (A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma), 1559

Foi então que, em 1091, a Igreja Católica criou a Quaresma, um período de 40 dias entre a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Páscoa. Não por acaso, a palavra Páscoa significa “passagem” e deriva do verbo Hebraico Pasah, “passar sobre”, já que, segundo o Velho Testamento, Jeová teria passado sobre os primogênitos egípcios. Também o substantivo Pesach, celebrava a fuga dos hebreus do Egito, relatada no Êxodo. Tal palavra derivou para o Grego Paskha, que se tornou Pascha, em Latim. “Católico”, por sua vez, vem de Katholou, “universal”, sendo Kata“totalmente” e Holos, “todo”; logo, “Católico” significa “universal” e realmente a Igreja universalizou todos os cultos pagãos à sua imagem e semelhança.

Passeios históricos e etimológicos à parte, do final do século XI ao século XVII, diversas festividades eram promovidas pelo baixo clero tais como a Festa dos Loucos, a Festa do Burro (onde os participantes imitavam o dito animal) e a Festa dos Inocentes. Em 1645, mendigos, cozinheiros, jardineiros e leigos se reuniram em uma igreja franciscana vestindo as roupas do avesso e usando cascas de laranja como óculos. Sopravam cinza de incenso na cara uns dos outros e recitavam a liturgia balbuciando-a de forma ininteligível. A Festa dos Loucos deu origem às Companhias dos Loucos, que talvez tenham sido o embrião da Commedia dell’Arte.

A Terça-Feira Gorda


Como todos sabem, o último dia de Carnaval é comemorado sempre numa terça-feira, um dia antes da Quarta-feira de Cinzas. Tudo começou com a Terça-feira Gorda.

Vitale Michiel II, dodge(ou simplesmente presidente) de Veneza, governou o lugar entre 1156 a 1172. Em 1162, o então patriarca da região de Aquileia, Ulrico II, recusou-se a doar a Dalmácia ao Patriarcado de Grado. Tal concessão havia sido feita pelo papa da época, Adriano IV. Indignado com a decisão do pontífice, Ulrico II decidiu invadir a cidade de Grado, mas foi interceptado pelo exército veneziano, sob o comando de Vitale Michiel II.

Aprisionado, acabou por regressar à Aquileia após a derrota, tendo sido libertado sob uma condição: pagar um tributo anual que consistia em um touro, doze porcos e uma determinada quantidade de pães a serem distribuídos ao povo de Veneza na terça-feira, numa celebração à vitória sobre a Aquileia. Já o touro tinha sua cabeça cortada e exibida pelas ruas. A festividade ganhou o nome de Terça-feira Gorda; em italiano, Giovedi Grasso, que derivou para o francês, Mardi Gras.

A Comedia Dell’arte, O Carnaval de Veneza e o Mardi Gras


De saco cheio das peças eruditas apresentadas nos teatros italianos desde o século XI, surgira na Itália um movimento que ficaria conhecido como Commedia Dell’Arte. Artistas itinerantes armavam palcos no meio da rua e apresentavam seus pastiches em meio ao público. Assim como no CarrumNavalis Também aí reside a origem dos carros alegóricos, pois tais companhias às vezes se apresentavam em carros ornamentados chamados de trionfi.


Todos os personagens representados (tanto pelas indumentárias quanto pelos trejeitos dos atores que os encarnavam) aludiam a estereótipos sociais, como era de se esperar.

Assim, Arlequim, Pierrot, Columbina, Pantaleão, Doutor e até o estranho e soturno Médico da Peste passaram a ornamentar os bailes e as ruas durante o Carnaval de Veneza.

Assim como o rei babilônico era destituído do poder por um curto período de tempo, havia um procedimento semelhante a “malhar o Judas”. Tratava-se da Queima do Pantaleão. Ao fim do carnaval, na Quarta-feira de Cinzas, uma réplica do personagem, em tamanho gigante, era colocada entre duas colunas na Praça de São Marcos. Aos gritos de “El va! El Carnevale el va!” (Acabou! O Carnaval acabou!), ateava-se fogo ao boneco enquanto badalavam sinos. É que o Pantaleão representava o comerciante avarento e o povo regozijava-se em destruir simbolicamente a figura do burguês.

A Gnaga– o Primeiro Bloco Das Piranhas


Uma das indumentárias da época era a Gnaga. Usada apenas por homens, os trajes femininos, juntamente a uma máscara que representava uma mulher feia maquiada, a fantasia tinha função semelhante à de “piranha” nos dias atuais, já que seus usuários também cantavam homens que não estivessem fantasiados como eles.


Homossexuais também aproveitavam pra “soltar a franga, já que, embora tolerada, não era polido que a pederastia fosse ostentada em público. O nome da fantasia vem de gnao, equivalente ao nosso “miau”; onomatopeia que representa o miado do gato.

O Mattaccino e o Entrudo 


Outra figura pouco conhecida desse panteão mambembe era o Mattaccino, também conhecido como Frombalatore. Esse “bloco” consistia em um grupo de homens que praticava o Gioco della Ova. Literalmente, o Jogo dos Ovos, pois arremessavam ovos enchidos com água de flores nas casas das moças que cortejavam.

Não sabemos como tal tradição migrou para as terras lusitanas ou mesmo se isso chegou a acontecer. O fato é que, de Portugal, semelhante brincadeira migrou para o Brasil no século XVII: o Entrudo. As populares “Guerras de Água” não eram regadas só à água, com o perdão da infâmia, mas com lama, laranjas, limões de cheiro, ovos, farinha de trigo e bolas de cera encharcadas.

A partir da independência do Brasil em 1922, numa tentativa de romper com o vínculo colonial, a prática começou a ser vista como algo primitivo e entrou em declínio em 1954 com repressão policial. Intelectuais e artistas, embasados pela Imprensa começaram a importar o modelo carnavalesco de Itália e França, dando origem aos moldes que vemos até hoje.
  
Claudio Siqueiraé Estudante de Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como os panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.

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O Universo foi criado por alguém que não nos ama em "Christmas On Mars"

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Um filme estranho, trash e psicodélico que confirma que o rock é um gênero musical que sempre retirou suas energias da mitologia gnóstica contemporânea: Detetives, Viajantes e Estrangeiros sempre vagando em nowhere – o Espaço, o Deserto, o Lugar Nehum como símbolos da condição humana, assim como o Major Tom de músicas de David Bowie. Dessa vez no filme “Christmas On Mars” (2008, escrito e performado pela banda de rock indie “Flaming Lips”) vemos Major Syrtis tentando superar uma crise de niilismo, psicose e paranoia que se abateu sobre a tripulação de uma base marciana através da organização de uma festa natalina. Mas terá que superar a confrontação com a “realidade cósmica” – que o Universo foi criado por alguém que não nos ama.

“Ele está vivendo a terceira etapa de um episódio psicótico. Está observando algo que realmente não está ali... isso é causado pela confrontação com a realidade cósmica”, explicam personagens que habitam uma colônia em Marte sobre o comportamento do Major Syrtis – está parado, catatônico, olhando através de uma das janelas da colônia dois técnicos trabalhando no solo marciano.

Christmas On Mars inicia com o pensamento do Major Syrtis ao observá-los: “parecem duas mariposas lutando pela sobrevivência... nunca conheceram uma força do Universo que lhes mostrasse piedade”. A “realidade cósmica” para a qual o Major Syrtis catatonicamente olha é “uma estranha máquina onde todos estão presos”. O Espaço, para onde jamais o homem deveria ter ido porque lá são destruídas todas as nossas crenças internas. Onde a Criação não demonstra a menor piedade ou compaixão.


Qualquer semelhança com Major Tom, personagem do recém-falecido gnóstico pop David Bowie, não é mera coincidência – sobre a morte de Bowie e Gnosticismo clique aqui. O filme Christmas On Mars, concebido, escrito, produzido e performado pelos membros da banda Flaming Lips, é um mix das “esquesitices espaciais” de Bowie, 2001: Uma Odisséia no Espaço de Kubrick e Solaris de Tarkowsky. Com um toque retro que mistura fotografia PB granulada e cenas em technicolor psicodélico.


Flaming Lipsé uma banda de indie rock com associações à subcultura psicodélica dos anos 60 e 70, space rock e space opera e seus shows ao vivo são marcados por elaboradas fantasias teatrais, projeções de vídeos, complexas configurações de luzes no palco e seu líder, Wayne Coyne, andando sobre a plateia dentro de uma grande bolha de plástico.

Flaming Lips e o projeto Christmas On Mars (longa metragem + álbum) são uma evidência de como o rock and roll está intimamente associado a uma mitologia gnóstica contemporânea traduzida pelos protagonistas do Estrangeiro, Detetive e do Viajante, presentes na poética e em filmes como esse.

Rock e o jovem como Estrangeiro


É inegável que o rock sempre representou o descompromisso e a rebeldia juvenil, mas em diversos subgêneros evoluiu para uma estética mais elaborada que incorporou essa mitologia gnóstica secularizada – o roqueiro como o arquetípico personagem do Estrangeiro: rebeldes sem causa, heroin heroes, punks gritando “no future”, ácido e música technoassociadas a transes com conotações espiritualistas etc. Representações culturais dessa sensação de alienação e estranhamento experimentado pelo jovem antes de ser finalmente cooptado pela sociedade adulta.

É essa percepção de artistas como David Bowie que no marco musical Space Oddity cria uma imagem que o perseguirá por toda a carreira - a condição humana como a de um astronauta (Major Tom) que perdeu contato com o “ground control” e vaga perdido no espaço como um estrangeiro em um cosmos frio e hostil que não demonstra com nós a menor compaixão.


Essa é a repaginação da antiga mitologia gnóstica do anjo decaído onde Sophia e a humanidade caíram prisioneiros sob o jugo da Criação do Demiurgo e perderam contato com a Plenitude.

Christmas on Mars levou sete anos para ser lançado a partir de um filme que a mãe de Wayne Coyne teria supostamente assistido em uma madrugada na TV: um filme triste sobre uma espaçonave ou estação abandonada no espaço onde alguns trabalhadores largados no meio do nada enfrentando algum tipo de morte certa. Então, um evento mágico ocorreu, algo que lembrava Deus ou algum Superstar do espaço que veio ajudar, e todos se salvaram. Coyne buscou o nome desse filme e jamais encontrou – na verdade sua mãe deve ter dormido no início de um filme e acordado no final de outro e mentalmente fez uma síntese como tivesse assistido ao mesmo filme. Então a ideia surgiu naquele momento: “Eu vou fazer esse filme!”, pensou Coyne.

O Filme


A trama inicia com o Major Syrtis (Steven Drozd, o gênio musical da banda Flaming Lips) que está tentando organizar uma festa de Natal para elevar a moral da tripulação de uma base científica chamada Solis, remota e em ruínas em Marte. Há um problema técnico que pode ser fatal para todos: um condensador quebrou e o oxigênio está ficando cada vez mais rarefeito, provocando aos poucos alucinações, psicoses e paranóias.

Ao mesmo tempo, há um experimento científico que pode ser redentor: no interior de uma bolha incubadora transparente está uma mulher que alimenta, por meio de um tubo que emula um cordão umbilical, o primeiro bebê humano concebido no Espaço.


Mas as coisas não estão nada boas: Ed Fifteen (Kenny, irmão de Coyne) comete suicídio depois de sair correndo da base vestido de Papai Noel ao invés do traje espacial. Para Syrtis a comemoração natalina em Marte se reveste de grande importância: é a forma de afirmação simbólica humana de tudo aquilo que o cosmos não reserva ao homem no Espaço: piedade, amor e compaixão.

Sem o seu Papai Noel, Syrtis começa a sofrer efeitos da demência com o ar rarefeito: imagina em alucinações uma banda marcial cujas cabeças dos músicos são substituídas por vaginas. A banda marcha e esmaga um bebê em uma sequência perturbadora.

Então, do meio da noite marciana pousando no planeta numa estrela cadente (uma referencia à estrela de Belém do nascimento de Cristo) surge um ser verde, com antenas e uma luz pulsante no peito (Wayne Coyne) que transformará o filme num festivo caos psicodélico. Esse Super-ser viajante ocupará o papel de Papai Noel nas comemorações organizadas pelo Major Syrtis.

Detetives, Viajantes e Estrangeiros em Marte


Há deficiências óbvias em Christmas on Mars: más atuações (afinal, são roqueiros) e roteiro confuso onde o espectador terá que mobilizar uma massiva suspensão da incredulidade para embarcar na viagem do filme. Há cenas que lembram os filmes trash de Ed Wood como, por exemplo, uma “pesada” escotilha metálica que percebemos claramente ser confeccionada com algum material leve como isopor ou papelão.


