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Série "Boneca Russa": será o Tempo um bug algorítmico ou uma lição moral?

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Há na vida apenas essas certezas: de que vamos morrer, que as pessoas que amamos também irão morrer e que eventualmente nossa própria morte fará outros sofrerem. Mas a sociedade nos oferece inúmeras estratégias e ferramentas tecnológicas para esquecermos dessa amarga ontologia. Principalmente para a geração dos millennials, através do individualismo e as bolhas virtuais das redes sociais digitais. Esquecendo que o mundo é muito maior do que pensamos e que nossos atos têm consequências sobre todos que encontramos. Esse é o tema subjacente da série Netflix “Boneca Russa” (2019-): tal qual o filme clássico “O Feitiço do Tempo” (1993), Nadia fica presa em um loop temporal – a cada morte em um ciclo, acorda diante do espelho do banheiro na sua festa de 36 anos. Como explicar o mistério? Apenas um bug nas linhas algorítmicas que compõem a programação do Tempo? Ou algum tipo de lição moral que será obrigada a entender? A saída será a lembrança e a memória.

Duas coisas temos certeza em nossas vidas: a de que ao nascermos a morte fará parte do acordo de permissão para andarmos nesse plano da existência; e de que eventualmente as pessoas que amamos nos deixarão e a nossa própria morte causará dor nas pessoas próximas a nós.
São certezas amargas, mas lançamos mãos de uma série de estratégias, que a própria sociedade fornece, para esquecermos dessa natureza existencial. E a chamada geração dos millennials (uma geração conectada e globalizada pela Internet) talvez seja aquela mais bem aparelhada tecnologicamente para esquecer desse acordo que subjaz a nossa existência: criou uma nova forma de individualismo baseada nas bolhas virtuais que construímos nas redes interativas digitais.
Uma vida afluente, com linhas de tempos repletas postagens, selfies e comentários rápidos e superficiais, criando uma estranha ilusão de imortalidade: a sensação de eterno presente.
Se no clássico O Feitiço do Tempo (1993) tínhamos uma comédia dramática eminentemente moral (Bill Murray era um mesquinho e egoísta que merecia uma boa lição – ficar preso num loop temporal), na série Netflix Boneca Russa (2019-) temos o mesmo tema de protagonistas presos no tempo, porém numa perspectiva mais existencial: dois jovens adultos millennials ficarão prisioneiros na própria literalidade do eterno presente que marca a mentalidade dessa geração – presos em um loop temporal cuja morte em cada ciclo faz apenas retornar a uma cena do mesmo dia: a festa de aniversário e um desencanto amoroso.
Tudo se passa no East Village contemporânea de Manhattan, numa festa de aniversário repleta de millennials criativos e descolados. Presa numa misteriosa cilada temporal, a aniversariante terá que fazer uma jornada detetivesca dentro de sua própria vida, para tentar juntar os fragmentos de amores e perdas esquecidos numa vida que até aquele momento se resumia a um presente extenso hedonista.


Uma jornada introspectiva, numa narrativa que explora o arquétipo gnóstico do Detetive – os protagonistas não só descobrirão que lembrar aquilo que foi esquecido é a única maneira para se livrar do ciclo vicioso morte/retorno, como também uma verdade freudiana: aquilo que o homem mais teme não é a morte, mas a solidão.

O Filme

Nadia (Natasha Lyonne) é uma designer de games e programadora de computadores. Ela está comemorando o aniversário de 36 anos em uma concorrida festa organizada pela sua amiga Maxine (Greta Lee). Misantropa, desconfiada e sempre cínica, a solitária Nadia vive uma vida hedonista de sexo, álcool e muitos cigarros.
Depois de deixar a festa acompanhada por um parceiro de sexo casual, Nadia parte à procura de seu gato perdido. Atravessando uma rua sem olhar para os lados, Nadia é atropelada por um carro e morre. Para despertar no banheiro do apartamento da festa, diante do espelho enquanto convidados batem na porta. 
A primeira explicação desse lapso temporal que vem à mente de Nadia está no cigarro de maconha graciosamente oferecido pela anfitriã Maxime – certamente aquele cigarro estava turbinado com cocaína ou cetamina.
As semelhanças com Feitiço do Tempo terminam aqui: ao invés de usar a sua recém-encontrada vida eterna (Nadia morrerá sucessivas vezes, sempre despertando em frente ao mesmo espelho ao som da música “Gotta Get Up” de Harry Nilson) para tirar vantagens, ela se transforma numa espécie de investigadora privada determinada a encontrar o evento gatilho que disparou esse loop temporal.


O mistério ficará ainda mais complicado quando conhece Allen (Charlie Bernett), um neurótico compulsivo e solitário que também é prisioneiro da mesma cilada temporal – sempre morre para acordar diante do espelho do banheiro de seu apartamento, escovando os dentes.
Agora o desafio é entender qual a ligação entre Nadia e Allen. O que não será fácil: os dois têm personalidades diametralmente opostas – enquanto ela é uma cética sempre com uma tirada de humor ácida entre as tragadas no cigarro, ele é obsessivo compulsivo e romântico: sofre uma desilusão amorosa depois que descobriu que sua namorada o traia.
Essa premissa simples (ter que morrer para renascer) confere a Boneca Russa um interessante humor negro – as mortes são sempre de alguma forma cômicas – vazamento de gás, explosões, táxis em alta velocidade, engasgada por ossos de frango, pescoço quebrado em quedas em escadas ou portas que se abrem de porões em calçadas etc. 
Quanto mais loops vivencia, mais Nadia começa a relembrar o passado não só para evitar as situações que levaram a morte em ciclos anteriores – são hilárias as sequências em que ela evita certas escadas para evitar quebrar o pescoço, como em vezes anteriores.
Nadia também começa a lembrar dos seus traumas familiares na infância, deixando evidente ao espectador que, tal como uma boneca russa, por trás das diversas camadas se esconde algo sombrio e horrível.


Um “bug” ou lição moral?

Como não poderia deixar de ser, Nadia e Allen têm pressupostos diferentes para investigar o problema. Como programadora de games, Nadia acredita que tudo pode ser explicado de forma análoga a um bug no script de um game – o programa tem que ser rodado sucessivas vezes até encontrar a linha de algoritmos defeituosa.
Para Allen, o que está em jogo é algum tipo de lição moral que deverá  obrigatoriamente compreender para se livrarem do castigo do Tempo. Como o leitor observará, a sucessão dos oito curtos episódios (com menos de 30 minutos cada) parece levar a narrativa para uma combinação entre os dois métodos explicativos. 
Se O Feitiço do Tempo tratava de um tema eminentemente moral (a reforma íntima necessária para que Bill Murray se transformasse numa pessoa melhor para o Tempo voltar a andar para frente), aqui em Boneca Russa a abordagem é muito mais ontológica e existencial. Há algo de estrutural naquele loop que independe de quaisquer julgamentos éticos ou morais. Daí porque a série confronta Allen e Nadia, dois personagens completamente opostos.


Assim como cada boneca desconhece a existência das demais, embora encaixadas uma dentro da outra, da mesma maneira se coloca a solução do mistério: relembrar e o papel da memória são as peças-chave no quebra-cabeças narrativo.
Dessa forma, a série Boneca Russa entra no campo eminentemente gnóstico: a prisão dos sucessivos ciclos de nascimento/morte/reencarnação é mantida através da ignorância e esquecimento. Lembrança e memória são fundamentais para não cairmos nos mesmos erros dos ciclos anteriores. 
E o individualismo é uma das armadilhas que nos prendem a essa Roda do Samsara budista – o carma não é automaticamente queimado pelo sofrimento. É preciso algo mais, como sugere a série: se somos todos companheiros nessa cela temporal, devemos nos ajudar mutuamente. 
É isso que Nadia e Allen ocasionalmente descobrirão, o núcleo espiritual de toda a trama: o individualismo millennial de Nadia será desafiado quando ela cairá em si de que o mundo dela é muito maior do que pensava e que suas ações têm consequências sobre todos os outros que encontra a cada ciclo.
Nada mais gnóstico e, ao mesmo tempo, com forte acento freudiano: somos aquilo que não queremos lembrar, a cena traumática que nos prende em comportamentos repetitivos e obsessivos. Mas, mesmo assim, tememos muito mais a solidão do que a própria morte.


Ficha Técnica 


Título: Boneca Russa
Criadores: Leslye Headland, Natasha Lyonne, Amy Poehler
Roteiro:  Leslye Headland
Elenco:  Natasha Lyonne, Charlie Barnett, Greta Lee, Elizabeth Ashley
Produção: 3 Arts Entertainment, Netflix
Distribuição: Netflix
Ano: 2019
País: EUA

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Cinegnose em Londrina: na guerra semiótica a esquerda descerá ao abismo para se encontrar

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Desde o século passado a direita sempre esteve vários passos à frente ao lançar mão das tecnologias de ponta de cada momento. Lá atrás, nazistas usaram o rádio e o cinema. E hoje o nacionalismo de direita manipula algoritmos, inteligência artificial e mídias de convergência. Somente com uma formação interdisciplinar articulando ciências da comunicação, computação e política será possível a esquerda compreender as diferenças entre as dinâmicas de massificação e viralização, reformulando o ativismo e militância política. A esquerda terá que descer ao abismo simbólico para encontrar a si mesma. Esse foi o tema que dominou o workshop “Guerra Híbrida e Guerra Semiótica” ministrado por este editor do “Cinegnose” no último sábado (23/02) em Londrina/PR. Organizado pela Frente Ampla Pela Democracia, com apoio da Associação dos Professores do Paraná, o evento contou com auditório lotado de acadêmicos, estudantes, ativistas e sindicalistas, com muita curiosidade e entusiasmo para o debate. 
Este humilde blogueiro esteve em Londrina/PR no último sábado (23/02) para abrir a “caixa de ferramentas” de referências teóricas e práticas fornecidas pela Ciência da Comunicação para servir de instrumento de ação naquilo que este “Cinegnose” vem denominado como “guerra semiótica” – episódio brasileiro da estratégia geopolítica de guerra híbrida que a geopolítica norte-americana vem encetando em países estratégicos e sensíveis às suas ações.
Lá encontrei o lotado auditório da Associação dos Professores do Paraná e um público bem heterogêneo (de acadêmicos e estudantes a ativistas e sindicalistas) e disposto ao bom debate – quando a curiosidade pelo saber motiva a busca por ações e alternativas. Um público vivamente disposto a entender a conjuntura atual e como o papel estratégico da Comunicação nesse momento.
Se a comunicação é a criação de um acontecimento, parece que o debate em Londrina alcançou o objetivo – até agora chegam perguntas e colocações através do grupo, criado após o workshop, no WhatsApp chamado “Guerra Híbrida Semiótica”. 
“O que aconteceu?” e “O que fazer?”. Essas duas questões existenciais foram as que nortearam o debate, questões-chave desde os resultados eleitorais do ano passado que parece que ainda não terminou.

Ilusão consensual

Com todo o tempo disponível pela natureza de um workshop, este editor do “Cinegnose” começou definindo os conceitos de “bomba semiótica”, “guerra semiótica” e “guerra híbrida” e, principalmente, uma introdução à ciência da Semiótica. Principalmente a sua latente aplicação política com a noção de “signo”: se o que vemos não é a realidade, mas o signo da realidade, o que entendemos por realidade passa a ser uma “ilusão consensual”. 
Em outras palavras, o que entendemos por realidade passa a ser de natureza perceptiva. O que abre margem à existência de “engenharias” de percepções. Portanto, isso altera o que entendemos por “comunicação”: de informação ou sinalização de um conteúdo (ideologia, discursos, doutrina etc.) passa a ser a criação de acontecimentos, “bombas” que criam repercussões destinadas especificamente a alterar essa ilusão consensual.

O workshop demonstrou como os nazistas no século XX compreenderam bem essa natureza, naquilo que Walter Benjamin chamou de “esteticização da política”: líderes que emulavam personagens do cinema mudo (a “canastrice” na política), ridicularizados no começo, mas que depois se tornaram críveis graças à analogia com a ficção cinematográfica. Hoje a TV faz esse papel – como Bolsonaro foi promovido como um mito tosco em programas de humor como Pânico na TV e CQC para depois virar um personagem ficcional que invadiu a “ilusão consensual” da realidade política.

Massificação e viralização

A partir desse ponto, passamos a manhã de sábado tentando compreender a grande novidade que a guerra híbrida trouxe para a comunicação e a política: a passagem das estratégias de massificação para as dinâmicas de viralização. 
Muitos analistas ainda tomam como idênticos esses dois conceitos, como fossem regidos pelos mesmos princípios da psicologia de massas. Mas são muito diferentes, principalmente quando o workshop apresentou como a tecnologia algorítmica em Inteligência Artificial utilizado pela Cambridge Analytica e o fundo de hedge Renaissance Technologies de Robert Mercer foi decisiva para a vitória de Donald Trump e Bolsonaro – a aplicação dos algorítmicos probabilísticos da área financeira aplicada na mineração e análise de dados para comunicação política estratégica.
Enquanto a massificação implica em panfletagem, doutrinação ou disparo de discursos de forma indiscriminada para a sociedade como um todo, a viralização significa modular o discurso para perfis específicos que, sabe-se, irá compartilhar para sua rede de relações. 
Na realidade, influenciadores ou líderes de opinião já eram conhecidos desde as pesquisas empíricas de recepção de Paul Lazarsfeld nos anos 1930-40 nos EUA. A diferença é que na atualidade a tecnologia de mineração de dados potencializou essa estratégia. 


Métodos dedutivo e indutivo na política

Isso significa que no espectro político há duas maneiras bem distintas de atuação política na comunicação: enquanto a esquerda se orienta por um método dedutivo(parte de valores éticos e morais universais para tentar transformar a realidade – do universal ao particular) a direita é indutiva-  do particular para o universal, da manipulação das percepções e sensações para depois criar uma narrativa política geral.
Enquanto a esquerda se escandaliza ao ver a sociedade ir contra os valores kantianos universais de dignidade, cidadania e liberdade e tenta conscientizar as massas dessa realidade, a direita induz percepções (signos da realidade) para depois criar narrativas “universais” – conspirações comunistas, LGBTs, midiáticas etc. Não à toa que a direita se apropriou da imagem antissistema ou revolucionária que sempre esteve do lado da esquerda.
Por isso, somos capazes de ver o “filósofo” Olavo de Carvalho (guru da “alt-right” tupiniquim) usar o mesmo discurso da esquerda, mas com sinais trocados – por exemplo, denunciar o “autoritarismo dos meios de comunicação” que quer impor o “politicamente correto”, a “ditadura gay”, o “petismo”... 