Viajantes (o Super-Ser do espaço que alterará a vida de todos como fosse um messias), Detetives (a busca pela solução não só dos problemas técnicos – o condensador - , mas solucionar o enigma das alucinações psicóticas e paranoicas) e Estrangeiros (todos como estranhos prisioneiros em um cosmos que não nos ama) perdidos em um lugar que os enigmáticos planos de câmera transformam a colônia marciana em um nowhere.

Filmadas em uma fábrica de cimento abandonada em Oklahoma City (cidade natal do Flaming Lips), as cenas são poeticamente áridas, desoladas como um deserto – se contarmos o número de vídeo-clips de rock ambientados em desertos e locais desolados, entenderemos esse simbolismo recorrente. A conexão do rock com a mitologia do Estrangeiro.

O “Star Child”


Outra imagem marcante é a do bebê na grande bolha transparente. Todo o visual lembra 2001 de Kubrick e o bebê o simbolismo do Star Child desse filme de 1968 – o ser transdimensional que no final olha fixo para a Terra, resultante do contato final na nave Discovery com os criadores da raça humana em uma das luas de Júpiter.


Lembrando que o simbolismo do Star Child para Kubrick se revestia de um caráter gnóstico que aproxima-se bastante de Christmas On Mars: as crianças possuem um imaculado sentido de admiração, capacidade de alegria e criação de sentido. Na medida em que crescem começam a ver a morte e a dor em todos os lugares e começam a perder a fé e percebem como o Universo é frio e indiferente, corroendo nossa capacidade de viver – clique aqui para ler entrevista com Kubrick.

Major Syrtis quer combater o niilismo e desesperança da colônia marciana com uma típica comemoração natalina para fazer a tripulação esquecer de que o homem jamais deveria ter ido ao Espaço. E o nascimento do bebê-Star Child que coincide com o Natal é o simbolismo gnóstico cristão não de salvação, mas de transcendência de um cosmos criado por alguém não nos ama. 



Ficha Técnica


Título: Christmas On Mars
Diretor: Wayne Coyne
Roteiro: Wayne Coyne
Elenco:  Steven Drozd, Wayne Coyne, Steve Burns, Kenny Coyne
Produção: Flaminglips.com
Distribuição: WEA (CD/DVD)
Ano: 2008
País: EUA

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O bebê-diabo, zika virus e a busca da relevância perdida pela grande mídia

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Se no passado era fácil diferenciar o Jornalismo da chamada “imprensa marrom”, hoje a perda da relevância da grande mídia frente às tecnologias de convergência a faz tomar medidas desesperadas que confundem o sensacionalismo com informação: criam-se situações de exceção, crises econômicas e políticas, pandemias, ameaças terroristas crescentes, iminentes catástrofes geológicas, climáticas, astronômicas e assim por diante numa espiral especulativa. Da clássica história do “bebê-diabo” nos anos 1970 às pandemias promovidas a cada temporada mudou-se apenas a motivação: lá, o jornalismo por centavos; agora, a busca de uma relevância perdida.

Numa Chicago dos anos 1930 marcada por segregação étnica e choques entre culturas de imigrantes, o sociólogo Ezra Park assinalava a importante função integradora dos jornais – como a imprensa contribuía para a integração dos imigrantes à população local. Essa visão sobre a função integradora da imprensa marcou a distinção entre a grande imprensa e a chamada “imprensa marrom” – ao contrário, uma imprensa “desintegradora” porque apostava no sensacionalismo, no medo e no individualismo para unicamente vender mais jornais.


Surgia a “Escola de Chicago” que no âmbito das teorias da comunicação também explorou os efeitos sociais da distinção entre jornalismo e sensacionalismo, imprensa e o “penny press” – o chamado “jornalismo de centavos”.

No Brasil, em pleno fluxo migratório do Nordeste para São Paulo durante a ditadura militar nos anos 1970, um jornal explorava esse mesmo tipo de público solitário e sem laços sociais: o Notícias Populares, famoso pelo episódio da notícia do “Bebê-Diabo” em 1975.

Notícia inventada para o jornal vender mais exemplares, na falta de coisa melhor para noticiar – “Nasceu o Diabo em São Paulo”, estampava a primeira página. De acordo com a notícia, uma senhora havia dado à luz a uma criatura sobrenatural em São Bernardo do Campo. O bebê tinha o corpo completamente coberto de pelos, dois chifres e um rabo, e já nasceu falando e ameaçando médicos e enfermeiras que realizaram o parto.


A pequena criatura teria escapado no meio da madrugada e passou a aterrorizar o imaginário dos leitores, produzindo manchetes por quase um mês com supostos casos de avistamentos e sustos. Muitos deles relatados pelos próprios leitores.

Enquanto a “imprensa marrom” vivia do sensacionalismo para ganhar centavos, a grande imprensa respeitável criava a noção de “jornalismo de prestação de serviços”. Favorecido pela monopólio midiático incentivado pela Ditadura Militar, a imprensa (e principalmente a TV) tornava-se o principal veículo de cidadania – campanhas públicas de conscientização, expressão das demandas comunitárias,  informações de interesse público etc.

Quando a grande mídia tinha relevância


A grande mídia vivia seu período dourado de relevância junto à opinião pública: criava a pauta e prescrevia para a sociedade o que era ou não pertinente para ser discutido.

Por isso, era fácil tanto para o público como para pesquisadores acadêmicos separar a imprensa “séria” da “sensacionalista”. O máximo de critica que poderia ser feita era a ideológica: manipulações das notícias pelo viés ideológico da política editorial.

Com a Internet e as tecnologias de convergência tudo mudou - veio a crise existencial (com sites, blogs, podcasts etc., qualquer um podia ser jornalista) e mercadológica (o fim da noção de “grade de programação” e a perda de audiência para a Internet).

Mas a maior crise foi a perda de relevância: a grande mídia perdeu o monopólio das informações, deixou de ser um gatekeeper(aquele que tem o poder de decisão do que será passado para o grande público) e um newsmaking (controle e geração de acontecimentos).

No caso brasileiro, para a grande mídia o problema foi duplo: é muito mais do que sobreviver à evolução histórica das mídias no cenário de convergência tecnológica, mas tentar dar sobrevida de um modelo de concentração criado pela ditadura militar, mercado publicitário e institutos de pesquisa de audiência.


O irônico é que na busca da relevância perdida a grande mídia começou cada vez mais a se aproximar da antiga “imprensa marrom” – gênero que, por sua vez, acabou desaparecendo, absorvido pelos memes, vídeos, boatos e teorias conspiratórias pela Internet.

Agendamento: a última bala na agulha


Perdido o poder de newsmaking e gatekeeper, restou ainda o de agendamento (ou “agenda setting” – a capacidade em agendar os temas e conversas das pessoas em função do que é veiculado na mídia), a última bala na agulha. Passa-se então a criar situações de exceção, crises econômicas e políticas, pandemias, ameaças terroristas, iminentes catástrofes geológicas, climáticas, astronômicas e assim por diante numa espiral randômica.

Qual será o futuro? Há esperanças? Como sobreviver? Assista à próxima edição e ouça o que nossos especialistas e colunistas têm a dizer!

Claro que nada é tão trash e bizarro como caso do Bebê Diabo da penny press brasileira dos anos 1970. Agora o sensacionalismo vem “credibilizado” por pesquisas, números extraídos de digestos científicos, declarações editadas de incautos chefes de pesquisas de tradicionais institutos etc. A partir de fatos verdadeiros (o mosquito, a doença, a microcefalia etc.) apressam-se a criar conexões e relações causais que, cientificamente, exigiriam demoradas análises de dados de populações e teste laboratoriais.

Nada de beijos no Carnaval!


Como na atual “Pandemia da Temporada” do zika vírus que segue o mesmo script das pandemias passadas que nunca se realizaram. O timing é preciso: em plena sexta-feira de carnaval, a mídia divulga de forma bombástica pesquisa da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) sobre a possível transmissão do zika através de saliva e urina. Nas escaladas dos telejornais e “cabeças” das matérias a conexão é dada como cientificamente comprovada. Enquanto a declaração da chefe da pesquisa, Myrna Bonaldo, espremida no meio da edição das matérias, falava em “início de pesquisa” e de que ainda era necessário “massa crítica de dados”.


Evitar “beijos” e “aglomerações” foi o conselho em tom patibular dos jornalistas, piada pronta no dia em que iniciava o Carnaval.

Se no caso do Bebê Diabo lá nos anos 1970 era explorado o imaginário cristão de imigrantes nordestinos perdidos na cidade grande, agora é a manipulação dos temas do nascimento (microcefalia), sexo (a possível transmissão do zika pelo ato sexual, mais uma relação causal dada como certa pela mídia) e morte (assustadoramente pandêmica e imprevisível por meio de um micro-terrorista). Nascimento, sexo e morte, as experiências mais marcantes (e as mais disciplinadas socialmente) da vida humana.

 O caso da “epidemia midiática” da febre amarela em 2008 foi bem documentado por diversas pesquisas. Uma delas, Epidemia Midiática: um estudo sobre a construção de sentidos na cobertura da Folha de São Paulo sobre a febre amarela, no verão 2007-2008, foi realizada pela Faculdade de Saúde Pública (FSP-USP) mostrando como o discurso jornalístico transformou uma epizootia (contagio em animais) em epidemia – contágio em humanos.

O efeito foi o aumento explosivo pela busca de vacina da febre amarela onde a aplicação indiscriminada produziu casos de óbitos por doença vicerotrópica, a mais grave reação adversa. A notícia da suposta epidemia de febre amarela gerou sua própria epidemia: desinformação, pânico, filas, vacinações desnecessárias, erradas etc.


Os supostos casos de febre amarela eram noticiados pela mídia como verdadeiros, enquanto as pesquisas laboratoriais, clínicas e epidemiológicas ainda estavam em fase final de apuração.

A cereja do bolo: o contágio sexual


Hoje o mesmo ocorre com as relações causais automáticas entre zika, microcefalia e contágio sexual – esta, a cereja que faltava no bolo para a mídia criar a “tempestade perfeita”.

Mas, em nota técnica emitida pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) é destacada outras variáveis na epidemia de microcefalia como o quadro sanitário de onde emergem os casos e o modelo de controle vetorial pelo chamado “fumacê” – o uso de produtos químicos que desconsidera a fragilidade biológica e socioambiental de comunidades pobres.

A exemplo do Malathion, neurotóxico para o sistema nervoso central e periférico, além de provocar náuseas, vômitos, diarreia, dificuldade respiratória e fraqueza muscular – sobre a nota da Abrasco clique aqui.

Refém que o Governo Federal é do agendamento da grande mídia, e às vésperas das Olimpíadas, a presidenta se apressa em “declarar guerra ao zika” e “formar um exército da paz e da saúde”.

Enquanto isso, a gripe comum mata 500 mil pessoas por ano no mundo; dois milhões de mortes anuais por malária; dois milhões de mortes anuais por diarreia e dez milhões de mortes anuais por doenças curáveis como sarampo ou pneumonia. E que jamais ganham as primeiras páginas de jornais e escaladas dos telejornais.

Mortes que poderiam ser evitadas por medidas simples como mosquiteiros e soro caseiro. O que passa longe dos interesses da indústria biofarmacêutica, interessada em medidas de saúde pública muito mais lucrativas.

Sabendo-se que esse setor, ao lado de armamentos e tabacos, é um dos que mais investem em táticas de agendamento nas mídia mundiais, temos uma convergência de interesses: para indústria biofarmacêutica o pânico e a desinformação é bom para os negócios por criar pandemias autorrealizáveis (como no caso da febre amarela no Brasil em 2008); e para a grande mídia, pânico e medo produzem a falsa necessidade das suas informações, tentando recuperar uma relevância inevitavelmente perdida.

Como se a vacina estivesse matando o próprio paciente.  

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Curta da Semana: "Estado de Suspensão" - o "estar entre" o sonho e a realidade

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O Curta da Semana vai para uma produção brasileira inspirada em leituras gnósticas feitas aqui no “Cinegnose”. O curta “Estado de Suspensão” (2015) de Renan Lopes foi um trabalho experimental do curso de Cinema e Mídias Digitais do Centro Universitário IESB de Brasília. Baseado no conceito de “suspensão” como estado de consciência que induziria a gnose (proposto por Basilides de Alexandria em II DC), um protagonista deve fazer uma importante escolha para sua vida: ou a realidade, ou o sonho. Mas ele vai buscar uma terceira via: o “estar entre”.

Um  personagem vaga pelas ruas de alguma cidade-satélite de Brasília após olhar para o seu cartão funcional pendurado no pescoço. Embarca em um ônibus, coloca um headphone e adormece – sonha atravessando uma ponte e depois com uma câmera digital na mão capturando imagens. As paisagens são ao mesmo tempo urbanas, desérticas e áridas. Parece que há algo que deve ser decidido na vida do protagonista – uma escolha entre aquilo que o cartão funcional representa (o trabalho e a realidade) e o que aquela ponte e a câmera digital simbolizam – o sonho e o cinema.


Esse é o curta brasileiro Estado de Suspensão (2015) de Renan Lopes. Foi produzido pela Not Columbia, produtora formada no ano passado por alunos do curso de Cinema e Mídias Digitais do Centro Universitário IESB de Brasília.

Assim Renan define seu curta: “O trajeto e movimento com velocidade do transporte, somados ao estímulo musical propiciou a revelação onírica, do real desejo que o faz motivado e entusiasmado pela vida, sua descoberta no cinema”.


Para os leitores desse blog, o título “Estado de Suspensão” é bem sugestivo – remete ao gnosticismo basilidiano (de Basilides, professor gnóstico de Alexandria no século II DC) onde a gnose ou “iluminação espiritual” seria favorecida através de um singular estado alterado de consciência: o estado de suspensão, o esvaziamento da mente por meio da suspensão de toda atividade dos mecanismos de abstração da linguagem.

Renan Lopes se inspirou exatamente nesse conceito a partir de leituras de alguns textos aqui do Cinegnose sobre Cinema e Gnosticismo e criou o argumento para o curta Estado de Suspensão.

Em muitas postagens viemos desenvolvendo a tese de que o Gnosticismo vem sendo atualizado no imaginário contemporâneo por meio de três personagens arquetípicos: O Viajante, O Detetive e O Estrangeiro. Cada um desses personagens remete a um particular estado alterado de consciência que conduz à gnose – respectivamente, “suspensão”, “paranoia” e “melancolia”.

Nesse curta vemos o protagonista como O Viajante, cuja decisão urgente que ele deve tomar na sua vida não será através da “episteme” – racionalidade, lógica, método etc. Mas por um estado de suspensão e silenciamento através do deslocamento e música – sobre isso leia a relação entre bicicleta, ciclismo e estado de suspensão,clique aqui.

O deslocamento no ônibus e o headphone olhando as paisagens áridas (o “Deserto”, o símbolo contemporâneo ao mesmo tempo do silenciamento da mente e da condição humana de estranhamento) são para o personagem os meios indutores a esse estado alterado de consciência.


O leitor deverá prestar atenção ao simbolismo da ponte, imagem arquetípica constante em filmes que exploram esse arquétipo do Viajante – o estar parado no meio da ponte, o não ficar onde estar e nem chegar a parte alguma, o “estar entre”, literalmente em estado de suspensão, acima das águas que correm – água corrente, simbolismo de mudança.

Um exemplo da recorrência desse simbolismo da ponte está outra produção brasileira: o longa Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) onde a ponte e a introversão do protagonista criam o estado de suspensão. A ponte de uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul é o simbolismo central do filme – a ponte como a interzona entre sonho e realidade – sobre o filme clique aqui.

O “estado de suspensão” de Basilides é a busca daquilo que se chama “tertium quid”, a terceira via: nem sonho, nem realidade; nem a verdade, nem a mentira. Para Basilides a busca pela gnose estaria em um terceiro elemento: no silêncio, naquilo que suspende todas as diferenciações ou distinções – o “estar entre”.


No curta, o “tertium quid”é o Cinema: uma forma de arte que está entre a realidade e o sonho – não consegue ser nem totalmente realista (já que precisa do corte, edição, enquadramento) e nem totalmente ilusória (já que precisa do real no set de filmagem para as imagens serem captadas através da câmera.

Filmes brasileiros como Insolação(2009, analisado pelo Cinegose, clique aqui) de Felipe Hersch e Daniela Thomas mostram como as paisagens brasilienses são perfeitas para expressar essa condição humana de Viajantes e Estrangeiros – o Deserto, a condição humana de exilado no próprio lugar em que vive em uma cidade construída por estrangeiros que vieram de diversas parte do País.

O curta “Estado de Suspensão” se nutre desse cenário que a cidade oferece, para dar ainda mais força aos simbolismos do Viajante e da Suspensão.



Ficha Técnica


Título: Estado de Suspensão
Diretor: Renan Lopes
Roteiro: Renan Lopes
Elenco:  Rafael Gomes, Samuel González, Reverson dos Anjos, Renan Lopes
Produção: Not Columbia
Distribuição: on line
Ano: 2015
País: Brasil

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Editor do "Cinegnose" apresenta experiência do Cinema na sala de aula como Acontecimento

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Normalmente pensamos o cinema como entretenimento ou como um meio pelo qual podemos ter informações que nos façam repensar o mundo. Mas isso é comunicação? Ou estamos confundindo comunicação com sinalização e informação? Quando o cinema de fato comunica? Esse foi o tema discutido por esse blogueiro no III Seminário Anhembi Morumbi de Estudos do Ensino Superior – um estudo de caso sobre a exibição do filme “Como Fazer Carreira em Publicidade” (1989) em sala de aula e o mapeamento de fenômenos de comunicação como “Acontecimento” durante e depois da recepção do filme. A experiência foi tentar redefinir o conceito de comunicação como Acontecimento – aquilo que provoca crise e altera a vivência. Aquela experiência que, depois, já não somos mais os mesmos.

Esse humilde blogueiro que escreve essas mal traçadas participou ontem (16/02) do III Seminário Anhembi Morumbi de Estudos do Ensino Superior apresentando o trabalho Como Fazer Carreira em Publicidade com Massumi, Shaviro e Whitehead: Cinema e Acontecimento Comunicacional na Sala de Aula.


Claro que o título é irônico: é impossível fazer carreira seguindo as ideias desses autores (pensadores da fenomenologia). Mas também o título é baseado no relato de um estudo de caso: a exibição do filme Como Fazer Carreira em Publicidade (How To Get Ahead In Advertising, 1989) para uma classe do curso de graduação de Publicidade e Propaganda da Universidade Anhembi Morumbi/SP na disciplina que eu ministro chamada Estudos da Semiótica – sobre o filme clique aqui.

A exibição dessa ácida comédia de humor negro inglês foi uma experiência onde se tentou verificar a possibilidade do “acontecimento comunicacional” em sala de aula – proposta de pensar a comunicação como fenômeno, o aqui e agora, o estudo da comunicação no momento em que ela ocorre e suas relações com a biografia do receptor. Em outras palavras, como é possível a narrativa fílmica se encontrar com dados da biografia do espectador, produzindo um “acontecimento”.

As aplicações do cinema em sala de aula pode ser agrupadas em duas estratégias dominantes: (a) Conteudistas, onde temas e narrativas fílmicas são usadas para ilustrar conteúdos programáticos vistos em aulas ou feita uma leitura crítica de filmes; (b) Formalistas, onde é feita uma metalinguagem do cinema e a narrativa fílmica (roteirização, edição e linguagem) é estudada para a produção de produtos audiovisuais pelos alunos.


A terceira via fenomenológica


A proposta é uma terceira utilização educacional do cinema: a fenomenológica, o cinema como acontecimento comunicacional.

O background dessa proposta é a seguinte: atualmente se discute no grupo chamado Filocom da ECA-USP (liderado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho) uma nova Filosofia da Comunicação que redefina a sua epistemologia e a ontologia. Parte do princípio de que quando se pensa a Comunicação, confunde-se com fenômenos de sinalização e informação. Sempre a Comunicação é estudada posteriori, depois do fenômeno ter ocorrido. Ao ser estudada transforma-se em Semiótica, Linguística, Sociologia etc. Abandona-se o objeto próprio da Comunicação para ser pensada a partir de conceitos como signo, linguagem, informação, fatores sociais, psicológicos etc.

E qual o objeto da Comunicação? O fenômeno, o Acontecimento. O que é o “Acontecimento”? Partindo da distinção entre evento e acontecimento proposto pelos pensadores franceses Deleuze e Derrida, “eventos” seriam fatos de natureza ruidosa, escandalosa: casos naturais, sociais ou artificiais que ganham espaço nas manchetes dos jornais e tornam-se notícias estridentes e emergenciais.

Já os acontecimentos são de outra natureza: silenciosos e insensíveis, passando à margem de qualquer representação ou racionalização. O Acontecimento seria aquilo que provoca crise, um fato único e excepcional, imprevisível e jamais repetível. Seria aquilo que cai sobre mim. O Acontecimento provoca uma crise, altera a vivência. Depois dele já não sou mais o mesmo.

O cinema até aqui sempre foi pensado por aspectos de sinalização (convenções de gênero, estilo, retórica etc.) e informação – referente a informações que aditivam a um repertório pré-existente no receptor: assistimos a um filme para confirmar ou não uma crítica ou expectativas.


Cinema e Afeto


Pensar o cinema como acontecimento (aquilo que nos transforma e altera a vivencia) é pensa-lo como intensidade e afeto – um plano pré-cognitivo onde as imagens nos impactam corporalmente pela sua intensidade e afecção.

Estamos aqui na discussão proposta por Brian Massumi que vê no cinema dois planos de fluxos de imagens: a estrutura, a cadeia semiótica ou narrativa que indexa os nossos afetos e transforma em emoções que são comercialmente explorados pela indústria do entretenimento; e o plano do acontecimento, a “materialidade da sensação” que pode nos causar repulsa, medo, fascinação, prazer ou desejo.

Esse plano difere do primeiro que oferece o prazer voyeurista que dá distanciamento, posse e estabilização do ego. Ao contrário, o  plano do acontecimento nos impacta, desestabiliza pelo confronto direto com a qualidade das próprias imagens, planos etc. – sensações sinestésicas produzidas pela fotografia, cor, formas, etc. O que lembra bastante a noção de Primeiridade na semiótica peirciana.

Brian Massumi

Junta-se a essa discussão a noção de “corpo cinemático” de Steven Shaviro onde o pesquisador constrói um novo perfil de espectador como não mais aquele que procura na identificação e no voyeurismo a satisfação de desejos de possessão, plenitude, estabilidade e segurança. Agora esse espectador vive uma “convergência tátil” com as imagens onde ancora o seu desejo na percepção e em um corpo agitado e fragmentado.

De Shaviro e Massumi fica a descoberta de um plano pré-cognitivo (o afeto), anterior à emoção comercialmente construída pelo Cinema para estabilizar o ego e reduzir o filme à sinalização e informação – reduzir a recepção fílmica a um ato aditivo que apenas confirma uma expectativa.
Mas como a exibição de um filme pode transformar o evento em um acontecimento comunicacional? Ou melhor, se o acontecimento comunicacional ocorrer, como detectá-lo?

A Filosofia do Processo de Whitehead


Entra em cena o matemático e filósofo inglês Alfred Whitehead (1861-1947), conhecido por desenvolver o que se chama Filosofia do Processo que encontra hoje aplicações em variadas disciplinas como Ecologia, Educação, Biologia e Economia.

Para ele o “novo” ou a “concrescência” (para nós, o acontecimento) surge no devir quando eventos que nasceram ou morreram (os “datum”) faz uma nova composição com as antigas. Mas a conjunção e concrescência vão se tornar realmente acontecimentos quando ocorre a ingressão dos “objetos eternos” – qualidades sensórias de cor, forma, táteis, qualidades morais etc.

Steven Shaviro e Alfred Whitehead

Ao exibir o filme Como Fazer Carreira em Publicidade fez-se uma tentativa de aplicar a fenomenologia de Whitehead para apreender o acontecimento comunicacional: observar nos espectadores “preendidos” pelo filme (como registraram os afetos e intensidades), o datum preendido (dados passados que envolvem tanto os objetos eternos do filme, sinalizações e informações como os dados da própria biografia individual do espectador) e a “forma subjetiva” da preensão – as “emoções” no sentido determinado por Massumi, como vimos acima.

Um filme não-realista


Para haver um acontecimento comunicacional são necessários dois quesitos: a pessoa estar aberta à intensidade dos afetos e não se fechar por meio de formações reativas (defesas psíquicas) e o evento ser inesperado – a exibição do filme foi propositalmente não programada.

Além disso, o filme Como Fazer Carreira em Publicidadeé um tipo de narrativa não-realista (surreal e que não segue os cânones da representação realista cinematográfica). Uma narrativa ideal por não oferecer conexões lógicas causa-efeito que ajude a racionalizar e tranquilizar o ego com o prazer voyeurístico do distanciamento.