O que fazer?

A partir desse ponto, o “o que fazer” tomou conta dos debates: como se contrapor ao tripé semiótico no qual se baseia a tática de guerra semiótica da direita? – apropriação(do discurso antissistema, dos símbolos nacionais com a técnica semiótica da iconificação etc.), provocação(formas de comunicação indireta para falar com a maioria silenciosa e não com o interlocutor) e polarização(usar o discurso beligerante para travar qualquer debate público racional).
Discutimos desde a necessidade de modelagem o discurso (direcionar mensagens para perfis ou líderes de opinião para conseguir efeitos virais – o que implicaria entrar na área do “ativismo cibernético”).

E também as polêmicas, por assim dizer, “baterias anti-áereas” contra as bombas semióticas da grande mídia: as táticas de guerrilhas anti-mídia – pegadinhas (“media prank”) e trolagens (“culture jamming”) com o objetivo sistemático de desmoralizar a mídia corporativa.
Principalmente quando sabemos que a mídia clássica ainda tem um importante papel, mesmo com o crescimento das mídias de convergência (smartphones, tablets etc.). Hoje a grande mídia tem um papel de agendamento da pauta e não mais de doutrinação ideológica, como no passado. Daí a importância da existência de uma sistemática ação de guerrilha midiática.
Nesse sentido, a recente trolagem criada pelo ator José de Abreu (se autoproclamando presidente do Brasil, da mesma maneira como a mídia auto empossou Juan Guaidó como presidente da Venezuela) é uma bomba semiótica perfeita. Um exemplo que a esquerda poderia replicar.


Respostas a questões levantadas nos debates no workshop:

(1) Teremos que fatalmente nos apropriarmos dessas armas (elas demandam conhecimento, grana, operadores especializadíssimos e, fundamentalmente, a Munição da Indução, a qual, a ética não tem lá tanta relevância) ou se, descobrindo e construindo Baterias Antiaéreas seria suficiente para resistirmos com danos menores?
Resposta:A direita de hoje possui o mesmo modus operandido século XX. Se lá o nazifascismo utilizou-se das tecnologias de ponta da época, rádio e cinema, hoje se apropria da inteligência artificial que rendeu milhões para Robert Mercer no mercado financeiro – algoritmos probabilísticos que preveem tendência de ações e títulos. E agora preveem escolhas ideológicas e partidárias de determinados perfis. De alguma maneira, em algum momento, a esquerda terá que se tornar interdisciplinar: sair do campo familiar das ciências humanas e se enveredar pelo ativismo digital no campo das chamadas “ciências exatas”. 
Isso nos leva à questão ética: teremos que usar o mesmo condenável modus operandi de indução da direita? Essa é uma questão que esse humilde blogueiro não tem ainda uma resposta pronta, mas também em algum momento a esquerda terá que lutar no mesmo campo simbólico da direita. A esquerda terá que descer no abismo para encontrar a si mesma.
(2) O que explica que mesmo com o uso dessa arma poderosíssima já em ação em toda a campanha, caso não fosse impedido de disputar a eleição, Lula venceria já no primeiro turno, como indicavam todas as pesquisas a menos de um mês para a eleição?
Resposta:Isso talvez seja relativo. Como demonstrou uma reportagem do insuspeito jornal “El País” sobre os motivos que levaram João Doria Jr a ganhar votos na periferia de São Paulo, para muitos a leitura sobre Lula era meritocrática – um metalúrgico que chegou à presidência pelas vias do mérito e do trabalho, aquele que “começou de baixo”... assim como Doria Jr que chegou à prefeitura de SP... (leia “A metamorfose do eleitor petista da periferia que decidiu votar em Doria” – clique aqui). A promoção “Sebastiana” do mito Lula (como o “salvador” e “conciliador”) pode chegar a essas interpretações bizarras.
(3) Será que para termos uma perspectiva de sucesso à nossa Resistência e consequentes avanços, não é  necessário  juntarmos o aprendizado em identificarmos os disparos desses Mísseis poderosos, aprendermos a operar as Baterias Antiaéreas e, ao mesmo tempo, treinarmos nossas tropas nos quartéis de "média patente" através do resgate de Programas de Formação de Formadores? Programas já desenvolvidos há tempos atrás, com sucesso, pelas Centrais Sindicais nos Sindicatos e CPCs (Centros Populares de Cultura) nas Universidades e comunidades periféricas?
Resposta:Pergunta que faz a gente voltar à primeira questão acima: a partir do ponto em que chegamos, é urgente repensar a formação e formas de atuação política. Na verdade, desde a vitória do nazismo na Alemanha, a esquerda se tornou o cachorro-que-caiu-do-caminhão-de-mudança. Se mal compreendeu o papel do rádio e do cinema naquele contexto entre guerras, o que dirá diante das tecnologias de convergência atuais? Como disse, é necessária uma formação interdisciplinar na atuação política – Ciências da Computação e Comunicação combinadas com a Ciência Política. E muito bom humor, ironia e sagacidade com as “baterias antiaéreas” das pegadinhas e trolagens contra-midiática.
(4) Minha questão que eu gostaria que ele comentasse é a relação da semiótica no Teatro Imagem de Augusto Boal.  Lembro que uma frase que sempre repetimos nas oficinas de Teatro Imagem é que " a imagem é real enquanto imagem".
Resposta:Com o Teatro do Oprimido, Boal focava as linguagens não verbais: pensar com as imagens, sem o uso das palavras, usando o próprio corpo do ator e objetos como forma máxima de expressão. Com isso, Boal queria expandir as possibilidades de expressão do oprimido – imaginação, percepção, relacionamento etc. 
De fato, uma analogia perfeita para a expansão das táticas de ação política em torno da comunicação: não ficar apenas no campo do discurso verbal e de conscientização (método dedutivo) e se aventurar pelo campo semiótico da percepção, da iconificação e da apropriação imaginativa de todo signo, principalmente daqueles produzidos pela própria grande mídia no sentido de invertê-la.
De novo, a trolagem do ator José de Abreu: ridicularizar a autoproclamada posse de Juan Guaidó, tão levada a sério pelo jornalismo corporativo.
A todos os organizadores e participantes do workshop meu sinceros agradecimentos pela oportunidade e contribuições com novas ideias que todos trouxeram ao debate!





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O autoproclamado presidente José de Abreu e a "Carta Roubada" de Allan Poe

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Teve repercussão internacional, ele chamou o autoproclamado presidente Juan Guaidó para o debate e o Google o reconhece como presidente do Brasil. Estamos falando de uma perfeita bomba semiótica de trolagem (“culture jamming”): através do Twitter, o veterano ator José de Abreu se proclamou presidente do Brasil e vem postando resoluções executivas tais como convocar Chico Buarque para o ministério e Marcelo D2 se colocou à disposição para o novo governo. Uma trolagem perfeita num momento em que a grande mídia vive a saia justa de tentar dar naturalidade e lógica a eventos arbitrários na atual guerra híbrida no Brasil e Venezuela. O impacto estratégico dessa bomba de trolagem está na semelhança da questão semiótica proposta pelo conto "A Carta Roubada" de Edgard Allan Poe: o que procuramos pode estar na frente do nosso nariz – na intransitividade dos signos da grande mídia, tão vazios quanto uma nota de três reais.
Este “Cinegnose” vem insistindo em postagens e workshops nos quais participa que diante de um contexto de guerra híbrida, no qual a grande mídia combinado com a chamada “cultura de convergência” (redes sociais digitais e dispositivos móveis) têm papel central, as táticas de guerrilha semiótica são as primeiras formas de ativismo político.
Se no Brasil foi fácil as táticas de guerra híbrida encontrarem o gatilho cognitivo ideal para chegar ao impeachment de 2016 (a apropriação das manifestações de rua a partir de 2013, anti-petismo e polarização da opinião pública), na Venezuela as coisas fugiram ao script.
Mesmo depois da mídia corporativa internacional e agências de notícias baterem nos “indicadores macroeconômicos em colapso”, no “aumento da desnutrição” e “regressão epidemiológica” (que, de resto, o Brasil apresenta o mesmíssimo quadro) transformando a Venezuela em “tragédia humanitária internacional” e enquadrar o presidente Maduro como “ditador”, o governo insiste em não cair.
                   A perplexidade é tão grande que o Comandante Sul das Forças Armadas dos EUA, general John Kelly, em entrevista à CNN, apontou explicitamente que o interesse norte-americano na Venezuela é ter o controle sobre as maiores jazidas de petróleo do planeta (clique aqui), mandando às favas qualquer prurido moral.



Golpe virtual

Como acompanhamos recentemente, a última cartada foi o líder opositor Juan Guaidó se proclamar presidente da Venezuela: se do lado dos EUA, sem vacilar, as intenções se tornaram explícitas, então do lado midiático o jogo da cena acabou – se o golpe não deu certo, a mídia empossa Guaidó como novo presidente e cria um golpe virtual, contando até com apoio internacional. Para começar, do inacreditável clã Bolsonaro.
E o Dia D foi 23 de fevereiro, no qual o auto empossado presidente lideraria a entrada de “ajuda humanitária” pelas fronteiras da Venezuela, através do Brasil. Um Cavalo de Tróia, para colocar dentro daquele país armas e agentes mercenários para tentar desestabilizar o governo Maduro. Esperavam-se soldados desertando para o lado brasileiro e um povo aliviado dando apoio à causa “humanitária”. Porém, nada aconteceu! A não ser a figura do presidente virtual acenando para a claque midiática.
                  Enquanto isso, a grande mídia brasileira vive uma dupla saia justa: de um lado assumiu a missão de dar alguma racionalidade, método ou um mínimo de seriedade nas intenções em um governo brasileiro no qual ministros e generais batem cabeça e falam barbaridades em série; e do outro, dar sua cota internacional de ajuda ao autoproclamado presidente Juan Guaidó e encontrar também alguma racionalidade em um político que repentinamente se auto nomeia alguma coisa.



A trolagem de José de Abreu

Em meio a esse cenário no qual jornalismo corporativo parece ter perdido totalmente o pudor, eis que o veterano ator José de Abreu dispara uma bomba semiótica de trolagem – “culture jamming”, ativismo semiótico de guerrilha que visa romper ou subverter conteúdos midiáticos, expondo suas verdadeiras intenções ou artificialismo.
Na noite do dia 25 de fevereiro, José de Abreu se proclamou presidente do Brasil numa série de publicações no Twitter, ironicamente dizendo que seguia o exemplo do líder da oposição venezuelana.
“A partir de hoje (25) eu sou o autodeclarado Presidente do Brasil. Igual fizeram na Venezuela. Lulá está nomeado chefe da casa civil, militar e religiosa do Brasil”, escreveu o ator. Desde então, publica suas decisões como presidente.
Minutos depois, alguém foi à página da Wikipedia no verbete Brasil e mudou a linha referente ao presidente e colocou: “em disputa”, com uma nota de rodapé na qual lê-se que Zé de Abreu é o “presidente interino constitucional”, visto que “a posse de Jair Bolsonaro seria sem efeito”. 
                  Sentindo o impacto da explosão dessa bomba semiótica, a mídia corporativa brasileira tenta minimizar seu estrago – enquadra a notícia em editorias como “Celebridades”, “Famosos” ou “Televisão”. Enquanto em sites internacionais a repercussão é como notícia política, como na “Brasil Wire”: “Meet Brazil’s new President: José de Abreu”... clique aqui.



Uma bomba perfeita

Uma perfeita bomba semiótica de trolagem. Se não, vejamos:
(a) Uma brincadeira ao mesmo tempo séria e irônica com esses tempos de “democracia plebiscitária” nas redes sociais. Como tenta a direita nacionalista de Trump, Bolsonaro e Steve Bannon, transformar as redes sociais em uma forma populista de “governo direto”, sem representação política. Na qual a discussão pública mediada é substituída por pitacos, bravatas e provocações visando deliberada polarização para travar qualquer debate racional. 
(b) A trolagem de José de Abreu explicita no atual momento a ameaça de algo mais sério do que as fake news: a pós-verdade. Como o linguista Noam Chomsky argumenta, as pessoas não acreditam mais nos fatos e que o critério de verdade deixou de ser importante nas interlocuções pessoais. A trolagem do ator confirma de forma tragicômica o diagnóstico de Umberto Eco sobre a Internet e as redes sociais: “as mídias sociais deram direito à fala a legiões de imbecis que antes falavam só no bar, sem causar danos à coletividade”, frase dita após uma cerimônia na Universidade de Turim, em 2015.
(c) O despudor da grande mídia atual é tão grande que fica explícito o artifício e a intransitividade entre discurso e a realidade – como assim, alguém se autoproclama presidente e a comunidade política internacional o reconhece como Chefe de Estado?
O que lembra o conto de Edgard Allan Poe “A Carta Roubada” que inaugura a moderna literatura policial. Poe nos conta a história de uma carta que foi surrupiada e escondida onde ninguém encontra, mesmo estando na frente do nariz dos protagonistas: em um porta-cartas pendurado no meio da lareira.
Pois a constitucionalidade da autoproclamação de Guaidó e a democracia plebiscitária de Bolsonaro (que os analistas políticos do nível de Camarottis ou Mervais tentam encontrar alguma seriedade ou lógica) parecem-se com a carta de Poe: são meros significantes vazios e intransitivos, sem lastro com a realidade. Em termos linguísticos, significantes sem significados.
Enquanto no conto de Poe o delegado que investigava o roubo levava em conta as estatísticas dos seus anos de polícia (sempre os criminosos ocultam objetos roubados em lugares rebuscados), não considerou como um criminoso poderia agir com simplicidade – esconder a carta no lugar mais óbvio.
Pois a autoproclamação de Guaidó, assim como as inúmeras notícias da pauta do mainstream jornalístico, são como a carta roubada de Poe – são narrados e analisados como fatos lógicos, com uma racionalidade histórica.
Mas nada mais são do que nomes, signos tão vazios como uma nota de três reais. 
A trolagem de José de Abreu explicita isso, ao repetir no humor e ironia o mesmo gesto de um personagem supostamente pertencente à realpolitik. 
“Vamos respeitar a minha presidência como estão respeitando a do venezuelano, por que não”, publicou José de Abreu.
Esse é o objetivo estratégico de toda guerrilha anti-mídia: desmoralizar a agenda da grande mídia.

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Estamos imersos no mar de sincronismos no filme "Redemoinho"

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Qual a relação entre as ideias do pré-socrático Tales de Mileto e o filme “Redemoinho” (“Maelström”, 2000) do diretor canadense Denis Villeneuve? Está em uma narrativa que certamente é a que melhor explorou o simbolismo místico da água no cinema: um peixe prestes a ser sacrificado para se transformar em fruto do mar em um restaurante narra a “bonita história de uma mulher na longa descida à realidade”. O pai da filosofia ocidental achava que todas as coisas estão “cheias de deuses”. Pode parecer uma ideia poética, mas não para a protagonista de “Redemoinho” que da pior maneira conhecerá essa verdade filosófica – de que suas decisões estão imersas em um mar de sincronismos, tendo o peixe como elemento simbólico central. E de que uma vida inteira pode se transformar no fluxo da mecânica dos fluidos que dá nome ao filme.

O filósofo pré-socrático Tales de Mileto, considerado o pai da filosofia ocidental, acreditava que por trás de todas as coisas haveria um princípio físico, material, chamado “arché”. E esse princípio só poderia ser a água – tudo seria água: a natureza é úmida, os alimentos contém seiva, e os mortos ressecam. 
Além disso, partilhava de um, por assim dizer, encantamento do mundo ao acreditar que “todas as coisas estão cheias de deuses”. Tales não tratava da natureza somente, como os atuais discursos ecológicos desenvolvem. Procurava toda a amplitude e profundidade dos significados, indo além do que podermos capturar com nossos sentidos – uma secreta conexão no Todo que faz o mundo existir e se mover.
O filme Redemoinho (Maelström, 2000), dirigido pelo canadense Denis Villeneuve (A Chegada), então com 35 anos, poderia facilmente ser visto como as teses de Tales de Mileto poderiam parecer se ganhassem a tela do cinema. Água é o elemento onipresente: para começar, o narrador, que contará “uma história bonita de uma mulher numa longa viagem em direção da realidade”, é um peixe prestes a ser cortado para ser transformado em fruto do mar em um restaurante.
Água, mar, oceano nas suas mais diversas formas e representações estão onipresentes na narrativa de Redemoinho, numa sucessão de equívocos de uma protagonista que nos faz lembrar da sucessão de azares e equívocos de algum filme dos irmãos Coen, como em Fargo, 1996.


O peixe ao mesmo tempo moribundo e reflexivo não tem muito tempo para contar a história antes de ser eviscerado. Uma história que parece partilhar desse encantamento de um mundo “cheio de deuses” no sentido pretendido por Tales de Mileto – não no sentido mitológico, mas na crença de que há conexões secretas entre todos os acontecimentos e que todos nós estamos imersos num oceano de sincronismos - no sentido dado pelo psicanalista Carl G. Jung: "coincidências significativas", isto é, acontecimentos que se relacionam não por relação causal, mas por relação de significado. 
Redemoinho não parece querer apenas partilhar esse maravilhamento pré-socrático, mas chamar atenção à responsabilidade ética e moral de nossos atos: a crença no livre-arbítrio individual nos torna cegos para esses sincronismos, perdendo de vista as consequências das nossas ações, capaz de criar a dinâmica catastrófica cujo nome dá título ao filme, tão estudada pela mecânica dos fluídos.   

O Filme

Entre golpes de faca desferidos em seu corpo, um ofegante peixe nos conta sobre uma “bonita história” que está por começar, sobre a “descida à realidade” de uma mulher. Ela é Bibi (Mari-Josée Croze), filha de uma famosa estilista francesa que está passando por uma crise existencial. 
Após o último golpe de faca contra o pobre peixe, o filme pula para uma arrepiante cena de aborto em uma clínica médica legalizada. A atraente e até então bem-sucedida Bibi está deprimida e cheia de culpa, que começa a interferir nos negócios que sua família herdou: uma boutique de moda em Quebec. Sem foco, dispersa e com maus resultados, Bibi é afastada da empresa pelo próprio irmão.


Começa antão a descida à realidade anunciada pelo peixe narrador: a teia de conexões e sincronismos, cujo elemento água é onipresente – a rede de imagens oceânicas.
Embriagada, Bibi atropela mortalmente um peixeiro norueguês. Seu amante é um mergulhador que ganha a vida trabalhando nos fundos dos oceanos. Após sair da clínica de aborto, seu caminho está bloqueado por um caminhão de transporte de frutos do mar que teve um acidente e derramou seu conteúdo no meio da rua. Seu carro atravessa o lodo vermelho de peixes esmagados pelos carros. Tenta aplacar sua dor e culpa em longos banhos de duchas.
Ela sonha com enguias e, quando pensamentos suicidas começam a povoar sua mente, no som do carro ouve-se a voz do cantor Tom Waits murmurando: “O oceano não me quer hoje...”. Isso sem falar que Bibi tentará se livrar do carro que atropelou o peixeiro, tentando jogá-lo no mar de uma forma totalmente desastrada.
E a última sequência do filme é a bordo de um navio, com uma linda vista oceânica.
Talvez Rodamoinho seja o filme que melhor trabalha com o simbolismo da água no cinema – de resto, de uma maneira ou de outra, sempre presente nas produções de diversos gêneros.
É um elemento simbólico porque ele sempre está presente em momentos-chave das narrativas (como rio, chuva, tempestade, lago, mar). Ou seja, não aparece como mero ornamento ou contextualização geográfica. Participa como elemento ativo de significação, fazendo parte de mudanças decisivas na ação dos protagonistas ou na interpretação da estória. 


Segundo Chevalier e Gheerbrant, a água possui três simbolismos dominantes que podemos identificar em análises fílmicas. 
As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte da vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2009).

O oceano do inconsciente

Água como espelho da alma, como inundação que arrasta tudo renovando o cenário de uma história, água como agente que dissolve um mundo de ilusões, como no filme noir, por exemplo.
Mas em Redemoinho, assume também feições freudianas: o oceano, como uma pele fina, esconde a riqueza de mistérios que está abaixo – um símbolo do inconsciente turbulento de Bibi, o redemoinho de culpas.
O aborto de Bibi é o evento central na história. O atropelamento acidental do peixeiro amplifica ainda mais a culpa original, o que nos remete a outra secreta conexão entre a morte do nascituro e peixes: o velho mito biológico que em certo ponto da gestação embriões desenvolvem guelras.


Quando em São Paulo para promover Redemoinho, na Mostra BR de Cinema em 2001, o diretor Denis Villeneuve detalhou essa rede simbólica da sua produção: 
"O peixe é o ancestral da raça humana, já que todos viemos da água. Eu gosto da ideia de que na minha alma ainda haja reminescências de peixes. Desiludida com os rumos de sua própria vida, uma jovem empresária (Marie-Josée Croze) vê suas escolhas desmoronarem diante de si. Um aborto lhe parece o caminho mais fácil. As tragédias se sucedem: sua firma vai à falência, ela atropela um trabalhador de uma peixaria, pensa em suicídio. O aborto é um perfeito exemplo de que não nos damos conta do significado de certos atos. Sou a favor de as pessoas terem suas responsabilidades - e responderem por elas. Mas me parece que perdemos nosso senso crítico e, com isso, as instituições acabam sendo destruídas. Estamos vivendo uma espécie de tendência patológica à mentira".
Com Redemoinho acreditamos que Tales de Mileto tinha razão: na busca da arché descobrimos que todas as coisas estão cheias de “deuses” – todos nossos gestos e ações estão conectados em um mar de sincronismos. E descer à realidade é tomar consciência da natureza ética ou moral das nossas decisões. 


Ficha Técnica 


Título: Redemoinho
DiretorDenis Villeneuve
Roteiro:  Denis Villeneuve
Elenco:  Marie-Josée Croze, Jean-Nicolas Verreault, Stephanie Morgenstern
Produção: Max Films Productions, Societé de Développement des Enterprises Culturrelles
Distribuição: Alliance Vivafilm
Ano: 2000
País: Canadá

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Curta da Semana: "Animals" - Smartphone e solidão nos tornam selvagens

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Um dia como outro qualquer de pessoas comuns viajando em um trem. Cada um perdido em seus próprios pensamentos e preocupações. Até que surge o inesperado: a porta do vagão não abre, e o trem permanece em movimento para as próximas estações.  Aquelas nove pessoas começarão a fazer uma rápida descida para o caos, a irracionalidade e, por fim, a selvageria – tudo registrado por um smartphone de um passageiro que apenas se preocupa em postar o vídeo em redes sociais, ao invés de tomar uma atitude de ajuda. Esse é o curta-metragem “Animals”(2019), trabalho de conclusão do “Animation Workshop” do animador dinamarquês Tue Sanggaard. Seis minutos que resumem as principais teses clássicas da psicologia social sobre o comportamento do homem na multidão. Porém, no século XXI, turbinadas pelas novas tecnologias.


Século XIX foi o século do aparecimento das multidões na História. Depois dos adensamentos populacionais em vilas, burgos, aldeias e cidades medievais, surge a novidade das metrópoles, as multidões e as massas. Mais especificamente, o surgimento do “homem-massa”, anunciado pela sociologia e pela nascente psicologia social de Gustave Le Bon e Freud: na multidão o indivíduo assume uma outra personalidade, bem diferente daquela apresentada nas relações familiares e interações pessoais.
Mas muito antes de cientistas tentarem entender essa novidade, artistas como escritores e pintores já faziam uma radiografia desse “homem-massas”.
Por exemplo, Edgard Allan Poe antecipou as discussões da sociologia no conto “O Homem da Multidão” de 1840 - com as metrópoles ficou impossível as pessoas manterem relacionamentos mais íntimos, de conhecimento entre elas mesmas. O ser humano não tem tempo para estreitar laços sociais, nem para se conhecer melhor, muito menos ter tempo para se permitir conhecer os outros. 
                  Ou o quadro "O Grito" do pintor Edward Munch no qual um homem (o próprio pintor) sente melancolia, ansiedade e grita: a solidão no meio da multidão. A situação paradoxal no qual os grandes aglomerados humanos produzem crescente solidão ao invés da proximidade e relações de amizade.



O curta-metragem de animação dinamarquês Animals, de Tue Sanggaard, explora exatamente esse tema da modernidade: a transformação de nove pessoas presas em um vagão de trem em movimento. O que parece ser mais um dia normal rapidamente começa a tomar um rumo estranho quando as portas da composição se recusam a abrir quando para nas estações. 
As tentativas fracassadas em tentar abrir as portas fazem aqueles passageiros descerem da frustração ao caos, perdendo toda a racionalidade e fazendo-os retornar aos mais baixos instintos como animais na natureza lutando pela sobrevivência.
                  São pessoas normais com as quais cruzamos no dia-a-dia. Pessoas que vivem perdidas em seus próprios pensamentos e não tentam fazer contato com os outros. A não ser que algo extraordinário aconteça. Então a paranoia e a loucura lentamente começam a tomar conta de todos e pessoas aparentemente civilizadas se transformam em animais. É a regra da selva: matar ou ser morto.


                  Com cenas de nudez e violência gráfica combinada com o tom do humor negro, não é uma animação para corações mais sensíveis. Sanggaard se inspirou na observação do comportamento humano no cotidiano: “Espero fazer as pessoas sentirem uma vasta gama de emoções e levantar uma série de questões de como a nossa sociedade está estruturada, para onde estamos indo como civilização e como tratamos uns aos outros nesse caminho”, afirmou o diretor em entrevista para o site “Short of The Week” – clique aqui.


A multidão solitária

 A princípio Animals explora esse tema clássico da Psicologia Social: a solidão humana na massa – cada passageiro ensimesmado e perdido em seus próprios pensamentos e preocupações. Um músico entra no vagão para uma pequena apresentação em troca de moedas. Mas a música não é o suficiente para criar algum tipo de senso comunitário.
 O ponto importante na animação é o papel do smartphone. Laranjas caem no chão e o esfomeado músico tenta pegá-las, sendo atraído depois pelo cheiro de um frango assado que gulosamente um passageiro saboreia. Com o celular um passageiro filma a bizarra cena do músico no chão, de joelhos, implorando por um pedaço do frango.
                   O pânico toma conta com a porta que não abre e o trem em movimento. Um passageiro quebra sua cabeça na janela tentando abri-la e cai numa poça de sangue. Tudo filmado pelo celular de um passageiro. Ao invés da colaboração, o primeiro impulso é filmar o início do caos.



Ponto de inflexão importante na narrativa que nos faz lembrar das ideias clássicas, e ainda atuais, do pesquisador David Riesman no livro “A Multidão Solitária”: a multidão cria um novo tipo de ego: o “alter dirigido” – o critério que nos orienta é o que os outros pensam de nós, pois só existimos na multidão. 
Paradoxalmente somos sociais como nunca fomos. Riesman previu lá na década de 1950 que a multidão solitária cria um tipo de orientação na qual o nosso comportamento visa a aprovação da opinião da multidão. O passageiro do celular não pensa em ajudar o outro que se arrasta no piso do trem: pensa em gravar um vídeo para postar nas redes sociais a situação bizarra. Prefere criar muito mais relações virtuais do que reais com o próximo.
O grande insight de Animals é figurar como essa sociabilidade mediada pelo disposto móvel de alta tecnologia desemboca no comportamento mais selvagem – todos se tornam animais destituídos da sua persona social e das próprias roupas. Retornam aos instintos mais básicos da Natureza como predadores caçando na floresta ou na savana africana. 
As imagens são propositalmente irônicas: lembram aqueles planos de câmera de canais como National Geographic ou Discovery Channel, mostrando em slow motion a ação dos predadores nas planícies africanas.  
O resultado da animação 3D é impressionante e realista. E nos faz pensar em como no século XXI os temas clássicos da sociologia novecentista continuam não só atuais. Mas também potencializados pelas novas tecnologias.