Para estudantes de Publicidade e Propaganda, um filme como esse disruptivo e crítico universo da promoção do consumo é desafiador. Mas o irônico é que o filme explora intensamente packshots e imagens sinestésicas, estratégias publicitárias tradicionais que exploram intensidades corporais como fome, sede e desejo de compra (afetos) que depois se transformam em emoções convenientes ao desejo de compra.

O Acontecimento comunicacional na sala de aula

Esses afetos explorados pelo filme trazem “objetos eternos” que criaram conjunções com “datum” dos alunos – dados das suas biografias individuais somados a eventos que ocorriam na sala de aula durante a exibição, além dos “datum” que o filme trouxe de 1989 para aquela noite, naquela sala de aula.

Filme "Como Fazer Carreira Em Publicidade", 1989.

Além do mapeamento das formações reativas (corpo “fechado” como braços e pernas cruzados, além da atenção desviada para o telefone celular), registrou-se a intensificação dos afetos das imagens pelos corpos “abertos”  principalmente nas sequências em packshot - onde a afecção da sequência faz definitivamente o espectador render-se à passividade, à entrega, ao abrir-se às afecções – corpo posturalmente desequilibrado, afundado na carteira, pernas esticadas e o corpo pendendo para um lado.

Após a exibição, em dois alunos (que chamaremos de Henrique e Lucas) em que mais foi visível essa abertura às afecções foram verificado o acontecimento, no sentido do encontro da narrativa fílmica com a biografia individual.

Após as luzes se acenderem, Henrique ficou em silêncio e ensimesmado, embora fazendo parte de um grupo que, ao longo do filme, trocava algumas observações sobre a narrativa fílmica.

Em outro extremo da sala de aula estava Lucas, com o rosto visivelmente ruborizado e que se pôs a travar uma intensa conversa com outro grupo.

A aula terminou e Lucas veio conversar comigo, junto com o grupo do qual participava. Lucas foi direto, e disse que iria abandonar o curso de Publicidade para fazer o de Cinema, disse sob as opiniões contrárias dos seus amigos. Visivelmente agitado e estimulado pelo filme, disse que sempre quis fazer Cinema, mas desistiu por ser um curso muito caro. Mas a engenhosidade narrativa... a cabeça-espinha que falava... a bela fotografia e, sobretudo, um filme produzido pelo ex-Beatle George Harrison. Saiu daquela aula, firmemente decidido em dar uma guinada na sua vida acadêmica.

Enquanto isso Henrique aguardava à distância terminar minha conversa com o grupo de Lucas. Aproximando-se veio consultar-me sobre como, dentro do curso de comunicação, ele poderia dar o primeiro passo para a atividade de pesquisador e conselhos para montar um projeto de pesquisa em iniciação científica. Para Henrique, o conteúdo crítico do filme teria ido ao encontro da sua insatisfação pessoal/profissional: disse que trabalhava em uma atividade técnica de Marketing em uma empresa, distante do seu principal interesse: a pesquisa acadêmica.

Henrique e Lucas saíram daquela aula transformados: algo no filme fez os seus dados biográficos atuais entrarem numa conjunção com os dados que vinham de 1989 através do filme. Henrique afirmou que o conteúdo crítico do filme e as linhas de diálogo críticas ao sistema capitalista fez despertar nele a paixão pela pesquisa; enquanto Lucas ficou fascinado com a arte e linguagem experimental do filme, despertando a sua paixão pelo cinema. Henrique foi afetado pela forma, Lucas pelo conteúdo.

Abaixo, referencias bibliográficas desse trabalho.

BERGSON, Henri. A Evolução Criadora,  Lisboa: Edições 70, 2001
_________. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

DASTUR, Françoise. “Phenomenology of the Event: Waiting and Surprise”. In: Hypatia, vol. 15, no. 4 (Fall 2000), Trad. Ciro Marcondes Filho.
DELEUZE, G. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
__________. A Imagem-Movimento – Cinema 1, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004
__________. A Imagem-Tempo – Cinema 2, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
DERRIDA, Jacques, SOUSSANA, G., Nouss, A. Decir el acontecimiento. Es posible? Tradução Julián Santos Guerrero. Arena Libros, Madri, 2006.
HURLEY, N. P. Toward a film humanism. New York: Dell, 1970.
KAPLAN, Mark Alan. “Transpersonal Dimensions of the Cinema”, In: The Journal of Transpersonal Psychology, 2005, Volume 37, Number 1, Pages 9-22 (Press Date: March 2006).
________, “The Medium is the Transpersonal”, In: The Quartely Newsletter of the institute of Transpersonal Psychology, Fall, 1-2, 1993.
MARCONDES FILHO, Ciro, O Princípio da Razão Durante – O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica. São Paulo: Paulus, 2010.
MASSUMI, Brian. Parables for the Virtual. Duke University Press, 2002.
METZ, Christian. O Significante Imaginário – psicanálise e cinema, Lisboa: Horizonte, 1980.
SERRES, M. O Terceiro Instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
SHAVIRO, Steven. The Cinematic Body. University of Minnesota Press, 2006.
WHITHEAD, Alfred N. Process and Reality.N. York: The Free Press, 1978.


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Comercial da Samarco é aula sobre as técnicas indiretas e a canastrice da propaganda

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Uma desastrada estratégia de gestão de crise?  Ou um exemplo daquilo que o pai das Relações Públicas, Edward Bernays, chamava de “técnica indireta”? O fato é que o comercial da Samarco "É sempre bom olhar para todos os lados" veiculado em horário nobre na TV (que a revista “Meio & Mensagem” chama elogiosamente de “prestação de contas” das medidas de controle de danos ambientais) revoltou muitos internautas. Mas como diria Nick Naylor (o relações públicas do Tabaco no filme “Obrigado Por Fumar”) “Eu não quero convencer você, mas eles!”, diz apontando para as pessoas anônimas que caminhavam ao redor – a Opinião Pública. O comercial da Samarco é uma aula sobre todas as táticas de propaganda que envolve as chamadas "técnicas indiretas":  naturalizações, descontextualizações, inversões de hierarquia e, no final, a cereja do bolo: a canastrice da linguagem audiovisual.

Sobrinho de Freud e considerado o pioneiro das técnicas de relações públicas, Edward Bernays no seu livro Crystallizing Public Opinion (1923) nos oferece um exemplo que abriria a nova era das chamadas “técnicas indiretas” de manipulação da opinião pública: Os proprietários de um decadente hotel consultam um conselho de relações públicas. Eles perguntam como melhorar o prestígio do hotel e incrementar os seus negócios.


Em tempos menos sofisticados, a resposta poderia ser contratar um novo chefe de cozinha, melhorar o encanamento, pintar os quartos, ou instalar um lustre cristalino no saguão de entrada. Mas a técnica dos relações públicas é mais indireta. Eles propõem a celebração do trigésimo aniversário do hotel. Um comitê é formado, incluindo proeminentes banqueiros, a matrona líder da alta sociedade, um advogado famoso, um pastor influente e um ‘evento’ é planejado (digo, um banquete) para chamar a atenção dos distintos serviços oferecidos pelo hotel à comunidade.

A celebração é realizada, são tiradas fotos, a ocasião é amplamente informada e o objetivo é alcançado.

Bernays criou esse paradigma que é seguido até hoje, como podemos ver no inacreditável comercial em TV aberta onde a empresa mineradora Samarco (empresa controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton) mostra as ações que visam minimizar os danos causados pelo rompimento da barragem de Mariana/MG que provocou o maior desastre ambiental brasileiro.


A mentalidade invertida


O comercial estreou no horário mais caro da TV brasileira, no intervalo do Fantástico da TV Globo, e vem sendo apresentado também nos intervalos de telejornais do horário nobre – surpreendente para uma empresa que teve bens bloqueados pela Justiça e adia pagamentos de indenizações alegando que o seguro da empresa não é o suficiente para arcar os custos.

Para além do evidente exemplo do chamado conflito de interesse (Samarco patrocina telejornais que supostamente deveriam ser imparciais sobre notícias que responsabilizam a empresa), o comercial da Samarco é mais um irônico exemplo dessa eufemística “estratégia indireta” que anima as táticas de engenharia de opinião pública.

Por exemplo, a revista Meio & Mensagem chama o comercial de “prestação de contas da Samarco”, num sintoma da mentalidade invertida das estratégias indiretas de RP: se as medidas de controle de danos são reais deveriam ser noticiados como informações nas pautas de telejornais, e não como storytellings nos intervalos comerciais pagos.

A imagem precede a informação, o simulacro se antecipa à realidade numa surpreende inversão platônica em pleno horário nobre.


Inversão da hierarquia da empresa


Nesse mundo invertido do gerenciamento de crise nas Relações Públicas é surpreendente como também é invertida a hierarquia organizacional da empresa – se a crise foi provocada pelos CEOs, diretores, presidentes etc. a partir de decisões alimentadas por dados de planilhas Excel em reuniões fechadas, nada mais lógico do que esconde-los.

Inverta tudo. Ao invés de gente engravatada, mostre em um comercial os funcionários consternados, comovidos, alguns com sentimento de culpa (“mal conseguia trabalhar direito”, fala um funcionário no vídeo), penalizados, preocupados com gatinhos (um patético signo de uma suposta preocupação ambiental da empresa) e se apresentando de braços abertos – e outros, no linguajar corporativo, dizendo que estão “vestindo a camisa”.

Incautos funcionários são colocados como escudos numa filosofia de “é sempre bom olhar para todos os lados”. Em um momento desse inacreditável comercial, um funcionário fala desconsolado em “minimizar os danos que a gente causou!”.

“A gente” é uma mágica expressão de RP que num só golpe esconde hierarquias corporativas, centros superiores de decisão de gestores e CEOs, colocando o rabo de foguete no nível do “chão de fábrica” dos catatônicos funcionários com suas testas franzidas e olhares suplicantes por desculpas.

Como se a Samarco se desculpasse tomando como refém seus próprios funcionários ao afirmar que a empresa gera seis empregos diretos, sugerindo que retalhar a empresa prejudicará a vida dos seus abnegados funcionários.


Assim como Bernays achava que mais importante para incrementar os negócios do hotel eram fotos nos jornais do que contratar um bom chefe de cozinha, também para a gestão de crise da Samarco é melhor mostrar histórias “humanas” de seus funcionários em vídeos publicitários do que implementar medidas reais de impacto que se transformem naturalmente em notícias.

Naturalização e descontextualização


Essa estratégia indireta de RP também produz dois efeitos propagandísticos: naturalizar e descontextualizar crises. Funcionários dizem no comercial que “de repente” acordaram com uma “missão de acolher as pessoas”. Mas como “de repente”, cara pálida! Em poucos segundos a “prestação de contas” da Samarco quer apagar as notícias de que tudo foi uma tragédia anunciada por técnicos especialistas na área de mineração e situar a catástrofe no campo dos terremotos, furacões ou quedas de meteoros.

Diante dos misteriosos desígnios da Natureza e de Deus restaria somente a resposta humana da solidariedade e compaixão – esse é o objetivo ideológico profundo de todo bom storytelling: simplificar acontecimentos social e politicamente complexos em narrativas pessoais melodramáticas e canastronas. Tudo vira uma questão de esforço individual, e não mais de vontade política coletiva.

A canastrice como força de propaganda


Um som de piano ao fundo com notas cromáticas que vai em crescendo, acrescentando o som das cordas e o crash de um prato de bateria quando funcionários falam em “desejando estar juntas” e “vestir a camisa”.

Nada mais over, melodramático e canastrão do que essa combinação de uma trilha musical ao estilo do pianista kitsch Richard Clayderman como moldura de relatos de pessoas “emocionadas” com enquadramentos de câmeras meticulosamente assimétricos para passar uma atmosfera de declarações espontâneas.


Estamos na linguagem da canastrice: a fotografia em tons pastéis (figurinos e os sets em tons claros), com uma paleta de cores e tonalidade que criam uma atmosfera que lembra comerciais de produtos matinais e de iogurtes probióticos. Tudo tão previsível que se torna caricato, exageradamente previsível e saturado. Canastrão, portanto.

Em postagem anterior discutíamos esse elemento da canastrice na propaganda contemporânea: por que ninguém percebe a evidente natureza ficcional do vídeo, feito com recursos estéticos manjadíssimos do pior do cinema e TV? A opinião pública não percebe a natureza “fake” ou “forçada” destes pseudoeventos porque própria estrutura de percepção do real já foi alterada anteriormente por décadas de cultura pop: tomar o real não a partir dele mesmo, mas a partir dos seus simulacros – sobre a canastrice dos dispositivos da propaganda clique aqui.