  

Ficha Técnica 


Título: Animals (curta-metragem)
DiretorTue Sanggaard
Roteiro:  Tue Sanggaard
Direção de Arte e CGI:  MayaMckibin
Produção: Charly Märtensson
Distribuição: Vimeo
Ano: 2019
País: Canadá

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O show que nunca termina: a guerra semiótica criptografada do clã Bolsonaro

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Muitos afirmam que o governo atual delibera através do Twitter. Parece que essas opiniões estão prisioneiras de uma aparência. Na verdade, esse governo se orienta principalmente pela estratégia de ocupação da pauta midiática de todo o espectro político. O capitão que posta “Xvídeos”?; “Golden Showers?”; declarações de que a democracia só existe por uma benesse das Forças Armadas? É um show que começou em setembro do ano passado e jamais termina: quase diariamente a irresponsabilidade retórica típica de uma eleição persiste num governo já eleito. Uma tática semiótica criptografada: criação sistemática de dissonâncias para cativar a atenção de toda a midiosfera. Enquanto isso, os movimentos da política executiva de terra arrasada seguem em frente, sem a devida atenção da opinião pública. A grande mídia participa do jogo para criar uma aparência de imparcialidade e se livrar de uma cobertura monofásica das “reformas”. E a esquerda perde suas energias com o doce sabor do prato frio da vingança oferecido de bandeja para ela.

No cenário do rock dos anos 1970, o power trio Emerson, Lake & Palmer ocupava uma posição especial, rivalizando com outros super grupos da época como Gênesis, Yes e Led Zeppelin. Seus shows começavam com uma emblemática introdução: “Welcome back my friends to the show that never ends... ladies and gentlemen, Emerson, Lake & Palmer!”. 
Guardadas as devidas analogias, e obviamente sem o talento daquele trio de exímios músicos, cada tuite ou declaração de Bolsonaro deveria ser iniciado com a mesma introdução daqueles shows do ELP: “bem-vindos ao show que nunca termina...”. 
Simplesmente, desde o dia 8 de setembro do ano passado, a campanha eleitoral do capitão da reserva insiste em não terminar.  
Ele e seu clã persistem em fazer ataques e provocações ideológicas, em viverem num constante estado de urgência diante de inimigos imaginários criados desde o primeiro dia de campanha eleitoral: a esquerda, o politicamente correto, os globalistas, a ditadura LGBT, o comunismo, a Venezuela, os agentes do comunismo internacional treinados na Rússia e infiltrados na imprensa brasileira, tudo ad nauseum... 
Dando continuidade a esse show que nunca termina, o clã Bolsonaro denuncia o “golden shower” dos blocos de carnaval (“a verdade do carnaval”, tuitou o capitão), através de um vídeo ao melhor estilo “XVídeos”, que ameaçam homens de bem, a família e a pátria.


E tal qual uma máquina de promoção diária de “caneladas”, no dia seguinte, em discurso na cerimônia do Corpo de Fuzileiros Navais do RJ, afirmou que “só existe democracia se as Forças armadas assim quiserem”.
O que aumenta ainda mais a temperatura da pauta tanto da grande mídia quanto da alternativa na blogosfera: supostamente, militares “intervieram” na fala “dúbia” do presidente. Provocado por jornalistas, o vice General Mourão dispara que “não é ventríloquo do presidente”, para depois de ser mais ainda pressionado por uma declaração, afirmou: “ele foi mal interpretado...”.

Guerra criptografada?

Se após as vitórias de eleições recentes, os candidatos vitoriosos tentavam implementar no governo, o mais rápido possível, a pauta executiva para se contrapor ao “terceiro turno” dos inconformados derrotados (Aécio Neves tentando impugnar os resultados no TSE, por exemplo), hoje Bolsonaro confortavelmente continua o seu costumeiro discurso monofásico como se ainda estivesse numa disputa eleitoral onde a irresponsabilidade retórica predomina como estratégia de gerar efeitos emocionais nos eleitores. 
É necessário mais uma vez lembrar a colocação do antropólogo Piero Leiner, professor da Universidade de São Carlos/SP e estudioso das estratégias militares: a estratégia de propaganda do atual governo de ocupação “é muito mais uma estratégia de criptografia e controle de categorias, através de um conjunto de informações dissonantes” (clique aqui).
Os excluídos: nem para serem explorados servirão...

Seria esse “show que nunca termina” uma proposital guerra semiótica criptografada? Se sim, seria bem diferente das estratégias anteriores nas quais bombas semióticas são detonadas para enfraquecer o oponente. Ao contrário, essa deliberada criação de dissonâncias (“caneladas”) criaria uma simulação de que a unidade do atual governo estaria de desmoronando.
Lembre-se: o capitão da reserva só chegou ao poder para implementar o “saco de maldades”, conjuntos das amargas “reformas” neoliberais para definitivamente colocar o Brasil na órbita de influência da geopolítica dos EUA – rebaixar o País a uma economia de exportação de commodities, desindustrializada e financeirizada, com vasta força de trabalho desempregada e excluída (isto é, não serve nem mais para ser explorada) condenada ao bombardeio midiático diário de receitas consoladoras de autoajuda: “reinvente-se no empreendedorismo!”, seja “patrão de si mesmo!”, exortam. 
Ou simplesmente morra pela deliberada política de redução populacional (afinal, é a pauta da agenda da verdadeira política neoliberal de Globalização – não aquela dos “marxistas culturais”...) através da destruição das garantias e direitos.
Nas poucas vezes em que o noticiário dá espaço às reais medidas executivas do atual governo, não vemos exatamente projetos, mas política de terra arrasada: acabar, reduzir, enxugar, desfazer, eliminar, fundir, diminuir, tirar e assim por diante. Um léxico não exatamente popular e que jamais ganharia uma eleição. 

Prestidigitação

Por isso, tal qual um mágico prestidigitador cujo gestual de uma das mãos distrai e esconde a outra que tira a carta do bolso do colete, o interminável show de dissonâncias cria o desvio de atenção necessário. Se funcionou na campanha eleitoral, porque não funcionaria com um presidente que “governa” através do Twitter? Afinal, seus arroubos ocupam a pauta midiática, em todas as gradações do espectro político.
Para a esquerda, que não consegue se libertar da sua “síndrome de Brian” (sobre essa patologia política clique aqui), é uma oportunidade de revanche, vingança – o doce sabor de escurraçar um presidente limítrofe, sem nenhum senso de pudor ou consciência da liturgia do cargo que ocupa.
Por exemplo, sem a menor cerimônia passa a celebrar as “informações de bastidores” por trás da “crise” do “Golden Shower” publicadas em matéria de capa da revista “Veja”. A mesma revista acusada de fazer “jornalismo de esgoto” por anos de guerra contra os governos trabalhistas de esquerda que agora ironicamente cita como arma de denuncia – clique aqui.


O presidente desinterino Temer ocupou no passado recente esse mesmo papel de “boi de piranha” – suas mesóclises parnasianas, sua pomposidade provinciana em eventos internacionais, etc. Figurado como um vampiro que sugava a esperança da Nação, serviu de para- raio para garantir a eficácia do primeiro ato do ataque das maldades neoliberais, fora do foco da opinião pública.

Troca de passes mídia/clã Bolsonaro

Além disso, a guerra semiótica criptografada é uma ótima oportunidade para o também interminável controle de danosda imagem da grande mídia, após os anos de jornalismo de guerra cujo resultado é esse cenário que está diante de nós. 
A troca de passes atual que a mídia corporativa faz com as dissonâncias produzidas artificialmente pelo clã Bolsonaro cria a deixa ideal para os apresentadores e analistas políticos midiáticos posarem de imparciais quando criticam as “falas desnecessárias” do capitão, destacam os “cala a boca” do general Mourão e discutem as “repercussões” na base de apoio do Congresso.
Aliás, essa é a deixa principal para, mais uma vez, turbinar as chantagens pelas “reformas” – como o mal-estar no Congresso provocado pelas bravatas e pitacos de Bolsonaro podem atrapalhar as supostas urgências para solucionar o buraco na Previdência.
 Mas grande parte da pauta da mídia passa a ser sistematicamente ocupada pelas dissonâncias praticamente diárias produzidas pelo clã Bolsonaro. Essa estratégia de agendamento proposital livra também a grande mídia da sua cobertura monofásica das soluções neoliberais.
Sem dar espaço para o contraditório e entrevistando apenas economistas de empresas de investimento do mercado financeiro, os telejornais tornam-se enfadonhos, repetitivos, martelando sempre na mesma tecla da chantagem e da ameaça do abismo.
Simplesmente desapareceram das informações de pauta das matérias jornalísticas os economistas de centrais sindicais ou associações classistas comerciais ou industriais. Só existe o mercado financeiro – afinal, a grande mídia virou rentista.


Falar mal do limítrofe Bolsonaro é mais divertido, criando uma aparência de debate e imparcialidade. E para a esquerda, nada mais representa do que o prato frio da vingança.
Aliás, essa guerra criptografada de dissonâncias e caneladas parece hipnotizar a esquerda. Simplesmente ela não consegue superar a cena traumática da derrota de 2018, quando naquele momento as bolhas das redes sociais e das manifestações do “Ele Não!” indicavam uma virada na reta final.
Sem conseguir sair dessa armadilha de agendamento da pauta sob o bombardeio dos petardos criptografados, não consegue concentrar suas energias na criação de um “terceiro turno” que tomaria conta do espaço público com todas as formas de mobilizações e protestos (greves, guerrilhas semióticas anti-mídia – clique aqui, ocupações de protestos, desobediência civil etc.)
Todos parecem prisioneiros dessa matrix criada pela guerra semiótica de criação sistemática de dissonâncias, cativos desse show que nunca termina.

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O horror da elite poderosa e amoral no filme "Society"

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Tente misturar referências cinematográfica como “Veludo Azul” com “Eles Vivem” e “Invasores de Corpos”, para depois se apropriar das obras de Salvador Dali, Goya e Bosch como se elas estivessem vivas e em movimento. O resultado estranho e bizarro será o filme cult de terror “Society” (1989): no subterrâneo da ensolarada vida em tons pastéis de mansões e ricaços de Beverly Hills, suspeita-se que se esconda algum tipo de lodo subterrâneo libidinoso e surreal de festas privadas, orgias e estranhos rituais. A suspeita e a paranoia farão os protagonistas suspeitarem de algo satânico, para descobrirem que é algo ainda maior e incompreensível, numa das sequências finais mais estranhas da história do cinema, podendo ser colocada ao lado de finais com viradas narrativas como Cidadão Kane e O Sexto Sentido. Mas também “Society” cria a perfeita metáfora de uma classe dominante rica, poderosa e amoral.
“Somos uma grande família feliz... Exceto por um pequeno incesto e psicose.”
(linha de diálogo do filme “Society”)

 Os filmes Cidadão Kane de Orson Welles e O Sexto Sentido de Shyamalan estão entre os melhores finais na história do cinema – violentas viradas narrativas que, em um segundo, fazem um filme inteiro ter um sentido totalmente diferente.
Mas certamente a sequência final do clássico cult Society (1989) pode ser definida como o mais ousado e bizarro final jamais visto no cinema – maquiagens e efeitos especiais inspirados em, nada mais e nada menos, duas pinturas do surrealista Salvador Dali: “O Grande Masturbador” e “Construções Moles com Feijões Cozidos”, colocando-se no hall da Cineteratologia, o estudo das representações da monstruosidade no cinema – sobre esse conceito, clique aqui.
Um final tão estranho que para estrear nos cinemas teve que ter quatro minutos cortados. Mesmo assim, apesar de ser produzido em 1989, Society só foi lançado para as telas americanas em 1992. Para depois desaparecer rapidamente dos circuitos de exibição.
O filme é um exercício de gratificação adiada: são 70 minutos de uma narrativa que vai num crescendo de estranhamento até chegar ao final absolutamente insano. Society começa como alguma coisa entre Curtindo a Vida Adoidado Patricinhas de Beverly Hills, estrelado pelo fotogênico Billy Warlock, que mais tarde faria séries de TV como Baywatch SOS Malibu.
Jovens ricos na vida afluente de Beverly Hills entre mansões e colégios de elite, vivendo dias ensolarados em tons pastéis, a bordo de seus carros de luxo dirigindo para a praia. Que mal poderia se esconder sob esses cenários suaves e coloridos?


Nesse ponto, Society começa a se tornar um filme cult e lendário: aos poucos torna-se um cruzamento entre Veludo Azul de David Lynch e Eles Vivem de John Carpenter: cercas de madeiras coloridas, imensos jardins e casarões de ricaços apenas escondem o Mal na sua acepção mais sinistra – o Mal que não se limita a atrair vítimas incautas, mas que se espalha e cria raiz na sociedade: na política e na cultura. O Mal que forma uma classe dominante que de tão rica e poderosa, deixou de ver-se a si mesma como humana. E por isso, destituída de qualquer prurido ético ou moral.
Deuses malignos ou extraterrestres sinistros (como em Eles Vivem) já foram metáforas das conspirações das classes dominantes em muitos filmes. Mas em Society, esse Mal é polimórfico, indeterminado, amoral, informe, mole. 
E para o pobre protagonista do filme, como aos poucos a solidez aparente do cotidiano (a casa, a escola, a família etc.) vai aos poucos se diluindo em paranoia e estranhamento. Até tudo se dissolver na bizarra sequência final.

O Filme

Bill Whitney (Billy Warlock) é um garoto rico de uma escola secundário de elite em Beverly Hills. Vive em uma mansão com sua família e ocasionalmente pega seu jipe para levar sua namorada também milionária para passar um dia na praia. Mas, aparentemente, tem os mesmos problemas emocionais de um adolescente comum: desconfia de qualquer autoridade, sente-se um estranho dentro da própria família e suspeita que tenha sido adotado.


Mas aos poucos começamos a desconfiar que pode haver algo mais além por trás da paranoia e estranhas alucinações – seus pais talvez estejam tramando algo mais sinistro. Algo mais além da história do pobre garoto rico preso em uma gaiola dourada na Califórnia ensolarada.
Parece haver algum tipo de relação incestuosa entre seus pais Jim (Charles Lucia), Nan (Cocetta D’Agnese) e sua irmã Jenny (Patrice Jennings). Mas ao mesmo tempo, Bill sente uma estranha atração pela própria irmã. Porém, Bill é assaltado por supostas alucinações onde vê estranhas transformações polimórfica no corpo da irmã.
Billy confessa tudo isso ao psiquiatra Dr. Cleaveland (Bem Slack), sobre como se sente separado da própria família, como se eles fossem de uma outra espécie. 
Um dia, outro jovem que, como Bill, sente-se um pária naquela sociedade afluente, lhe apresenta provas: Blanchard (Tim Bartell) mostra uma gravação secreta na qual ouve-se os pais de Billy envolvendo-se em algum tipo de ação desagradável com Jenny, o garoto mais rico da escola e uma suposta vítima, gritando com uma voz rouca.
Há algum lodo libidinoso e bizarro no submundo daquela sociedade rica e feliz: festas privadas e orgias envolvidas com estranhos rituais. Provavelmente de natureza satânica.
Aos poucos Billy descobre que vive numa estranha sociedade, dentro de uma classe com seus próprios conjuntos de rituais onde o status parece não ser concedido propriamente pela posse de muito dinheiro, mas por ocupar algum tipo de papel-chave em estranhas festas e orgias. Que parece produzir vez em quando “acidentes”, como a disfuncional mãe de Clarissa (a ex-coelhinha da Playboy Devin DeVasquez), muda, sempre com uma pesada maquiagem e que constantemente quer pegar chumaços de cabelos alheios para comer.
Dessa maneira, Society aos poucos vai criando uma atmosfera que lembra as pérolas do terror B dos anos 1950 como Invasores de Corpos ou Invasores de Marte. Tudo é apenas esboçado, sugerido, para depois de 70 minutos tudo explodir com o Mal vindo repentinamente para a superfície, engolindo todos os personagens e o próprio espectador, como se assistíssemos a alguma obra de Dali, Goya em Bosch que ganhasse vida em frenético movimento.


A maldade cineteratológica - alerta de spoilers à frente

A desconfiança de que algo horrível se esconde sob o verniz da respeitável classe média norte-americana ou de que a elite política e econômica faz parte de algum tipo de culto sanguinário não é um tema novo no cinema, desde O Segundo Rosto (1966) até De Olhos Bem Fechados (1999) de Kubrick.
Mas o que impressiona em Society é a representação gráfica do Mal. Esqueça o sofrível titulo dado em português para o filme (“A Sociedade dos Amigos do Diabo”) que tenta estereotipar o tipo de maldade cineteratológica que o filme trabalha. 
A elite de ricaços de Beverly Hills, com evidentes conexões políticas com Washington (como sugere, de passagem, a narrativa), nada tem a ver com satanismo ou extraterrestres, como em Eles Vivem
É o Mal polimórfico, que parece se alimentar de substrato humano de vítimas selecionadas das classes inferiores. Uma brilhante metáfora para aquela década da ascensão de uma elite financeira de Yuppies, para a qual “a ambição é boa”, como dizia Gordon Gekko no clássico Wall Sreet, de 1987.


A década que definiu os parâmetros da financeirização que culminariam com a globalização dos anos 1990, cujas instabilidades e liquidez impõem a valorização da mutabilidade, fragmentação, jogo e a neutralização da ética e moral. O que do ponto de vista cineteratológico, corresponde a radical mudança da representação do Mal: não mais através dos monstros clássicos, sólidos e disformes. Agora o Mal é “mole”: instável, polidimensional, mutante, metamórfico. Em suma, a monstruosidade neobarroca.
Moralmente, a elite representada pelo filme é neutra, amoral: parecem matar muito mais pela sua própria natureza do que por um impulso de “maldade” – assim como zumbis ou a criatura metamórfica de Alien
Dessa forma, Society termina fazendo a mais perfeita, assustadora e bizarra metáfora para a classe dominante contemporânea: de tão rica e poderosa deixou de ser humana para se tornar alguma coisa indeterminada, amoral e sem compaixão. 
Assim como a fábula do sapo e do escorpião: quando o sapo perguntou por que o escorpião havia lhe picado as costas (afinal, o acordo era ajuda-lo a atravessar o rio), o escorpião respondeu, “esta é a minha natureza e nada posso fazer para mudar o destino”. 

  

Ficha Técnica 


Título: Society
DiretorBrian Yuzna
Roteiro:  Rick Fry, Woody Keith
Elenco:  Billy Warlock, Devin DeVarquez, Charles Lucia, Patrice Jennings, Ben Slack
Produção: Society Productions Inc., Wild Street Pictures
Distribuição: Arrow Films (DVD, Blu-ray)
Ano: 1989
País: EUA

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Massacre de Suzano: guerra híbrida prepara seu exército de zumbis

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“Não tinha percebido, agora é tarde demais. A campanha deles começou há 20 anos... Um lento conta-gotas de medo e ódio...”. Talvez essa linha de diálogo do filme “Brexit” (narrando os bastidores de uma campanha política que disseminou polarização com todas as armas de uma guerra híbrida) seja uma das pistas para um início de discussão em torno do massacre na escola pública de Suzano/SP. Mais uma tragédia numa sucessão tão sincrônica de eventos que demonstra o quanto a psico-esfera nacional foi envenenada. Da recorrência de simbolismos dos sonhos nos períodos que antecederam guerras, constatada por Carl Jung na Alemanha, às “coincidências significativas” que acompanham os recentes massacres, ataques e atentados no Brasil, tudo parece comprovar uma dominância no inconsciente coletivo de “pontos nodais” de energia psíquica que influenciam ações de indivíduos. Há uma conexão entre a hipótese sincromística e Guerra Híbrida? Se existir a conexão, essa guerra semiótica teria um propósito mais profundo: a formação de um verdadeiro exército de zumbis para atuar em dois fronts: tecnologia da informação e disseminação do medo na sociedade.

Era 1936. Em sonhos de seus pacientes o psicanalista Carl Gustav Jung começou a perceber um fenômeno onírico que parecia anteceder momentos de turbulência, como a guerra: conteúdos que exprimiam crueldade, brutalidade e violência. A recorrência desses temas levava a crer que não eram puramente de caráter pessoal, mas coletivo. Os delírios apareciam nos sonhos dos pacientes e nos próprios sonhos de Jung.
Desde 1917, Jung percebia que esse simbolismo onírico encontrava paralelo na mitologia, folclore e nos contos de fadas. Eram para ele “imagens primordiais” que não se explicavam unicamente pela transmissão cultural ou educação. Eram como “dominantes” de um inconsciente coletivo, pontos nodais que atrairiam energia, influenciando o funcionamento do indivíduo. Eram “arquétipos”, símbolos do inconsciente coletivo.
No momento da ascensão do nazismo, o que Jung viu nos sonhos dos seus pacientes (e nele próprio) foram forças inconscientes que personificariam o deus Wotan: “deus da tormenta e da efervescência, desencadeador das paixões e das lutas e, além disso, mago poderoso e artista das ilusões, ligado a todos os segredos da natureza oculta" (JUNG, Carl G., Aspectos do drama contemporâneo, Petrópolis, Vozes, p.5). 
Wotan: o mais poderoso deus da mitologia nórdica que deixa um rastro de acontecimentos fatídicos. E também o supervilão arqui-inimigo do super-herói Senhor Destino, da DC Comics.
Hoje, o folclore, mitologias e contos de fadas foram substituídos pelos games de computador e a mídia, do jornalismo ao entretenimento. Mas não só substituídos. Foram potencializados com as novas tecnologias em tempo real, criando uma espécie de realidade aumentada: uma capa ou interface virtual, um contínuo midiático, através da qual os pontos nodais do inconsciente coletivo descritos por Jung entram em contato com mais frequência com o mundo cotidiano.

Jung e o arquétipo Wotan

O que os brasileiros sonham?

O massacre ocorrido numa escola pública da até então pacata cidade de Suzano/SP (dois ex-estudantes da escola, um adolescente e um homem encapuzado, fizeram um ataque suicida matando sete pessoas) faz lembrar imediatamente a perplexidade de Jung ao descobrir simbolismos oníricos de brutalidade e morte nos momentos que antecederam as duas primeiras guerras mundiais.
Seria muito interessante sabermos quais seriam os símbolos recorrentes nos sonhos dos brasileiros desde que o psiquismo nacional foi envenenado pelo ódio e polarização política normatizado pela grande mídia, braço armado da guerra híbrida colocada em ação no País desde 2013.
Mas na falta de uma análise sistemática do material onírico dos brasileiros, basta observarmos o sincronismo dos eventos em série que se abatem na psico-esfera nacional: A catástrofe humana e ambiental de Brumadinho, a morte de jovens atletas no incêndio criminoso no CT do Flamengo, morte de crianças e bebês em desmoronamentos nas enchentes de São Paulo, notícias diárias de feminicídios, câmeras de rua flagrando valentões armados resolvendo a tiros pendengas no trânsito. 
A tal ponto que nem a grande mídia vem suportando a depressiva pauta nacional e, pateticamente, procura (por meio de estratégias discursivas) destacar sempre o lado da “boa notícia”, mesmo nas tragédias – clique aqui
Por mais que o jornalismo corporativo tente reduzir o massacre na escola pública de Suzano a um ato de “maldade” ou “loucura” de jovens isolados (o que, em última instância, acaba justificando o discurso da liberalização das armas – afinal, nunca se sabe quando um “doente” poderá atacar), o noticiário começa a se render à evidência de que o massacre foi planejado. E com mais de um ano de antecedência. E ainda: de que os jovens assassinos frequentavam um submundo de fóruns de ódio na Deep Web nos quais contaram com assessoria. 


Brancos, heteros, sociopatas e “losers”

Certamente o planejamento da ação nesse longo período foi impactado (ou mesmo estimulado) pelo ataque de escola em Goiânia/GO (morte de dois alunos por tiros desferidos por um colega de 14 anos) e a morte de oito crianças e uma professora em uma creche em Janaúna/MG por um vigia que ateou fogo nas vítimas e em si mesmo. Ambos ataques em 2017.
Além de, nesse meio tempo, em dezembro de 2018, o fato de uma igreja em Campinas/SP ter sido invadida por um homem que atirou em fiéis e depois se suicidou, após matar cinco pessoas e deixar três feridas, poderia ter sido mais um evento de estímulo à premeditação do massacre. 
Em todos esses casos trágicos, há recorrências que tornam esses eventos sinistros: (a) crimes cometidos por homens, brancos e heteros; (b) todos sociopatas e reclusos – “losers”, desempregados, morando com os pais e sem perspectiva sócio-econômica ou cultural; (c) problemas psiquiátricos persecutórios, num quadro de paranoia e ressentimento; (d) a questão do bullying ou da humilhação (seja escolar, familiar ou social) resolvida pela brutalidade de uma “solução final”; (e) e a decorrência de todos esses fatores: o impulso da vingança contra a sociabilidade – ou será contra a própria civilização? 
 Homens frustrados e revoltados vivendo em algum tipo de realidade paralela, dominada por ditaduras de feministas, LGBTs, na qual “ser branco demais, ter nariz grande ou espinhas são o suficiente para sofrer terrorismo psicológico”, como usuários comentaram no Dogolachan (fórum da Deep Web extremista que é um celeiro de atos violentos) logo após o massacre de Suzano.
Segundo a blogueira Lola Aronovich, o crime foi premeditado, planejado e anunciado no chan pela dupla de jovens atiradores até cinco dias antes do acontecimento na escola de Suzano – clique aqui. No dia anterior ao massacre, um dos assassinos postou um agradecimento a “DPR”, codinome do administrador do Dogolochan, que pode ser visto na captura de tela abaixo.


Esses fóruns exalam por todos os lados revolta e ressentimento que empurra uma espécie de ativismo pela recuperação dos “direitos dos homens”, supostamente furtados por algum tipo de ditadura do “politicamente correto”, conspiração gay, feminista ou mesmo comunista.

“Brexit” e “Fake News Fairytale”

O que está criando esse submundo psíquico que agora podemos presenciar seus efeitos? Por que esse inconsciente coletivo envenenado?
Esse humilde blogueiro acredita que as primeiras pistas podem ser buscadas em duas produções audiovisuais: na produção HBO Brexit (próximo filme que será analisado pelo “Cinegnose”) e no curta metragem Fake News Fairytale (2018, clique aqui).
Dirigido por Toby Haynes e estrelado por Benedict Cumberbatch (O Jogo da Imitação), o filme narra os bastidores da campanha vitoriosa pelo Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) no plebiscito de junho de 2016. Não só fica evidente como a consulta popular foi um campo de provas para as estratégias de guerra semiótica que levaram Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil ao poder, como também a forma como, pouco a pouco, o ódio foi destilado e a polarização da opinião pública progressivamente alimentada. Condições sine qua non para bloquear qualquer debate racional e mobilizar o ressentimento como arma política.
O ponto alto foi o assassinato da deputada britânica trabalhista Jo Cox, em plena rua, por um homem que gritou “Britain First!” e desferiu uma punhalada e disparou um tiro contra a vítima – o detalhe nessas ações são punhais, machados e arco e flecha: formas performáticas de demonstração de poder e autoridade.
“Não tinha percebido, agora é tarde demais. A campanha deles começou há 20 anos... Um lento conta-gotas de medo e ódio... Quantos de nós culpamos a Europa e os estrangeiros quando era politicamente conveniente? E agora?”, lamenta o estrategista político da campanha contra o Brexit.
Enquanto o documentário curta-metragem Fake News Fairytale mostra como a pequena e empobrecida cidade de Veles, no interior da Macedônia, ganhou fama de centro produtor de fake news que beneficiaram a campanha de Donald Trump: sem emprego ou futuro, jovens viram na criação de falsos perfis nas redes sociais para disseminar mentiras e boatos, a chance de ganhar dinheiro rápido.
Outrora centro comercial e industrial, a cidade foi arruinada como os movimentos econômicos da globalização e financeirização, condenando-a a se tornar uma espécie de Detroit do Leste europeu. Habitada por uma geração de jovens “losers”, sem perspectiva na vida, humilhados, morando na casa dos pais, sem autonomia ou direção.
"Fake News Fairytale": o "lixo branco ocidental " será o exército de zumbis da guerra híbrida?