Paradoxalmente o exagerado eufemismo das estratégias indiretas de RP é encoberto pela canastrice da linguagem da propaganda. Nossa percepção está tão saturada pela linguagem publicitária e pelos filmes hollywoodianos que quando vemos uma “prestação de contas” da Samarco em nessa linguagem over e saturada não nos damos mais conta da natureza fake, forçada e das expressões eufemistas – “a gente”, “de repente”, “tínhamos uma forma diferente de trabalhar” etc.


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Mídia esconde dissidentes de Einstein na descoberta das ondas gravitacionais

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O anúncio de que pela primeira vez cientistas detectaram ondas gravitacionais que passaram pela Terra originadas de uma fusão de dois buracos negros foi recebido pela grande mídia como “revolução na astronomia”,  “janela aberta para um novo Universo” e “confirmação das previsões da Relatividade Geral de Einstein”. Mas todo esse “hype” que leva a grife de Einstein (o ícone pop da genialidade) esconde uma crise na Física provocada pelos resultados de experiências com interferômetros que buscam ondas desde o século XIX: a disputa entre Éter versus Relatividade – de um lado os dissidentes de Einstein (Nikola Tesla, Dayton Miller etc.) que defendiam um Universo cujo espaço é preenchido pelo Éter (substrato pré-físico de onde se originaria toda energia); e do outro o modelo Newtoniano do vácuo e inércia, além de Einstein que substituiu a noção de Éter pelo continuum espaço-tempo. A descoberta dos cientistas do LIGO suscita a dúvida central dessa crise: como uma onda se propaga no vazio?

Pessoas de todo mundo comemoraram nesse mês o anúncio de cientistas do LIGO (Laser Interferometer Gravitational Wave Observatory nos EUA) de que, pela primeira vez, foram diretamente detectadas ondas gravitacionais – ondulações no tecido do espaço-tempo previsto há 100 anos na Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.

Em setembro do ano passado a dupla de detectores do observatório, localizados na Louisiana e Washington, gravaram uma fraca vibração que atravessou o planeta. As análises revelaram ser ondas gravitacionais originadas do encontro de dois buracos em movimento de espiral que se fundiram criando um cataclismo cósmico que deformou o espaço-tempo.


Como não poderia deixar de ser, a mídia acompanhou o entusiasmo dos cientistas e comemorou a descoberta como “monumental”, “abertura de uma nova era da investigação científica”, “uma janela para ver o universo de forma totalmente nova”, “abertura dos nossos sentidos para um novo conjunto de sinais cósmicos” etc.

E não faltaram esforços pedagógicos de jornalistas para explicar ao público leigo  conceitos tão abstratos como “ondas gravitacionais” e “deformação do espaço-tempo”: bolas colocadas em um lençol suspenso estendido ondas as deformações no tecido são comparadas com as do espaço-tempo; ou repórteres jogando pedrinhas em lagos e comparando as ondas concêntricas na superfície com as gravitacionais.


Espaço-tempo não é palpável


Mas todo esse hype que leva a grife de Albert Einstein (o próprio ícone da genialidade pop) parece simplesmente ignorar duas questões potencialmente incômodas e ignoradas pela grande mídia: as “ondas gravitacionais” foram detectadas e comprovadas como realidade palpável. Mas o próprio Einstein fazia questão de enfatizar que “o espaço-tempo não tem existência própria, mas apenas como qualidade estrutural do campo gravitacional”. Em outras palavras, Einstein pensava as deformações do espaço-tempo como modelos matemáticos ou geométricos não-euclidianos e não condições em que vivemos. “São modos como pensamos”, dizia – sobre isso clique aqui.

Como um modelo matemático que não tem existência ou substância própria ganha a realidade através do LIGO?

O que foi detectado?


Isso leva a uma outra questão: então, o que foi detectado? As analogias explicativas das deformações espaço-tempo mostram lençóis estendidos ou ondas na superfície de um lago. Mas, ondas (ou deformações) só ocorrem através um meio físico – o lençol, a água, o ar etc. Então, como ondas gravitacionais podem se propagar no suposto vazio que é o espaço? A resposta seria que estas ondas seriam carregadas por partículas, e partículas não precisam de um meio para se locomoverem, como no caso do fóton na força eletromagnética.


Porém, a hipótese da existência do gráviton (a partícula que carregaria as ondas gravitacionais) ainda está por ser comprovada.

O que a grande mídia não revela é que o anúncio da descoberta do LIGO traz de volta a velha crise na Física criada pelo conflito entre o atomismo das partículas que possuem trajetórias independentes (a inércia do modelo newtoniano) e o monismo do modelo ondulatório da força da gravidade.

Explicando melhor: o conflito entre a mecânica newtoniano do movimento (a primeira Lei da Inércia onde objetos mantém-se em constante estado de movimento no vazio ou vácuo) e o antigo modelo de que tudo no universo se movimenta no interior de um substrato único chamado éter – termo considerado obsoleto para a Física atual e presente na história da ciência desde os primeiros modelos de céu criados pelos filósofos gregos.

Éter luminífero


Antes de Newton acreditava-se que a luz se propagaria pelo universo através de uma série de ondas de choque no chamado éter luminífero – todo o Universo seria preenchido por essa misteriosa substância que, mais do que um meio através tudo se propaga e se arrasta, seria um reino pré-físico que converteria a energia em forma material. A Natureza abomina o vácuo, disse certa vez Aristóteles.

Newton formulou as três Leis do Movimento baseado na existência do vácuo: se os planetas se mantêm na órbita do Sol apenas pela inércia, é inconcebível a existência de algum tipo de atrito com uma substância no espaço pois, caso existisse, haveria desaceleração e os planetas cairiam em direção ao Sol. Dessa maneira, a ideia do vácuo tornou-se indiscutivelmente correta, e permanece inquestionável até hoje.


Dissidentes da Relatividade


Nomes dissidentes da Teoria da Relatividade como o inglês Christopher Caldwell perceberam que apesar de Einstein ter mostrado que as dimensões absolutas de Newton (massa, atomismo, tempo, espaço, gravidade) fossem na verdade relativas, isso não o fazia acreditar que tudo no Universo fosse relativo. Todo o trabalho de Einstein foi combater as suas próprias descobertas da relatividade, eliminando qualidades relativas de modo a alcançar no final uma fundação firme e absoluta – sobre isso clique aqui.

Einstein substituiu tanto a noção de éter como a de vácuo pelo continuum tempo-espaço preenchendo o vazio com deformações e ondas gravitacionais, termos bem mais elegante do que uma velha e mística noção etérica. E acrescentou a constante cosmológica (uma “energia do vazio”) e a velocidade da luz como constante e insuperável – nada pode ser mais rápido do que a luz.

Porém, parece que a velha noção de éter sempre retorna na Física. Após o famoso teste Michelson-Morley que 1887 a noção de éter foi refutada definitivamente da ciência por não ter sido verificado algum tipo de “vento etérico” no arrasto da Terra por esse suposto meio cósmico. Porém, em 1925 um experimento de interferômetro feito por Michelson-Gale detectou esse arrasto devido à rotação da Terra. Porém, para os partidários da Relatividade, o experimento nada acrescentaria por não ser a Terra um referencial inercial.

O desempate entre Éter e Relatividade


Havia um empate nessa disputa: tanto a teoria do éter quanto a da relatividade de Einstein podiam explicar os resultados de ambos experimentos. Precisava-se de um golpe decisivo que levasse ao desempate.

Interferômetro da Dayton Miller nos anos 1920
E veio em meados da década de 1920 e não relatada em livros didáticos: no topo de uma montanha perto do Observatório Monte Wilson, Califórnia, Dayton Miller vez um novo e mais preciso experimento de interferometria. O resultado demonstrou que o planeta estava se movendo através de um éter arrastado que reduziu sua velocidade de 200 km/s no espaço para 10 km/s na superfície.

A teoria da relatividade não pode explicar esse resultado e acredita-se que o trabalho cuidadoso de Miller por vinte anos lançou uma sombra de dúvidas sobre a Teoria da Relatividade e impediu que Einstein recebesse o Prêmio Nobel pelo seu trabalho sobre a Relatividade – na verdade Einstein recebeu o prêmio, mas foi sobre o seu trabalho sobre o efeito fotoelétrico.

A velocidade superior à luz de Nikola Tesla


Outro dissidente de Einstein, Nikola Tesla (físico e inventor da corrente elétrica alternada e da comunicação sem fio – 1856-1943), acreditava no conceito do éter onipresente. Foi o precursor do modelo da estrutura do átomo como semelhante a sistemas solares e o efeito fotoelétrico – nenhum texto padrão na história da Física menciona Tesla, embora essas ideias mais tarde levassem ao prêmio Nobel físicos como Rutherford, Bohr e Einstein.

A noção de éter onipresente na visão de mundo de Tesla levou a uma série de diferenças fundamentais com Einstein. Primeira delas a de que a velocidade da luz era insuperável. Na virada do século Tesla acreditava ter interceptado “raios cósmicos” emanados do Sol e que atingiam velocidades superiores a da luz.
Nikola Tesla
Na última década da sua vida acreditava que esses raios cósmicos poderiam ser aproveitados para gerar energia elétrica, dentro da sua concepção de energia livre e do próprio planeta como meio de transmissão sem fio dessa energia.

No perturbador experimento de 1899 com a torre de transmissão Wanderclyffe em Colorado Springs foram transmitidos 10 milhões de volts através da Terra: a velocidade teria sido superior à da luz – os polos terrestres interagiram instantaneamente. Tesla passou a descrever os fenômenos que manipulava por conceitos sânscritos como “Akasha”, “Prana” ou “éter luminífero” para descrever a fonte de energia que construiria toda a matéria – sobre isso clique aqui.

Teoria da Relatividade abalada


Mas a prova concreta de como a Relatividade pode ser violada veio com um dos fundadores da física quântica George Gamow no seu livro divisor de águas chamado Thirty Years That Shook Physics ( Os Trinta Anos Que Abalaram a Física). Gamow descreve como Goudsmit e Uhlenbeck descobriram que não só os elétrons estão em rotação como também estavam girando a velocidades superioras a da luz – para adquirir o livro clique aqui.

Nenhum físico fala sobre isso. O que significa que toda a evolução da Física no século XX e no nascente século XXI está evoluindo ignorando a constatação dessa dupla de físicos. E, mais ainda, ignorando as possíveis ramificações das interfaces das partículas elementares – a de que partículas giram a velocidades superioras a da luz porque retiram a energia do mundo pré-físico do éter, convertendo energia em matéria.

Por tudo isso, a fantástica descoberta do LIGO não é tanto uma “confirmação das teorias de Einstein de 100 atrás” como bombasticamente a grande mídia promoveu o evento científico. A descoberta das ondas gravitacionais como fenômeno físico e palpável suscita esse confronto de séculos na Física entre o modelo do éter onipresente contra o vácuo de Newton e o espaço-tempo de Einstein; entre a energia direcionada e contida e a energia livre e onipresente por todo Universo.

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Nos labirintos da Nova Idade Média com Umberto Eco

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Falecido aos 84 anos nessa sexta-feira em Milão, Umberto Eco criou um projeto inédito: o encontro da Semiótica com o Medievalismo. Especialista em Idade Média, Eco  afirmava que procurava encontrar aspectos medievais no presente. O que levou a criar o seu projeto semiótico em uma simples definição: “é a disciplina que, a princípio, estuda tudo aquilo que possa ser usado para mentir”. Por isso, o frade detetive do livro/filme “O Nome da Rosa” tornou-se a síntese daquilo que Umberto Eco buscou em toda vida: leitores críticos que conseguissem escapar dos labirintos medievais das interpretações que fingem ser verdades e que apenas replicam “autorictas”. Eco testemunhou no final a criação da nova versão desse labirinto - a Internet. E alertou a necessidade de um novo leitor crítico que encontrasse uma nova saída desse labirinto: a Teoria da Filtragem.

A Idade Média sempre foi uma constante obsessão para o chamado “mago de Bolonha”. Embora Umberto Eco escrevesse com a mesma desenvoltura temas tão diversos desde tratados de estética medieval, ensaios sobre histórias em quadrinhos e cultura de massas, passando pelos fenômenos da significação na Semiótica e linguística e chegando à ficção ao se tornar romancista de sucesso mundial com livros como O Nome da Rosae O Pêndulo de Foucault, seus conhecimentos de medievalista sempre serviram como uma lente através da qual analisava qualquer tema.


O blog Cinegnose conheceu Umberto Eco a partir do seu livro Viagens na Irrealidade Cotidiana onde o texto “Televisão: A Transparência Perdida” e seus conceitos de Paleotevê e Neotevê são preciosas ferramentas para dissecar a atual irrealidade midiática.