A matéria-prima do ódio

Pronto! Temos a matéria-prima psíquica de recrutamento para qualquer discurso de ódio: a panela de pressão do ressentimento cujo vapor busca alguma saída para a tensão – a velha busca de algum bode expiatório que alimenta todo tipo de discurso supremacista, seja de raça, gênero, classe etc.
Se a psico-esfera de uma nação pode ser exponencialmente envenenada a partir de rastilhos psíquicos (medo, ódio, ressentimento etc.) potencializado por condições sócio-econômicas determinadas, então perigosamente nos aproximamos da hipótese do sincromisticismo – argumento de pesquisadores como Jason Horsley, Chistopher Knowles, Jason Kotze e os “efeitos copycat” descritos por Loren Coleman no seu livro “The Copycat Effect: How the media and popular culture trigger the mayhem in tomorrow’s headlines”.
A partir de noções teosóficas como a de forma-pensamento (criações mentais que utilizam matéria fluídica capazes de criar formas autônomas no Plano Astral), o Sincromisticismo concebe as relações sociais como que imersas em um oceano de pensamentos que por determinadas condições sedimentam-se em egrégoras e arquétipos capazes de produzir “conexões significativas”.
Se o pensamento humano nas relações interpessoais já é capaz de produzir tais efeitos, em uma sociedade onde arquétipos e egrégoras são instrumentalizados e materializados pela mídia esse poder plástico de moldagem no Plano Astral seria potencializado de forma exponencial. Em consequências as “conexões significativas” ou eventos sincrônicos multiplicam-se.
Dogolachan: o celeiro de ressentimento e ódio

Seja no plano do inconsciente coletivo ou no “Plano Astral Midiático”, em dadas circunstâncias (vácuo mental de um indivíduo associado às guerras políticas semióticas como legalização da posse de armas, incitação da polarização, do ódio e medo) essas formas-pensamento podem entrar em contato com o mundo “real” produzindo massacres e atentados como uma conexão significativa, isto é, sincrônica.
Tomados de forma isolada são meros personagens ficcionais em narrativas de entretenimento. Mas em dadas circunstâncias (como na atual onde o nacionalismo de direita e a geopolítica norte-americana implementam sofisticas estratégias de guerra híbrida) esses seres ficcionais tornam-se formas-pensamento alimentadas pelos rastilhos psíquicos. 
Do arquétipo do Coringa (por trás de muitos massacres nos EUA, veja links abaixo), passando por Wotan nas HQs ou games violentos Call of Duty ou GTA, todos eles podem ser “abduzidos” e fazerem parte de uma egrégora que cria “coincidências significativas”.
Claro que é irresponsável acusar videogames como a causa principal pelo massacre de Suzano, como fez o vice-presidente General Mourão – sempre tratado pela grande mídia como uma espécie de “presidente-em-exercício”. Seria como querer matar o mensageiro por causa da mensagem.
Por outro lado, seria ingênuo não considerar como as narrativas desses games involuntariamente ganham um sentido perverso em uma psico-esfera patológica, na qual são recrutados novos soldados para a formação de um verdadeiro exército de zumbis. 
Soldados para atuar em duas frentes bem definidas na guerra híbrida: (a) no front da tecnologia da informação – criação de fake news, deep fakes, pós-verdades e redes de fóruns de ódio; (b) no front social, espalhando medo e terror em massacres e atentados para legitimar o Estado policial e de exceção. Afinal, o Estado ideal para implementar todas as medidas neoliberais necessárias de pulverização de direitos e garantias sociais.
A “mão-de-obra” é farta e pode ser facilmente encontrada na nova categoria social dos “excluídos”, criada pela financeirização – aqueles que nem para serem explorados servem mais. A não ser para se tornarem buchas de canhão do “brave new world”. 

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Em "Brexit" as ligações perigosas entre ficção e realidade

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Depois do filme “Polícia Federal: a Lei é para Todos” (2017) no cinema ou a série “O Mecanismo” (2018-) na Netflix (duas produções sobre processos que ainda não foram concluídos), agora é a vez de a HBO lançar “Brexit” (“Brexit: The Uncivil War”, 2019), também sobre eventos que ainda estão em desdobramentos: o resultado do referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia ainda não foi homologado e há investigações sobre a ilegalidade da campanha. Esse evento do Reino Unido foi o laboratório para as novas armas de guerra híbrida (algoritmos, mineração de dados e psicometria) que, dois anos depois, seriam aplicados silenciosamente na campanha eleitoral brasileira. Produções audiovisuais que expõem as perigosas relações de narrativas ficcionais com fatos reais que ainda estão em andamento: no Brasil, peças de propaganda para cimentar a realidade por meio da ficção; e na produção HBO a transformação em “thriller político” da grave crítica de como os algoritmos estão minando a democracia. 

Muito se fala sobre o papel das novas tecnologias como mídias de convergência e Internet no atual cenário de guerra híbrida – ofensiva de guerra semiótica que impulsionada a guinada nacionalista de direita da geopolítica norte-americana. 
Não são apenas os algoritimos da Cambridge Analytica, o feiticeiro da ciência computacional, Robert Mercer, ou o gênio da psicometria e mineração de Big Data, Michal Kosinski, da universidade de Cambridge. Nomes que convergiram nos esforços para a vitória de Trump, por exemplo.
Mas há também algo mais, para além de todas essas novíssimas tecnologias. Algo ainda tradicional, do velho campo das mídias de massas: cinema, TV e audiovisual. Principalmente como a ficção é capaz de cimentar a realidade e como muitas vezes a própria realidade pode emular a ficção.
E parece que o canal de TV por assinatura norte-americano HBO e a plataforma de streaming Netflix fazem também parte disso: a intervenção ficcional em eventos que ainda estão em desdobramento e cujo desfecho ainda é incerto.
Filmes como Polícia Federal: a Lei é para Todos (2017) e a série Netflix O Mecanismo (2018-) são exemplos de produções audiovisuais lançadas em meio às sucessivas fases da Operação Lava Jato. Narrativas assertivas e que têm posicionamento político-ideológico (isto é, verdadeiras peças de propaganda), no calor de acontecimentos que ainda não tiveram conclusão.


Pesadas críticas

O mesmo caso é da produção HBO Brexit (Brexit: The Uncivil War, 2019). Desde o lançamento do trailer, o filme estrelado por Benedict Cumberbatch (O Jogo da Imitação) recebeu pesadas críticas, principalmente dos britânicos: o processo ainda está em desdobramento, a campanha do Brexit está em investigação e a produção da HBO pode interferir numa ação que está na Justiça – a campanha “Vote Leave”. Está sendo acusada de ter gasto 8,8 milhões de libras, muito mais do que a legislação permite e as estratégias nas redes sociais são alvos de discussões. Até por isso, o plebiscito ainda não foi validado.
“F*da-se HBO. Imagine se tivéssemos fazendo isso com o Trump. Vocês estão interferindo no nosso sistema judiciário”, protestou a premiada jornalista do “The Guardian”, Carole Cadwallard.
E mais: a jornalista acusa que uma das produtoras de Brexit, a House Productions, é propriedade de Len Blavatnik. O empresário foi um dos principais doadores de campanha e eventos do atual presidente dos EUA, Donald Trump.
Comparando com as intervenções ficcionais como O Mecanismo e Polícia Federal (explicitamente propagandísticas), Brexit apresenta uma narrativa ambígua. Apesar de didaticamente figurar como a campanha do “Vote Leave” abandonou as formas tradicionais de propaganda e publicidade e explorou inéditas estratégias como a mineração de dados (Cambridge Analytica) nas sombras das redes sociais, Brexit assume um tom narrativo ambíguo e, muitas vezes, tendendo a ficar do lado de Dominic Commings – o cérebro estrategista por trás da campanha vencedora.
Um retrato de Cummings como um político anarquista que queria invadir um sistema político carcomido por uma velha política na qual os britânicos se sentiriam marginalizados e sem controle de suas próprias vidas.
E nessa entrelinha que Brexit deve ser analisado: ao transformar em ficção um fato real que ainda não foi esgotado, o resultado é que a própria suposta denúncia do filme (a falta de ética de uma campanha que criou ódio e polarização) pode se transformar em ficção. E o centro da questão (a transformação da política em uma batalha de algoritmos) em um thriller político ou de ficção científica.


O Filme

Como não poderia deixar de ser, Brexit é centrado no duelo entre o estrategista político e marqueteiro Dominic Cummings (Benedict Cumberbatch) a favor da saída do Reino Unido do bloco europeu no plebiscito de 2016, e Craig Oliver (Rory Kinnear), o articulador da campanha pela permanência do Reino Unido na União Europeia.
O filme inicia colocando o protagonista Cummings numa espécie de prestação de contas, em um tribunal que acontece quatro anos depois do Brexit. A narrativa começa figurando-o como uma figura fria, cerebral, obcecada e sem escrúpulos – capaz de fazer uma aliança escusa com uma companhia que opera nas profundezas das redes sociais: a Cambrige Analytica de Steve Bannon, turbinada pelos algoritmos psicométricos de Michal Kosinski.
Mas aos poucos é humanizada pela gravidez de risco da esposa, numa estressante situação que ocorre simultaneamente aos preparativos para o plebiscito.
O ritmo de Brexit é frenético, mas entremeado com verdadeiras aulas sobre mídias sociais e as diferenças com as formas tradicionais de marketing e propaganda política.
Principalmente a diferença crucial entre as estratégias tradicionais de massificação e as táticas de viralização postas em ação por Cummings – enquanto o seu adversário ainda vivia na propaganda política tradicional de panfletagem para massificar um slogan, a campanha “Vote Leave” buscava os perfis favoráveis nas redes sociais para direcionar mentiras (como, por exemplo, de que a saída da EU faria o Reino Unido economizar milhões de libras e beneficiaria a economia), deixando o trabalho de viralização para as conexões sociais do perfil-alvo.
Principalmente, acompanhamos o sofrimento de Craig Oliver em tentar compreender o elemento novo que estava irrompendo naquele processo do referendo: ainda preso às práticas mercadológicas tradicionais como pesquisas qualitativas em grupos de discussão (focus group) e inconformado com a repercussão da mídia às fake news da campanha “Vote Leave”, vê perplexo como as redes de proteção das instituições democráticas estão cada vez mais esgarçadas.


Ressentimento e polarização

A cena-chave é quando, numa das reuniões do focus group, uma mulher que apoia o Brexit é acusada de racismo para explodir em lágrimas e ressentimento ao dizer que nada tinha a perder e que se sentia sua vida marginalizada.
A ideia de que as pessoas possam apoiar qualquer coisa que prometa sacudir o sistema político foi o mote principal da retórica antissistema, galvanizada por Cummings, Trump (e aqui por Bolsonaro) usando tecnologia moderna e minerando os perfis exatos de pessoas que poderiam espalhar o ressentimento como um vírus psíquico.
A críptica fala de Craig Oliver ao ver explodindo diante de seus olhos, em um mero grupo de discussão, o ressentimento que cria a polarização para travar qualquer debate, é a conclusão de tudo: 
“Não tinha percebido, agora é tarde demais... A campanha deles começou há 20 anos... um lento conta-gotas de medo e ódio, sem que ninguém quisesse se contrapor. Pior, nós também o fizemos. Quantos de nós culpamos a Europa, ou o estrangeiro quando era politicamente conveniente?”, lamenta ao ver a discussão em grupo terminar de forma abrupta.
Porém, o problema de filmes sobre fatos reais que ainda estão em desdobramento é a narrativa ficcional. Brexit estereotipa os personagens dentro do tradicional maniqueísmo hollywoodiano, inviabilizando toda a suposta crítica ética que o filme faz à campanha do Brexit.


Os políticos, e principalmente o prefeito de Londres, Boris Johnson, são figurados como ridículos, ultrapassados, limítrofes. Enquanto Cummings é antissistêmico, jovem, idealista, quase um anarquista que pretende explodir o sistema por dentro. Como declara ao final no suposto tribunal de prestação de contas: “Há uma falha de sistema nesse país e em todo Ocidente. O que faz numa falha de sistema? Reconfigura-se. Foi o que eu fiz...”.
No final, a narrativa de Brexit corrobora com a mesma retórica antissistêmica de figuras tão velhas quanto a própria política. Por isso mesmo sabem os pontos fracos da democracia representativa. Nada há de novo, a não ser o niilismo interesseiro, que explora o ressentimento para uma finalidade imediata.
Porém há uma questão final: o registro ficcional de um fato real que ainda não terminou. Enquanto peças de propaganda como a série O Mecanismo atuam como cimentos da realidade (querem legitimar fatos a partir da ficção), em Brexit observamos outro dispositivo híbrido – dentro do esquema maniqueísta, converte todo o núcleo teórico da crítica (como os algoritmos corroem a democracia) em thriller político ou “conspiratório”.
Para quê? Para minar ou neutralizar qualquer critica articulada no mundo real contra uma tecnologia que destrói a democracia. Transformar qualquer voz contrária em “teoria da conspiração”. 


Ficha Técnica 


Título: Brexit
Diretor: Toby Haynes
Roteiro:  James Graham
Elenco:  Benedict Cumberbatch, Sarah Belcher, Rory Kinnear, Lucy Russel
Produção: Baffin Media, Channel 4 Television Corporation
Distribuição: HBO
Ano: 2019
País: Reino Unido

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Ressentimento de excluídos alimenta massacres dos zumbis da nova ordem global

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“Incels” (Celibatários Involuntários), “Hominis Sanctus”, PUA (Pick-up Artists), formas violentas de socialização masculina (macho alpha etc.) e uma variedade de pseudociências e conspirações LGBTs e feministas contra os homens formam um ecossistema de informação de fóruns e chans da Internet e Deep Web que se transformaram em “exército psíquico de reserva” – usina de ressentimento e ódio que alimenta ataques e massacres como em Toronto, Realengo, Suzano e Nova Zelândia. Um exército de zumbis à espera de cripto-comandos, sejam presentes em videogames ou em discursos de extrema-direita de um Trump ou de um Bolsonaro. Nova ordem global representada pela ascensão do nacionalismo de direita na qual o capitalismo precisa eliminar ou “reciclar” os excluídos (aqueles que nem para serem explorados servem mais). Os que não forem eliminados pelas políticas de redução populacional, tornam-se doadores psíquicos de ressentimento que legitima o Estado policial e militar – aparelho repressivo necessário num cenário de pulverização de garantias e direitos sociais.