Umberto Eco dizia que sua preocupação constante era ver aspectos medievais em coisas que aparentemente eram modernas. Nesse livro isso fica explícito no texto “A Nova Idade Média” – na irrealidade cotidiana a televisão deixaria de ser uma janela aberta para o mundo na medida em que falaria apenas de si mesma em um labirinto de metalinguagem e eventos-encenação.

Fechadas nas suas casas e inseguras com o mundo lá fora, as pessoas veriam apenas TV tentando se conectar com a transparência perdida do mundo, mas apenas se fechariam cada vez mais como estivessem em castelos medievais fortificados, amedrontadas com as hordas bárbaras nômades.


A epifania da estrutura ausente


Seja estudando a estética medieval de Tomás de Aquino, a cultura de massas, a Semiótica ou as chamadas “ciências banidas” (ocultismo, sociedades secretas, mesmerismo, esoterismo e magia), Eco preocupava-se em entender a sensibilidade de nossa época baseada na perda da integridade, da globalidade, da troca da sistemacidade ordenada pela instabilidade, polidimensionalidade, mutabilidade – uma cultura que expressa a catástrofe, teoria do caos, estruturas dissipativas, relatividade, fragmentações quânticas. Aquilo que Eco chamava de “epifania da estrutura ausente” que nos ensinaria algo sobre o mundo.

Uma sensibilidade que um outro autor italiano, Omar Calabrese, chamava de “sensibilidade neobarroca”. Umberto Eco via nessa sensibilidade uma espécie de labirinto medieval (diferente do labirinto clássico grego onde o fio de lã Ariadne é a solução para achar o caminho de volta), um labirinto maneirista como múltiplas ramificações de uma árvore. Onde nos perdemos nas múltiplas interpretações e tiramos prazer disso. O prazer em se perder e abandonar as noções de verdade, fidelidade ou originalidade.

Obra Aberta


Eco fez seu doutorado na década de 1950 fazendo um leitura da estética medieval em São Tomas de Aquino onde a obra de arte e o belo são analisado pela “sensibilidade da época”, marcada pela luz e transcendência num mundo fugaz e frágil.

Nos anos 1960 Eco publicou Obra Aberta, coletânea de artigos sobre poética da arte contemporânea. Sua obsessão pela Idade Média paradoxalmente o levou a arte de vanguarda onde o objeto artístico se abre a múltiplas leituras ou interpretações pelo receptor – obras de arte ambíguas e auto-reflexivas. Assim como Dante construiu a Divina Comédia antecipou certas possibilidades de leituras, no entanto a obra deveria apontar para um sentido unívoco.

Essa tensão entre fidelidade e liberdade interpretativa exigiria um leitor crítico que se diferenciaria do ingênuo – apesar da ambiguidade e liberdade, a arte exigiria uma competência para fruição estética.


Apocalípticos e Integrados


 Isso levou Eco à discussão sobre a cultura de massas no livro Apocalípticos e Integrados: examina o fenômeno da cultura de massas procurando mediar as posições entre os frankfurtianos que acreditavam que a indústria cultural levaria à alienação e dominação (os “apocalípticos”) e os funcionalistas norte-americanos que ela favoreceria a democratização do saber (os “integrados”).

Eco faz um exercício interpretativo e vê validades nos argumentos de ambos os lados. Parece haver nesse livro uma linha de continuidade com Obra Aberta: também a própria cultura de massas cria ambiguidade e auto-reflexividade – ela pode ser ao mesmo tempo condenada e valorizada.

Guerrilhas Semiológicas


Essa ambiguidade do produto da indústria cultural de Apocalípticos e Integrados somada a necessidade da existência de um leitor crítico leva Eco a escrever o pequeno texto chamado Guerrilhas Semiológicasem 1967. Nesse manifesto de política midiático, Eco vislumbrava a possibilidade de organização educativa conseguir fazer um determinado público discutir a mensagem que está recebendo da TV e inverter o seu significado. Ou mostrar que a mensagem pode ser interpretada de diversos modos. Para Eco, pouco importava dominar a fonte da informação: era necessário criar guerrilhas semiológicas de “porta em porta” para inverter o sentido das significações e desarmar as ideologias.

Essas possibilidades de interpretações infinitas das “obras abertas” o fez mergulhar na crítica ao estruturalismo e na aproximação da Semiótica a partir de 1968 com A Estrutura Ausente. A partir desse livro derivariam todas as outras obras nos anos 1970: As Formas e os Conteúdos (1971), O Signo (1973) e depois a obra mais bem elaborada sobre o tema: Tratado de Semiótica Geral (1975).

No lugar do valor ontológico de estruturas e da referencialidade do signo, Umberto Eco vai preferir estudar a noção de interpretante em Peirce e o processo de semiose como contínua produção de sentido – Eco abandona a noção de signo (como algo que está para algo), enfraquece a ideia de correspondência, e passa a se debruçar na ideia de semiose como um processo virtualmente infinito de interpretações e produção de novos significados.


Semiótica e a mentira


Diante da “falácia referencial” dos linguistas, Eco vai definir a Semiótica como “a disciplina que, a princípio, estuda tudo que possa ser usado para mentir” (Tratado Geral de Semiótica, p.8).

Haveriam no mundo diferentes interpretações ou “verdades semióticas”, o que torna o estudante semiótico um detetive tal como o frade Guilherme de Bascerville do seu livro O Nome da Rosa. Um detetive que não busca o sentido último dos signo, mas denuncia como as interpretações podem se fazer passar como verdade única – como fossem juízo de fato e não um juízo semiótico, ou seja, uma significação social entre outras.

Dessa maneira, os signos podem matar, assim como os monges copistas em Nome da Rosa envenenados pelo veneno colocado nas páginas do livro herético.

O detetive do livro O Nome da Rosaque tenta resolver as mortes em série dos monges copistas em plena Idade Média é a síntese do projeto semiótico de Umberto Eco associado a sua obsessão pela estética medieval.

Por exemplo, o recurso da “Autorictas” na cultura medieval que ressurgiria na “Nova Idade Média” atual: o discurso medieval era constituído por grandes monólogos de citações de autoridades, mantendo o mesmo léxico, a mesma retórica, o mesmo argumento. Era uma forma como o medieval reagia à desordem e à dissipação cultural da decadência do Império Romano – leia “A Nova Idade Média”, In: Viagens na Irrealidade Cotidiana.


A semiose infernal


Hoje, esse recurso se repete sob a roupagem da “falácia referencial”: através de maneirismos, bricolages, pastiches etc. produzem-se novas significações através da repetição. Se na Idade Média a repetição da “Autorictas”, hoje é escondida sob a patina das diferentes opiniões, métodos e o monopólio econômico e midiático.

No seu recente livro O Cemitério de Praga (2011) esse projeto semiótico fica evidente: como um texto forjado como O protocolo dos Sábios do Siãocriou uma semiose infernal: serviu de base para o antissemitismo que fez desembocar na doutrina nazista que se desdobrou em uma máquina de propaganda. 


Por isso, no final da vida Umberto Eco via a Internet como uma semiose selvagem e perigosa: informações excessivas  e sem hierarquia, onde a criação de novas significações transformou-se em replicações, como na autorictasmedieval.

Se nos anos 1960 Eco propunha as “guerrilhas semiológicas”, no final o “mago de Bolonha” acreditava na urgência da criação de uma “Teoria da Filtragem” diante da semiose selvagem nas novas tecnologias. Então, todos nós nos transformaríamos no frade franciscano detetive Guilherme de Bascerville de O Nome da Rosa: encontrar o verdadeiro conhecimento no meio das repetições que criam a falácia semiótica da verdade.

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Curta da Semana: "Em" - o Tempo que nos separa

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O curta “Em” (2013), do coletivo de cinema paraense “Quadro A Quadro”, leva às últimas consequências o significado dessa preposição: a intensidade do amor e do prazer se sucedem nos breves instantes da vida de um casal, mas o Tempo irá corroer até tudo extinguir, dividindo-os assim como a faca que corta o pão. Livremente inspirado na poética do paraense Max Martins, o curta consegue, através da linguagem audiovisual, expressar um tema tão abstrato: como o Tempo manifesta-se dentro de nós. Como introjetamos em nós essa falha cósmica - destruição, dissipação, morte, entropia.


“Em” – (prep.): Indica o lugar onde, meio, modo, sucessão, tempo, causa, estado, fim, divisão.

De um lado a intensidade carnal do sexo e do amor; do outro, as abstrações do tempo e da memória. Momentos de intenso prazer, satisfação e ludismo. E a ameaça do Tempo que irá acabar com tudo isso e nos separar.

O título “Em” para o curta de Raquel Minervino, do coletivo paraense de cinema Quadro a Quadro, não poderia ser melhor. Como toda preposição, “em” estabelece uma relação de tempo, causa ou sucessão entre elementos de uma frase. Liga elementos que não teriam sentido se fossem dissociados ou individualizados – no caso do curta o amor e o tempo, o prazer e o fim.

O curta Emé uma reflexão metafísica livremente inspirado em poema do também paraense Max Martins. Reconhecido pela sua poética em torno do tempo e do silêncio, Max Martins (1926-2009) perseguia uma obsessão do Romantismo, embora tivesse tivesse trilhado pelo caminho do Modernismo e Concretismo: como o homem pode expressar aquilo que está além da linguagem? Deus, amor, prazer etc. podem ser expressos pela linguagem humana?


Esse é o desafio do curta Em: mostrar como são indissociáveis o prazer, o amor, o tempo, o fim e a memória. Vivemos prazeres intensos, amores verdadeiros. Mas o tempo leva embora tudo isso nos cortando, nos separando, assim como a faca que corta o pão.

O curta mostra um casal vivendo momentos intensos em uma casa: o sexo, corpos que se tocam, a brincadeira com o cachorro, ler um livro a dois e brincar juntos. A câmera perscruta esses momentos em big close-ups e planos em detalhes. Tenta transmitir as intensidades dos momentos daquele casal.

Mas o tempo é a faca que corta o pão: os planos aos poucos começam a ficar em tons escuros e contrastes fortes. As discussões entre o casal começam. “Como uma coisa tão boa pode não funcionar mais”, lamentava em 1980 Ian Curtis na música Love Tear Us Apart da banda pós-punk Joy Division. O curta Em nos faz lembrar dessa poética desesperada de Ian Curtis que, assim como o curta, via o Tempo como algo que pode nos despedaçar.

E finalmente a separação e a morte do amor. Por fazer essa contraposição entre o físico e o espiritual, o carnal e o abstrato, o curta adquire esse viés metafísico sobre o amor: por que o Tempo arranca de nós todos esses momentos de amor e prazer intensos? Por que só nos resta a memória que, por sua vez, é constantemente corroída pelo Tempo?


O Tempo está em nós? O curta faz esse alerta, citando a poesia de Max Martins. Nada mais gnóstico do que essa reflexão proposta por Raquel Mervino: o Tempo é a falha cósmica, aquilo que leva tudo à destruição, dissipação, morte, entropia. Para os gnósticos, é a prova que a Criação é imperfeita, porque obra de um Demiurgo que tentou fazer uma cópia da Plenitude, falhou e manteve o homem prisioneiro em um grande engano.

Se o amor, a alegria, o prazer são o élan da alma que mantém esse cosmos em funcionamento, o Tempo será aquilo que nos roubará essa fagulha espiritual. Nos jogará nas trevas da morte para sermos obrigados a recomeçar tudo de novo do zero, do esquecimento – chamam isso de “reencarnação”.

Por isso o curta Emé lindo e poético mas, ao mesmo tempo, lúgubre e pessimista: a vida não opera por soma, mas por subtrações. Exige o melhor de nós (alegria, disposição, amor, vitalidade, boa-fé, brilho, confiança) para depois arrancar tudo aquilo que foi construído por essa nossa entrega. Arrancado pelo Tempo, que nos separa e nos faz esquecer.


Ficha Técnica


Título: Em
Diretor: Raquel Minervino
Roteiro: Raquel Minervino
Elenco:  Raoni Moreira, Vittória Braun
Produção: Cassio França, Marcelo Tavares,Rafael Samora, Raquel Minervino, Tiago Freitas e Vince Souza, Rodolfo Mendonça
Trilha: Vinícius Moraes
Ano: 2013
País: Brasil

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Em "Cavaleiro de Copas" a bebida do esquecimento que enche nossos copos

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Livremente inspirado no Tarot e num poema gnóstico cristão do século II chamado “Hino da Pérola”, o filme “Cavaleiro de Copas” (2015) mostra como a crise criativa de um roteirista de Hollywood pode ser o início de uma reflexão sobre o vazio existencial do sucesso material. O protagonista Rick (Christian Bale) vaga por uma Los Angeles e Las Vegas como um estrangeiro em um deserto e percebe como a indústria do entretenimento levanta espelhos e cenografias que não nos deixa ver o que está por trás: horizontes e pontos de fuga. Tal como nos fala os versos do “Hino da Pérola”, é a bebida que enche o nosso copo diário de esquecimento. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.


Enviado pelo seu pai, o Rei do Leste, um cavaleiro foi ao Egito encontrar uma pérola. Uma pérola das profundezas do Oceano. Mas quando lá chegou, o povo serviu-lhe um copo com uma bebida que lhe tirou a memória: esqueceu que era filho do Rei. Esqueceu também da pérola e caiu em um sono profundo.

Mas o Rei não esqueceu do seu filho. Continuou a enviar sinais, mensageiros, guias para tentar lembrá-lo. Mas o príncipe continuou dormindo.

Esse é um resumo do poema gnóstico cristão chamado “O Hino da Pérola”, escrito no século II D.C. Ao lado da Alegoria da Caverna de Platão, a imagem criada por esse poema sobre condição humana como um exilado sem memória da sua terra natal e perdido em um cosmos estrangeiro é um dos mitos mais fortes do Gnosticismo.

O filme Cavaleiro de Copasinicia com uma narração em off do resumo desse “Hino da Pérola” para apresentar o vazio existencial de Rick (Christian Bale), um financeiramente bem sucedido roteirista hollywoodiano.  Inspirado também no livro Pilgrim’s Progress from This World to That Which is to Come de 1678, narra a “jornada perigosa” de Rick na tentativa de juntar os fragmentos da sua vida e tentar responder uma pergunta: onde foi que eu errei?


O diretor Terrence Malick nos mostra a ausência de sentido por trás de sucesso material, festas, amigos e linda mulheres na vida de um profissional da indústria do entretenimento.

Mas o filme, com uma linguagem bem experimental (repetidos zoom in e deslocamentos dos planos em stad cam, além da montagem  solta e fragmentada que chega a cansar o espectador em muitos momentos), pretende fazer uma reflexão metafísica e tornar o drama de Rick como o próprio drama da condição humana – a jornada humana pelos “desertos do mundo” como fosse um exilado que tenta juntar os pedaços para achar uma saída.

Malick consegue transformar  lindos cartões postais californianos como praias, por de Sol, o skyline de Los Angeles etc. em desolados desertos através dos quais o protagonista Rick vaga como fosse um estrangeiro em um deserto.

Rick cruza os desertos urbanos e geográficos nas feéricas Las Vegas e Los Angeles como o caçador da pérola de que fala o poema gnóstico do século II. E a pérola é a busca da memória perdida do porquê a humanidade se encontra perdida nesse planeta.

Se no filme Número 9 esse tema AstroGnóstico (o homem como uma criatura celeste prisioneira na Terra) é sugerido, em Cavaleiro de Copasé explícito ao fazer referência direta ao Hino da Pérola e comparar a jornada humana como a do peregrino em busca da Cidade Celestial.

O Filme


O título do filme refere-se a carta de Tarot que descreve um romântico cavaleiro governado pelas emoções ao invés da lógica. É sobre um profissional da indústria do cinema bem sucedido (pode ser um roteirista, mas no filme há evidências de ser um diretor) com algum tipo de bloqueio criativo.

Ele vagueia em torno de Los Angeles, praias e o deserto de Las Vegas para ter encontros fugazes com muitas mulheres (todas invulgarmente belas), homens (seu pai, o irmão e uma dupla de agentes) para tentar remendar os fragmentos da sua vida. E responder a uma simples pergunta: “onde foi que eu errei?”.


Os encontros aleatórios parecem ser organizados em capítulos indicados por uma carta de Tarot que representa o personagem-chave que marcará a sua jornada: A Lua (Della, a jovem rebelde; O Enforcado (seu irmão e seu pai); O Eremita: Tonio (Antonio Banderas), um playboy amoral; O Julgamento: sua ex-esposa Nancy (Cate Blanchett); A Torre: Helen, a modelo serena; A Alta Sacerdotisa: Karen, a stripper; A Morte: Elizabeth (Natalie Portman), a mulher injustiçada do passado.

Malick faz um paralelo entre as cartas do Tarot e a viagem interior do protagonista, lembrando bastante a abordagem que o psicanalista Carl Gustav Jung fazia do Tarot: as cartas representam cada um dos arquétipos humanos que compõem a nossa personalidade. Todos eles estão em nosso psiquismo, sendo que um ou uma constelação de arquétipos passam a determinar a matriz da nossa personalidade.

A bebida do esquecimento


Mas Cavaleiro de Copas não é apenas uma jornada lírica interior: o protagonista Rick está no coração da cidade que produz a bebida que é posta no copo que bebemos para perdermos a memória, como nos conta os versos do Hino da Pérola– Hollywood, a indústria do Entretenimento e a sua faceta mais bizarra: Las Vegas.

No filme é como se o homem levantasse espelhos diante de si mesmo, criando narcisismo e esquecimento do que o homem já foi. Rick vagueia por sets de filmagens, cidades cenográficas e o seu paroxismo: Las Vegas, a cenografia da cenografia da cenografia... Para Malick essa é a fonte de todo esquecimento: cenografias e espelhos que escondem o que há por trás e os possíveis caminhos que o levariam a busca final.


Apesar dos encontros de Rick parecerem ora aleatórios, ora repetitivos, Malick dá um sentido à narrativa - o tempo inteiro procura contrastar as imagens frias e duras do ambiente urbano e as ricas paisagens naturais de beleza intocada.

A ideia que une tudo é a mitologia do Deserto: a cidade e seus interiores são mostrados tão áridos e vazios como as praias e regiões desérticas fora de Los Angeles. O deserto é a jornada do peregrino em busca da Cidade Celestial. Mas os espelhos e cenografias escondem esse horizontes e pontos de fuga: são apenas imagens e cenografias, a bebida do copo que bebemos todos os dias para esquecermos.

A ironia do filme é que o protagonista Rick é também um dos produtores dessa bebida: seu bloqueio criativo, seu mal estar e tédio são os sintomas que tentam alertá-lo de que há algo errado com esse mundo.


O Viajante, o Detetive e o Estrangeiro


Uma outra ironia: Rick também foi o nome de um personagem (Rick, no filme Casablanca, 1942) representado pelo ator que é sinônimo do detetive dos filmes noir - Humphrey Bogart. Aqui começa o desfile dos personagens gnósticos do Detetive, do Viajante e do Estrangeiro.

Rick é o Detetive que pretende juntar as peças do quebra-cabeças e descobrir a resposta à pergunta fundamental: onde errei?

Viajantes cruzam a sua vida. Como em todo filme que se orienta por essa mitologia gnóstica contemporânea, o viajante é aquele personagem que vem de terras distantes e que, por isso, é capaz de mudar o olhar banalizado do protagonista. Como a personagem Karen, a stripper australiana com o brilho e élan da alegria infantil, que injeta ânimo à jornada interior de Rick.

E no final a própria condição estrangeira de Rick que o diretor pretende no filme elevá-la à própria condição do gênero humano: apesar de toda bebida produzida pela indústria do entretenimento que enche diariamente os nossos copos, mensageiros e guias tentam nos fazer lembrar que ainda devemos buscar a pérola no fundo do Oceano. Filmes como Cavaleiro de Copasé uma dessas tentativas de nos fazer acordar do sono do esquecimento.


Ficha Técnica


Título: Cavaleiro de Copas
Diretor: Terrence Malick
Roteiro: Terrence Malick
Elenco:  Christian Bale, Cate Blanchett, Natalie Portman, Antonio Banderas, Brian Dennehy, Freida Pinto, Teresa Palmer
Produção: Dogwood Films
Distribuição: Broad Green Films
Ano: 2015
País: EUA

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No filme "Spotlight - Segredos Revelados" um réquiem para o Jornalismo

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As representações do Jornalismo feitas por Hollywood sempre foram ambíguas, com uma tendência ao negativo. Isso deve ser levado em consideração ao analisarmos o Oscar de Melhor Filme para “Spotlight – Segredos Revelados”. O filme muda o foco sobre o escândalo do acobertamento de padres pedófilos pela Igreja Católica para mostrar o porquê de repórteres e editores do jornal Boston Globe terem ignorado essa pauta tão explosiva no passado. O filme é sobre a culpa de uma comunidade e do seu jornalismo por terem involuntariamente colaborado com o acobertamento de um escândalo e como “estrangeiros” (um editor judeu e um advogado armênio) sem laços com a comunidade terem conseguido perceber isso. “Spotlight” é um réquiem ao velho jornalismo local e comunitário, agora substituído pela Internet.  

Ao lado da forte história sobre abusos de crianças acobertados pela Igreja por décadas (se não séculos), para quem é jornalista assistir ao filme Spotlight – Segredos Revelados provoca sentimentos nostálgicos: clippings de notícias pré-web, repórteres pesquisando em arquivos empoeirados e gastando a sola dos sapatos correndo pelas ruas atrás das fontes, jornalistas pendurados ao telefone, rotativas e caminhões levando pilhas de jornais recém-impressos cuja edição mostra na primeira página matéria resultante de longas investigações.

Faltou apenas o grito “Parem as rotativas!” clássico do velho jornalismo analógico onde repórteres passavam mais tempo nas ruas checando informações do que nas redações “cozinhando” press-releases.

Muito comparado ao filme épico do jornalismo investigativo Todos Os Homens do Presidente (1972), Spotlight guarda uma diferença fundamental: enquanto lá nos anos 1970 filme tinha um ar documental e paradigmático do tempo ainda forte do Jornalismo, aqui o premiado Oscar de Melhor Filme transmite uma atmosfera de fim de época.


O Filme


O filme inicia com a chegada de um novo editor (Marty Baron – Liev Schreiber) ao jornal Boston Globe num diálogo com chefe da equipe investigativa chamada “Spotlight” , Walter Robinson – Michael Keaton. Há o medo da demissão e a preocupação da perda de leitores para a Internet. Sua missão é tornar o jornal “essencial para os leitores locais”. Baron torce o nariz ao saber que a equipe Spotlight demora meses para encontrar uma nova pauta e está preocupado com a perda dos classificados do jornal.

“Ele é judeu, não é casado e odeia beisebol”, como jocosamente comentavam os repórteres nos bastidores sobre o novo editor que claramente está ali para tentar salvar o Boston Globe diante dos novos tempos do século XXI.

A redação do jornal é formada essencialmente por jornalistas que cresceram, estudaram e vivem na cidade onde o tema das rodas conversas goram em torno do último jogo da temporada de beisebol ou sobre a consulta médica de um amigo. Baron sabe que esse provincianismo é uma barreira para o novo tempo global que a Internet prenunciava no início do século - a história se passa em 2001.

E ele confronta a equipe Spotlight com uma pauta que fora desprezada pelo jornal e que precisa ser retomada: a velha história de um padre (John Geoghan) sobre quem se multiplicam acusações de abuso infantil e que tem um potencial de se transformar em um escândalo global – os documentos podem revelar um esquema sistêmico da Igreja para acobertar padres pedófilos.

Para jornalistas que vivem em Boston e que cresceram com grande deferência à Igreja Católica, levar esse tema às últimas consequências é assustador: “Você que processar a Igreja?!?!”, exclama assustado um dos editores do jornal.


Hollywood e o Jornalismo


As representações que Hollywood faz sobre o Jornalismo nas telas sempre foram, no mínimo, ambíguas: o jornalistas são investigativos, ousados e aventureiros; mas também cínicos, inescrupulosos, alcoólatras e arrogantes.

Por isso, o Oscar de Melhor Filme a esse episódio real da revelação do sistemático acobertamento pela Igreja de inúmeros casos de pedofilia  deve ser relativizado: com essa premiação Hollywood na verdade tocou um réquiem para o fim de uma era do jornalismo – a crise do jornalismo analógico, local e comunitário substituído pelo digital e global das novas tecnologias. Ironicamente, aquilo que o filme consagra (a lenta e cuidadosa investigação, a precisão e checagem das informações) na verdade é um mundo que deixa de existir justamente pela urgência demonstrada pelo novo editor Marty Baron – paradoxalmente, tornar o jornal “essencial para os leitores locais” é trazê-lo para as pautas do mundo on line onde justamente esses valores jornalísticos que o filme consagra deixam de existir pela velocidade e imediatismo.

Mudança de foco


Diferente do documentário de 2012 Mea Maxima Culpa: Silence in The House of God (onde Alex Gibney sugeria que o Vaticano manteria registros sobre abuso de crianças por padres desde o século IV), Spotlight muda o foco. A Igreja é representada no filme de forma abstrata como “todo o sistema” e os choques do jornal com a instituição católica são apenas mostrados de passagem.