Nietzsche foi um curioso das manifestações humanas e se debruçou num dos grandes sofrimentos da alma: o ressentimento. O filósofo alemão entendeu a urgência em estudar um tipo de sentimento relacionamento ao sofrimento de alguém que não consegue exterioriza-lo.
Se Karl Marx destacou a opressão das relações de exploração econômica da luta de classes e a onipresença da ideologia da classe dominante que mascarava a realidade, Nietzsche foi por um outro caminho: buscar a raiz desse sofrimento da alma através da genealogia da moral – como os valores (principalmente religiosos) são criados através da história nas relações entre dominantes e dominados, senhores e escravos, forte e fracos.
Como o silêncio dos dominados, impotentes e covardes para lutar pelos seus sonhos, transforma-se em ressentimento cuja principal característica é ruminar esta opressão e planejar, por um longo período, uma vingança. Mas principalmente a vingança em um bode expiatório, responsabilizado pelo seu próprio imobilismo.

Nietzsche: o filósofo do ressentimento

Certamente a direita compreendeu melhor essa filosofia do ressentimento do que a própria esquerda – enquanto os movimentos a esquerda tentaram arregimentar as massas com o discurso economicista, a direita sempre empregou a mais atual tecnologia de comunicação de cada momento (do rádio e cinema a dispositivos móveis e redes sociais) para catalisar esse ressentimento e transforma-lo num evento político e social.

Momento de inflexão

Hoje o modo de produção capitalista vive um momento de inflexão: depois da implacável globalização e financeirização do capitalismo das últimas décadas (marcado pela precarização, desregulamentação do trabalho, salários miseráveis, relações de exploração invisíveis por trás de plataformas tecnológicas e misteriosas transações econômicas na sombra do espaço digital), o capitalismo criou um número cada vez mais crescente de excluídos: aposentados, idosos, desempregados, desalentados, biscates, refugiados, inválidos e toda sorte de “excremento social”, resto que foi expelido do sistema digestor no qual o lucro é privatizado através de complexas transações e lavagens de títulos e papéis em tempo real, enquanto o prejuízo é socializado – principalmente nos crashs, como na explosão da bolsa imobiliária de 2008. 


Uma massa de excluídos ressentidos, porque se achavam os filhos preferidos de um futuro que prometia a bem-aventurança: a globalização como uma “estrada para o futuro” (Bill Gates”) na qual a tecnologia prometia a “inteligência coletiva”, o “capital do conhecimento” e outros messianismos. E tudo que foi entregue foi o chamado “capitalismo cognitivo” – treinamento para serviços comerciais e financeiros precarizados pelo uso da tecnologia digital, dentro de organizações flexíveis que oferecem trabalho precarizado. 
Chegamos a um ponto de Inflexão, porque agora chegou o momento de dar um destino a esse “excremento” (que nem para ser explorado serve mais), sob pena do risco de anomia ou ruptura da ordem política. 
Um destino pela eliminação física pura e simples (redução populacional forçada através da promoção de guerras, violência e criminalidade mediante desregulamentação da posse e porte de armas, destruição da seguridade social ou envenenamento por transgênicos e agrotóxicos), ou pela “reciclagem”, tornando os excluídos mais uma vez funcionais ao sistema, só que de uma forma perversa.

Reciclagem do “excremento social”

Primeira forma de reciclagem: através da religião ou inúmeras associações de autoajuda (que, no final, são uma coisa só), transformar o ressentimento em sentimento de culpa. Culpar a si próprio pelo fracasso e procurar em Deus, na “Teologia da Prosperidade” neopentecostal ou no “pensamento positivo” da autoajuda a expiação da culpa como o ticket de entrada na terra do sucesso. 


Segunda (e mais perversa) forma: direcionar a energia bruta do ressentimento para o acionamento de um exército de zumbis de apoio ao próximo salto do capitalismo globalizado: o populismo nacionalista de direita por trás da turnê de Steve Bannon na Europa, nos laboratórios de teste do Brexit e nas vitórias eleitorais de Trump e Bolsonaro, capazes de dar uma tradução política ao ressentimento dessa massa de excluídos ressentidos com a globalização.
Como Nietzsche apontava, o ressentido silenciosamente rumina a sua vingança. O linchamento virtual em redes sociais a cada voz de comando de Trump e Bolsonaro contra o bode expiatório da vez (liberais, marxistas culturais, Lei Rouanet, STF etc.) é um simples exemplo de atuação desses zumbis, cuja violência promete transbordar do virtual para o real – milícias são o principal esboço disso.
Porém os tiros e massacres de tragédias como em Suzano/SP, o massacre de 49 pessoas em duas mesquitas em Christchurch (Nova Zelândia), sem falar no ataque a uma mesquita na cidade de Quebec matando seis pessoas em 2017, apontam que está em marcha os zumbis de um exército de supremacistas – brancos com perfil sociopata, jovens “losers” sem perspectiva sociocultural , humilhados e ressentidos que reagem num planejamento de vinganças em uma realidade paralela – realidade na qual são vítimas de conspirações feministas, muçulmanos, LGBTs, globalização comandada pelo marxismo cultural etc.


Do terror islâmico ao supremacista zumbi

O processo geopolítico da globalização econômica foi acelerado no século XXI com a gigantesca false flage e inside job dos ataques de 11 de setembro de 2001, resultando na “guerra ao terror”, a criação do terror islâmico com seus homens bombas e atiradores que gritam “Allahu Akbar!” (“Alá é Maior!”) antes de matar todo mundo e a si mesmo. Não sem antes deixar convenientemente seu passaporte em lugar visível para a polícia encontrar e a mídia repercutir a identidade de um RAV – russos, árabes e vilões em geral... 
Charlie Hebdo, Champs Elysées, Manchester, Berlim, Londres, Nice, Bruxelas, todos ataques “não-acontecimentos” (clique aqui), quase duas décadas de “psy ops” para tentar reunificar a Europa e o Ocidentes após crise de 2008 sob o discurso do “choque das civilizações”.
Agora, o turbo-capitalismo financeirizado que criou excluídos em massa precisa livrar-se ou “reciclar” esse excremento social. O recrutamento já começou no ecossistema de informação de fóruns da Deep Web de adolescentes e estudantes universitários sem perspectivas, “losers” cujo ressentimento colide com os ideais “self made man” de sucesso – uma geração que teve mais acesso à escolaridade do que seus pais, mais que se sentem fracassados num quadro de precarização e desemprego.
Fóruns como o Dogolachan (conectado ao massacre de Suzano), o “Hominis Sanctus” (ligado ao massacre do Realengo em 2011 – site de fundamentalismo religioso e de intolerância a homossexuais, judeus e, sobretudo, mulheres) ou os “Incels” (grupo de celibatários involuntários e que culpam as mulheres e homens sexualmente ativos por não conseguirem ter relações sexuais) por trás do atropelamento com uma van em Toronto que matou dez pessoas são alguns exemplos – clique aqui.
Sem falar de fóruns ou os “chans” da Deep Web de PUA (Pick-up Artists) que naturalizam o assédio e o estupro porque veem as mulheres não como seres humanos, mas como “um código a ser decifrado” através de “treinos para seduzir” – clique aqui.


Jovens com sérios problemas de socialização que buscam nos outros a culpa do fracasso material e existencial. Jovens cujo ressentimento cria um bizarro senso de auto merecimento e auto reconhecimento (por exemplo, visto no sinal da supremacia branca feito com as mãos pelo atirador de Christchurch ao ser preso ou no uso performático de bestas, machadinhas ou câmeras para imortalizar os “feitos heroicos”) presente no discurso extremista no qual se veem como “homens santos” que nada mais fazem do que realizar seus destinos manifestos.
Formam um senso de comunidade cujo ódio e ressentimento criam uma forte coesão identitária. Todos apenas à espera de um sinal, um gatilho cognitivo que dispare um novo massacre ou linchamento virtual ou real. Um gatilho que pode ser dado desde um simples videogame (que não surge aqui como causa, mas como instrumento involuntário e perverso) até os cripto-comandos de discursos de extrema-direita proferidos por Trump ou Bolsonaro.
  Dessa forma essa massa de excluídos transforma-se não mais em exército industrial de reserva (massa de desempregados cuja função clássica era arrochar salários pela relação oferta-procura no mercado de trabalho), mas um exército psíquico de reserva – zumbis ressentidos, cheios de ódio à espera de um comando para o acerto de contas contra meninas, como em Realengo; muçulmanos, como na Nova Zelândia; mulheres e homens sexualmente ativos, como em Toronto e assim por diante. 
Qual o sentido geopolítico nessa nova ordem global do nacionalismo de direita? Justificar um Estado militarizado e policial de exceção. Um Estado forte não mais como garantidor do bem-estar social. Mas agora um Estado implacável na solução final para o “excremento social” produzido por décadas de globalização.
Um pequeno esboço disso está na resposta do ministro da Educação Ricardo Vélez aos tiroteios em Suzano: militarizar a escola Rui Brasil - “a viabilidade do modelo cívico-militar”, enquanto parlamentares governistas propõem que professores sejam armados...

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O detetive diante dos mistérios quânticos no filme "Out of Blue"

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Se o gato da experiência do físico austríaco Schrödinger pode estar simultaneamente morto e vivo dentro de uma caixa selada, haveria mesmo um assassinato para resolver? Se alguns astrofísicos acreditam que haveria um número infinito de universos com diversas variações possíveis das nossas vidas, ocorrendo todas simultaneamente, então qual a importância de encontrarmos uma resposta definitiva no presente? Se o detetive numa narrativa policial é aquele que tenta resolver enigmas com a racionalidade, como então lidar com um caso que parece imerso nesse conjunto de paradoxos quânticos? Esse é o filme “Out of Blue” (2018): uma policial tenta resolver o enigma da morte de uma astrofísica em um observatório astronômico. O problema é que a racionalidade da detetive e a sua condição de ex-alcoólatra serão confrontadas com os dois principais mistérios da física quântica: como o observador sempre altera o próprio objeto observado e o paradoxo de Schrödinger – pode um ser estar simultaneamente vivo e morto?

O escritor e diretor Joseph Mankiewicz disse certa vez que a diferença entre a vida e os filmes é que nos filmes os acontecimentos fazem sentido – um enredo com começo, meio e fim com causas e consequências. Enfim, o cinema em si seria uma forma de colocar ordem no caos.
Porém, o revival das mitologias gnósticas no século XX (da literatura até chegar ao cinema) e o impacto das teses da física quântica no cenário cultural até chegar também ao cinema, ajudaram a embaralhar as coisas e trazer para a narrativa fílmica as mesmas incertezas do mundo real – principalmente, a desconfiança quanto a consistência daquilo que chamamos de realidade.
Por exemplo, a famosa experiência do gato do físico austríaco Schrödinger (na qual o gato preso numa caixa está simultaneamente vivo e morto e somente a presença do observador e a entrada da luz acabariam com a dualidade) e paradoxos quênticos como “sobreposição”, “entrelaçamento”, “decoerência” e a impossibilidade do observador deixar de influenciar aquilo que observa, inspiraram nos últimas duas décadas uma sequência alucinante de filmes: Efeito Borboleta (2004), Deja Vu (2006), Crimes Temporais (2007), About Time (2013), Amantes Eternos (2013), Interestelar (2014), Coherence (2015), Triângulo do Medo (2016), entre tantos outros numa extensa lista.
O que unifica todos esses filmes é que nada é o que parece ser para os protagonistas, e que caos e ordem (assim como partícula e onda convivem simultaneamente no mundo microfísico, o que garante que o gato de Schrödinger esteja vivo e morto ao mesmo tempo) são dois lados simultâneos, cuja busca de resolução trás ainda mais incertezas.


O detetive e os mistérios quânticos

As coisas ficam ainda piores em uma típica narrativa policial, na qual o crime é uma perturbação da ordem e o detetive é o agente da Razão – aquele que tenta impor através do método racional de investigação e da Lei resolver a tensão da desordem.
Tente então imaginar o leitor um filme no qual o investigador está imerso em um mundo de paradoxos quânticos como os descritos acima, onde a resposta parece ser é que não há nenhuma resposta. Pelo menos não no sentido procurado pela lógica cartesiana.
Esse é o filme Out of Blue (2018), uma adaptação da diretora Carol Morley do livro policial “Trem Noturno” (1997) de Martin Amis. Se o gato de Schrödinger pode estar simultaneamente morto e vivo dentro de uma caixa selada, haveria mesmo um assassinato para resolver? Se alguns astrofísicos acreditam que haveria um número infinito de universos com diversas variações possíveis das nossas vidas, ocorrendo todas simultaneamente, então qual a importância de encontrarmos uma resposta definitiva no presente?
A morte de uma famosa astrofísica, cujo corpo é encontrado em cenário suspeito num observatório na cidade de New Orleans, faz a narrativa de Out of Blue criar uma série de analogias entre citações da Astrofísica e física quântica (“A morte catastrófica de uma estrela traz vida nova ao universo” ou “o observador sempre interfere no objeto observado”) e o trabalho de uma investigadora da polícia que tenta desvendar o mistério policial.

O Filme

Os detetives chegam em uma cena de morte em um observatório astronômico. O corpo que jaz no chão com o rosto totalmente desfigurado por um tiro a queima roupa, é de uma famosa astrofísica chamada Jennifer Rockwell – Mamie Gummer. 
“Ela é uma Rockwell?”, pergunta um dos investigadores. Sim, ela é filha de uma proeminente família cujo patriarca é um veterano herói de guerra que se tornou um magnata da indústria eletrônica, o Coronel Tom Rockwell (James Caan) e sua esposa, Miriam – Jacki Weaver.