A narrativa concentra-se mais na questão de como uma comunidade inteira pode tornar-se cúmplice de crimes tão abomináveis. “Se toda a comunidade educa uma criança, toda a comunidade abusa dela ”, diz a certa altura o advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci) cujos clientes enfrentam uma conspiração de silenciamento pelos membros da alta sociedade de Boston.


Spotlight quer mostrar como a própria força do jornal Boston Globe (sua redação formada por jornalistas que nasceram e vivem na própria cidade que lê o jornal) foi a sua fraqueza: silenciosamente a vida na comunidade fez ignorar uma notícia que há muito tempo deveria ter merecido uma primeira página.

Estrangeiros


O ator-diretor Tom McCarthy parece ter sido o nome certo para o projeto desse filme: ele é um especialista em personagens outsiders ou estrangeiros – Em O Agente da Estação (2003) um exilado se muda para uma estação de trem abandonada em busca de solidão e se torna o catalisador de mudanças inesperadas; em O Visitante (2007) um professor tem sua vida inesperadamente mudada quando descobre que em seu apartamento moram ilegalmente um casal de estrangeiros (uma senegalesa e um sírio).

Dessa vez em Spotlight temos um editor judeu e Garabedian, advogado armênio, que no filme são também catalisadores de mudanças numa comunidade em que segredos são abafados por festas e confraternizações sociais onde “uma mão lava a outra”. Tudo cimentado ideologicamente pelo fervor religioso e pela costumeiras missas de domingo. Como fala-se em uma linha de diálogo a certa altura do filme, só mesmo estrangeiros vindos de fora daquela comunidade poderiam enxergar algo que todos recusavam ver.

Se historicamente Hollywood cria representações no mínimo ambíguas sobre o Jornalismo (com uma tendência ao negativo), devemos levar em consideração essa perspectiva ao analisar o Oscar de Melhor Filme a Spotlight – Segredos Revelados. O filme é impiedoso sobre a forma como os jornalistas do Boston Globe foram também envolvidos pelo jogo do “uma mão lava a outra” que manteve por décadas os terríveis segredos envolvendo padres naquela comunidade.


A ironia de “Spotlight”


Se por um lado podemos considerar Spotlightum filme que presta homenagem ao velho jornalismo investigativo tal como em Todos os Homens do Presidente, por outro a ameaça da Internet ao jornal (citada no início do filme) e o paroquialismo e provincianismo que fizeram o jornal perder uma boa história no passado apontam para uma crítica que está latente: o velho jornalismo comunitário e local deve ser substituído pelo jornalismo global, livre das limitações regionais como laços de amizades e familiares.

No final, Marty Baron sentencia a moral da história: “passamos a maior parte do tempo tropeçando no escuro. Uma hora a luz se acende e sobra uma boa porção de culpa para distribuir”. Quem acendeu as luzes foram estrangeiros, solitários e sem laços familiares ou de amizades com aquela comunidade.

O Global se sobrepõe ao Local, no prenúncio do que se tornaria o Jornalismo com a Internet e a Globalização. Nessa perspectiva, Spotlighté um réquiem a um estilo de Jornalismo que desaparece com a transnacionalização das empresas de comunicação – jornalistas agora “cozinhando” informações enviadas por terminais globais, todos sentados ao invés de gastarem suas solas de sapato e paciência checando dados em arquivos empoeirados.

Essa é a ironia do filme premiado pelo Oscar: uma homenagem a um Jornalismo que não existe mais.



Ficha Técnica


Título: Spotlight – Segredos Revelados
Diretor: Tom McCarthy
Roteiro: Josh Singer, Tom McCarthy
Elenco:  Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachael McAdams, Liev Schreiber,  John Slattery, Stanley Tucci
Produção: Anonymous Content, First Look Media
Distribuição: United International Pictures
Ano: 2015
País: EUA

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Lula prisioneiro em narrativa transmídia da série "House of Cards"

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Cinco horas da manhã de sexta-feira: o Netflix libera no Brasil a quarta temporada da série “House of Cards”. Uma hora depois a TV Globo começa a transmitir ao vivo a 24a etapa da Operação Lava Jato onde 200 agentes da Polícia Federal rumam a São Bernando/SP para o ex-presidente Lula ser alvo de condução coercitiva para “prestar depoimentos”. Coincidência? Sincronicidade? Para os fãs a série do Netflix apresenta semelhanças com a atual crise política brasileira. E o cálculo midiático da vara judicial de Curitiba parece saber disso. Se isso for verdade, a Operação Lava Jato demonstra ser uma grande operação semiótica: da narrativa tradicional em três atos de um reality show, agora está evoluindo para um tipo especial de narrativa transmídia conhecida como “Alternate Reality Game” (ARG) – Jogo de Realidade Alternativa. Objetivo: criar uma "zona incerta"entre ficção e realidade que faça alusões ao universo de filmes e séries  para dar legitimidade ficcional a ações que carecem de base jurídica.

Que a Operação Lava Jato é antes de tudo um show midiático sob o pretexto de combater a corrupção, não restam dúvidas a cada vazamento seletivo de informações para a grande mídia cujos âncoras dos telejornais chamam cinicamente de “investigações sigilosas”.


Depois de paralisar a economia do País com a prisão de empreiteiros envolvidos com obras de infraestrutura nacional, fazer os investimentos no setor elétrico cair 30% com o enquadramento da Eletrobrás, comprometer o estratégico programa nuclear brasileiro com a prisão do engenheiro Othon Pinheiro da Silva e transformar-se numa espécie de reality show televisivo diário, agora o juiz Sérgio Moro e sua Operação Lava Jato chegaram ao estado da arte: evoluiu do reality show comum para uma narrativa transmidiática – o Alternate Reality Game (ARG), Jogo de Realidade Alternativa. 

A condução coercitiva do ex-presidente Lula para “depor” no Aeroporto de Congonhas às 8h30 da manhã (na verdade seria levado direto à carceragem do juiz Sérgio Moro em Curitiba) era para ser mais um show midiático - combinado com o editor da revista Época (que já anunciava a operação no twitter na madrugada de sexta) e roteirizado pela TV Globo que já entrava com imagens aéreas de São Bernardo/SP às seis da manhã.


Lava Jato Transmídia


Mas dessa vez a 24a etapa da Operação Lava Jato contou com uma novidade, uma estratégia transmidiática: às cinco horas da manhã da sexta-feira, uma hora antes da TV Globo entrar ao vivo, a plataforma de streaming Netflix liberava no Brasil a quarta temporada da série House of Cards sobre um operador político dos Democratas, Frank Underwood, que força a renúncia do presidente para assumir o poder na Casa Branca - série já analisada pelo Cinegnose - clique aqui.

Mera coincidência?  Evento sincromístico? Ou estratégia deliberada para a narrativa ficcional de uma série de Internet criar um paradoxal “efeito de realidade” à narrativa televisiva?

O fato é que dessa vez uma operação da Polícia Federal não contou apenas com nomes insólitos ou mitológicos como essa 24a etapa (“Alethea”, expressão grega para “busca da verdade”), mas contou com um reforço ficcional de uma minissérie de sucesso para uma operação que careceu de qualquer fundamentação jurídica.

 Desde o lançamento da produção Netflix House of Cards, muitos fãs brasileiros têm apontado coincidências e analogias com a atual crise política brasileira. A começar no ano passado onde a grande mídia enchia a bola do vice Michel Temer atribuindo a ele a esperança de uma solução para a crise política quando assumisse o lugar da presidenta Dilma. Parecia o próprio roteiro das primeiras temporadas de House of Cards.


E no final do ano passado, numa entrevista dada à BBC Brasil, o ministro do STF Gilmar Mendes (notório inimigo político do PT) disse que “a corrupção e a disputa por poder a qualquer custo exibidas na série norte-americana House of Cards se repetem em Brasília” – sobre isso clique aqui.

O que é um ARG?


Um Jogo de Realidade Alternativa (ARG) é uma espécie de jogo em narrativa transmídia onde são combinadas situações ficcionais com a realidade recorrendo a mídias do mundo real e múltiplas plataformas de maneira a proporcionar aos jogadores uma experiência imersiva e interativa.

  O primeiro ARG que se tem notícia foi criado para promover o filme Inteligência Artificial em 2001. O jogo teve duração de aproximadamente quatro meses e contou com a participação de sete mil pessoas que dedicavam horas de seus dias em busca de soluções de enigmas a partir de pistas plantadas em diversas mídias por diversos personagens fictícios.


Na política brasileira, ficou famosa a gafe do senador Artrhur Virgílio em 2007 quando num inflamado discurso no senado denunciava uma ONG que estaria associada a uma empresa chamada Arkhos Biotech que defendia a necessidade de privatização da Amazônia para evitar uma catástrofe climática planetária.

"A notícia está no site da Agência Amazônia, sob o título 'Laboratório americano propõe privatizar a Amazônia': A Amazônia está mesmo à venda. Em um vídeo de um minuto e 25 segundos, postado em seu site, a empresa norte-americana Arkhos Biotech está convocando as pessoas do mundo inteiro a investir para transformar a Floresta Amazônica em um santuário de preservação sob o controle privado", disse.

O que o senador Arthur Virgílio não sabia, e nem a agência de notícias pela qual ele se informou, é que a empresa Arkhos Biotech é fictícia e fazia parte de um jogo patrocinado pelo Guaraná Antarctica.

A “zona incerta” de “House of Cards”


Esse estranho efeito ARG onde o público de repente encontra-se imerso em uma zona incerta entre a ficção e a realidade foi criado nos EUA com o lançamento da quarta temporada de House of Cards com o lançamento de um vídeo com campanha política fictícia do personagem Frank Underwood pelo segundo mandato como presidente dos EUA.


O material foi exibido pelo canal CNN durante o intervalo do quinto debate do Partido Republicano entre pré-candidatos à presidência – “América, eu estou apenas começando. "Eu sou Frank Underwood e aprovo essa mensagem”, diz com a mesma inflexão canastrona do candidato real à presidência dos republicanos Donald Trump - veja vídeo abaixo.

Fazer coincidir a condução coercitiva do ex-presidente Lula transmitida ao vivo pela TV com o lançamento da série do Netflix sobre conspirações palacianas comprova que a Operação Lava Jato é uma gigantesca operação semiótica. Depois de transformar a caça aos corruptos, delações premiadas, vazamentos das “investigações sigilosas” em um grande reality show televisivo, agora dá um novo passo ao adotar uma narrativa transmídia.

 Na medida em que as medidas arbitrárias do juiz Sérgio Moro começam a ser contestadas por todos os lados (inclusive de um ex-ministro da Justiça do governo FHC) pela falta de fundamentação jurídica, a Operação Lava Jato busca a legitimidade semiótica ao tentar criar essa zona incerta entre ficção e realidade.

A canastrice dos atores da Lava Jato


A pretexto de proteger um ex-presidente numa ação que mobilizou 200 agentes da Polícia Federal com suas armas, óculos escuros, camisas pretas, reluzentes carros negros, policiais com roupas de camuflagem militar, tudo parece buscar fundamentação não na Lei, Constituição ou jurisprudências, mas em referencias e alusões ficcionais na cinematografia – thrillers e filmes de ação.


Vemos orgulhosos agentes federais empunhando armas, óculos escuros e bocas de “acento circunflexo” ao melhor estilo Rambo. Tudo muito over e canastrão, assim como as performances de Frank Underwood e Donald Trump.

Vale aqui relembrar o conceito  de “canastrice” na propaganda política: as performances políticas (eventos, personagens etc.) devem ser cada vez mais “over”, saturadas e exagerados para forçar alusões ao universo ficcional da TV e cinema. Isso porque após um século de cultura visual produzida pela indústria do entretenimento a percepção do real já foi invertida pelo hiperrealismo das imagens: tomamos o real não mais por ele mesmo, mas a partir de imagens previamente feitas dele.

De tanto diariamente sermos alfabetizados pelas narrativas ficcionais de filmes e séries, avaliamos a realidade pela ficção. Apesar de toda canastrice (o fake, o overactating etc.) dos intérpretes do script da Lava Jato (sendo a indefectível figura do “japonês bonzinho” da PF a mais canastrona de todas), as pessoas acreditam em um enredo supostamente sério porque tudo parecer ser um verdadeiro decalque de alguma série da ficção.

De tão longa, a Operação Lava Jato começa a evoluir semioticamente tornando-se um verdadeiro futuro objeto para teses e dissertações: da narrativa tradicional em roteiros divididos em três atos, agora salta para as narrativas trans-mídias onde as histórias não têm fim porque continuam em múltiplas plataformas.


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