Seus filhos gêmeos assumiram a direção dos negócios da família, mas Jennifer tornou-se uma cientista que busca respostas nas estrelas.
O filme começa com uma pequena reunião noturna de Jennifer com um grupo de estudantes na cobertura do observatório: “Para vivermos, uma estrela deve morrer... somos todos resultantes do pó das estrelas. Você sabe qual o seu lugar no Universo?”, filosofa Jennifer, sob o céu estrelado. Poucos momentos depois, ela será encontrada morta é a detetive Mike Hoolihan (Patricia Clarkson) será a responsável pelas investigações. 
Hoolihan é uma ex-alcoólatra em recuperação que diz não se lembrar de nada do que aconteceu na sua vida desde que se juntou à força policial e se livrou do vício.
Aqui começa a primeira analogia astrofísica: assim como Jennifer pretendia encontrar o “coração negro” que revelará todos os paradoxos de um buraco negro, também Hoolihan tentará encontrar o coração negro no interior de um suposto assassinato. Suposto, pois as evidências começam a apontar para um suicídio. Mas por que? Jennifer era uma mulher linda, de uma família rica, além de ser uma cientista idealista, bem-sucedida e de renome. 


A narrativa de Out of Blueé tipicamente “slowburn”, isto é, num ritmo lento, labiríntico, que lembra um mix de David Lynch com o intrincado mistério do filme Chinatown (1974) de Roman Polanski.
Um caso de homicídio (ou suicídio) tão excepcionalmente perturbador que levará a detetive à beira de um colapso. Este é um filme puramente cerebral – um quebra-cabeça, um enigma e uma miragem que parece indefinidamente não ter solução.
Isso porque há algum sentido oculto e transcendental: os paradoxos astrofísicos e quânticos parecem ser imanentes ao mistério da morte de uma astrofísica, como se o caso fosse uma força cósmica escura em cuja órbita gravitacional a vida de Jennifer esteve à deriva. E agora, a própria vida da detetive Hoolihan.

O gato de Schrödinger

Mas o principal paradoxo é o do observador e da “decoerência quântica” da caixa com o gato de Schrödinger. 
O físico austríaco tentou através dessa experiência visualizar as implicações do estranhíssimo e aparentemente ilógico mundo das partículas subatômicas – uma mesma partícula pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Schrödinger quis trazer esse paradoxo subatômico para uma situação fácil de ser visualizada: um gato está preso numa caixa que contém um recipiente com material radioativo e um contador Geiger. Se o material soltar partículas radioativas e o contador detectar, acionará um martelo que, por sua vez, quebrará um frasco com veneno, matando o bichano.


De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade pode se manifestar tanto como onda quanto partícula. Ou seja, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra, produzindo duas realidades probabilísticas simultâneas. As duas realidades aconteceriam simultaneamente dentro da caixa, até que fosse aberta – a presença de um observador e a entrada da luz intervindo nas partículas acabariam com a dualidade.
Ambas realidades existem simultaneamente dentro da caixa. Mas existe a chamada “decoerência quântica” que garante que essa situação “decaia” para um dos resultados: vivo ou morto. Isso impede que os “dois gatos” das situações diferentes interajam entre si. 
O olhar do observador altera a experiência observada. Esses paradoxos quânticos abriram, por assim dizer, uma brecha na Razão e nos métodos cartesianos de investigação da realidade. Isso, tanto a detetive Hoolihan quanto o espectador descobrirão – o detetive. Não consegue ficar neutro, pois aos poucos o arco da morte de Jennifer vai se abrir e finalmente se fechar no próprio passado que a detetive tenta esquecer, num clássico mecanismo freudiano de negação psíquica.
Definitivamente, Out of Blue não é para espectadores que esperam de uma trama policial um final que termina com a clareza cartesiana de um romance de Agatha Christie ou Raymond Chandler.
Duas pequenas pistas que talvez ajudem o leitor a resolver o enigma quântico: por que uma policial como Mike Hoolihan tem medo do escuro? E também: por que ela pintou o cabelo de castanho para esconder seus cabelos naturalmente loiros?
  

Ficha Técnica 


Título: Out of Blue
DiretorCarol Morley
Roteiro:  Carol Morley baseado em livro de Martin Amis
Elenco:  Mammie Gummer, Patrícia Clarkson, James Caan, Toby Jones, Jonathan Majors
Produção: BBC Films, BFI Film Fund
Distribuição: IFC Films
Ano: 2018
País: Reino Unido

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Cinegnose discutirá cinema gnóstico no Simpósio "A Transfiguração em 1900" no Rio

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Um estranho vortex abalou o Ocidente na virada do século XIX para o XX: mudanças radicais na vida urbana, nas ciências, tecnologias, artes, filosofia e costumes. E com o cinema não poderia ser diferente, pois estava no centro desse vortex – criou uma experiência perceptiva e sensorial absolutamente nova. O dispositivo cinematográfico acabou se tornando a metáfora do próprio funcionamento da mente na filosofia e ciências, criando uma crise na percepção e na maneira de nós encararmos o tempo e a permanência. Porém, enquanto o cinema revolucionava, ele próprio continuou prisioneiro da Caverna de Platão – um instrumento para a manutenção da ilusão do que entendemos como “realidade”. O surgimento do cinema gnóstico na virada do século XX para o XXI criou a possibilidade dessa emancipação. Esse tema será discutido por esse editor do “Cinegnose” no Simpósio “A Transfiguração em 1900”, dia 12 de abril no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro.

Este humilde blogueiro participará no dia 12 de abril do Simpósio “A Transfiguração em 1900” com o tema “Cinema 1900/2000: da Caverna de Platão à Matrix”. O evento, promovido pela revista “Cosmos e Contexto”, ocorrerá no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), na Rua Dr. Xavier Singaud, 150, Urca, Rio de Janeiro, às 14h.
O conjunto de palestras (veja programação abaixo) procurará refletir que estranho vortex emergiu na virada do século XIX para o XX. Fenômeno que mudou radicalmente a vida nas cidades, ciências, artes, filosofia, antropologia e costumes. O Simpósio pretende imergir na vertigem desse importante momento histórico através de um viés metodológico transdisciplinar.
O evento, organizado por Mario Novello e Nelson Job, será gratuito e sem inscrição e fornecerá certificado sob solicitação à revista Cosmos e Contexto pelo e-mail contato@cosmosecontexto.org.br
Esse é o resumo da palestra que será proferida por este editor do “Cinegnose”:
O ano de 1895 foi um marco no espírito do tempo de virada de século. As trinta e poucas pessoas que assistiram à “Arrivé d’un train gare à La Ciotat” (“A Chegada de um Trem a Ciotat”) estavam diante de uma experiência perceptiva e sensorial absolutamente nova. Sem noção do que estava ocorrendo, muitas correram para o fundo da sala com medo de serem atropeladas. O dispositivo cinematográfico mudou não só da sensibilidade humana, mas a própria definição intelectual das categorias de realidade, tempo, mudança e permanência.
Antes do cinema já haviam sido inventados alguns aparelhos de gravação como a fotografia (1820) ou o fonógrafo (1865), mas em nenhum deles era registrado o movimento de máquinas e seres humanos.
Em pouco tempo, esse experimento de final do século XIX dos irmãos Lumière causou profundo impacto. Primeiro em jornalistas, escritores e cronistas da época. Para depois impactar a filosofia, com Henri Bergson (a mente que opera como uma película cinematográfica), Edmund Husserl (a percepção da “realidade evidente” sem o conceito) ou Alfred Whitehead (o “universo que fotografa”).
O físico alemão Robert Jungk disse que a maior crise da virada do século foi a da percepção.
Ao mesmo tempo, muitos pesquisadores acreditam que o dispositivo cinematográfico descende diretamente do Mito da Caverna de Platão: partilharia da construção da irrealidade do mundo. Mas também o dispositivo fílmico poderia ser uma porta da saída dessa caverna com o seu potencial estético antirrealista, como demonstrou Meliés, contrapondo-se ao realismo dos irmãos Lumière.
Se o cinema foi capaz de impactar a filosofia e a cultura na virada de século, por outro lado o destino do cinema no século XX foi transformar-se em indústria, assumindo o realismo cinematográfico hollywoodiano e integrando-se à “caverna” da qual pretendia escapar. 
Cem anos depois, o mesmo drive “espiritual” de final do século XIX (Teosofia, Espiritismo etc.) simultâneo a descoberta do eletromagnetismo e a transformação da eletricidade em informação com o telégrafo, também explode na virada do ano 2000 com o gnosticismo pop no cinema – cosmogonias e teogonias gnósticas do início da era cristã como matéria-prima de produtores e roteiristas no cinema. 
Se o cinema impactou a filosofia e a cultura no século passado, o filme gnóstico tem o potencial de finalmente tirar o cinema da caverna de Platão. Caverna que no século XXI foi transformada numa Matrix com a tecnologia computacional.  

PROGRAMAÇÃO:

11 de abril (quinta-feira)

09:30 – Virginia Fontes (história)
10:30 – José Helayël (mecânica quântica)
11:30 – Gregory Chaitin (lógica)
14:00 – Octavio Bonet (antropologia)
15:00 – Nelson Job (transaberes)
16:00 – Mario Novello (teoria da relatividade)

12 de abril (sexta-feira)

09:00 – Carlos Eduardo (sociologia)
10:00 – Paloma Carvalho (artes plásticas)
11:00 – Luis Granato (psicologia)
14:00 - Wilson Ferreira (cinema)
15:00 – Auterives Maciel (filosofia)

A fenomenologia bergsoniana do Tempo em "Durante la Tormenta"

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Somos seres que sentem tristezas, paixões, emoções pessoais ou estéticas. Essas sensações e emoções crescem em nossa alma até ocupar o psiquismo, criando nossas memórias. Elas conferem duração, o “tempo puro”, distinto do Espaço que nos dá a ilusão de que o Tempo é apenas uma sucessão de instantes fragmentados em passado, presente e futuro. Essas são as ideias do filósofo francês Henri Bergson, com grande atualidade e estudado em diferentes áreas como cinema, literatura, neuropsicologia e bioética. O filme espanhol “Durante La Tormenta” (2018) é um filme surpreendente pois consegue, em muitos aspectos, figurar em uma linguagem audiovisual a complexidade da fenomenologia de Bergson – uma misteriosa tempestade elétrica cria um contato entre 1989 e 2014 através de uma velha filmadora VHS. Involuntariamente a protagonista interfere no passado e cria uma espécie de “efeito borboleta”, tornando-se prisioneira de uma realidade alternativa. Mas o “tempo puro” bergsoniano será a único instrumento para tentar reconfigurar a ordem cósmica e retornar à sua vida perdida. Filme sugerido pelo nosso leitor José Maurício Paes de Oliveira.

Para o Gnosticismo o Tempo é uma falha cósmica: o tempo como uma sucessão de instantes ou estados que se justapõem linearmente, instantes separados uns dos outros no interior de uma linha que vai do passado ao futuro. Uma linha que tende para a entropia e a morte.
A questão não que o Tempo seja uma ilusão. O problema é que o Tempo está submetido ao Espaço, como pensam seja o senso comum ou o filosófico e científico – o tempo cronológico, indivisível e homogêneo. Por isso, todos nós seríamos vítimas do esquecimento já que, submetida ao Espaço, a percepção temporal é entrópica: tende ao efêmero, à dispersão, dissolução.
Talvez o filósofo que mais próximo chegou a essa intuição gnóstica sobre Tempo e Memória foi o francês Henri Bergson (1859-1941). Para ele, o Tempo em si conteria a Duração – o Tempo ganharia níveis de profundidade no qual coexistem graus do passado, ora próximos da ação, ora próximos do sonho. Haveria uma penetrabilidade recíproca onde presente e passado se distinguem mas, por outro lado, não se separam, criando uma “duração pura” no qual memória e pensamento se confundem quando estão livres do Espaço.
O problema para Bergson é que nossa mente seria como uma central telefônica: selecionamos da percepção e memória apenas aquilo que nos interessa por razões práticas, para que o pensamento não seja invadido pelos sonhos – a memória em estado onírico.
Certamente o filme espanhol Durante a Tormenta (2018), disponível na plataforma de streaming Netflix, é a melhor tradução audiovisual para o pensamento complexo de Henri Bergson em textos como “Ensaios sobre os dados imediatos da consciência” (1889) e “Matéria e Memória” (1896). Um thriller de suspense que mistura viagem no tempo, efeito borboleta, teoria do caos e realidades alternativas que se tocam como uma espécie de hipertexto cósmico que poderia criar exponencialmente novas realidades.
Dirigido por Oriol Paulo, o filme segue uma tradição de produções espanholas sobre paradoxos temporais como Crimes Temporais (2007, clique aqui), El Cuerpo (2012, também de Oriol Paulo) e Contratiempo (2017), firmando-se como um gênero bem distinto do restante da produção cinematográfica daquele país.


O filme explora um roteiro complexo, com diversas viradas narrativas, com tradicionais convenções do gênero romântico. Mas com curiosas alusões a PoltergeistDe Volta para o Futuro e até Janela Indiscreta de Hitchcock, numa atmosfera que lembra bastante a série clássica Além da Imaginação.

O Filme

Tempestades que rompem o continuum espaço-tempo é a premissa causadora de um loop temporal entre os distantes anos de 1989 e 2014. Duas tempestades sincrônicas que estão ocorrendo simultaneamente no espaço de 25 anos, criando uma interpenetração entre passado e presente. Uma aposta arriscada do diretor Oriol Paulo, pois parte de uma premissa impossível, mas consegue fazer com que o roteiro não caia no absurdo e no caos. Mantem o pulso em toda narrativa, permitindo ao espectador juntar as peças do quebra-cabeças
Aliás, tempestades têm qualidades irresistivelmente cinematográficas, criando atmosferas que evocam bem a transição de estados de uma realidade para outra. A tempestade de O Mágico de Oz é o mais famoso exemplo, quando um tornado transporta Dorothy do mundo monocromático da realidade para as cores da terra de Oz. Ou o filme Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012) onde a tormenta que atinge o protagonista no meu do oceano provoca nele uma experiência de epifania e de revelação cósmica. 
O filme começa em 1989, quando imagens de TV estão mostrando cenas ao vivo da queda do muro de Berlim. Um menino chamado Nico toca guitarra em seu quarto enquanto uma filmadora grava, enquanto lá fora uma tempestade elétrica cobre o céu. Sua atenção é desperta para os gritos vindos de uma casa vizinha e acaba testemunhando um crime. Depois de fugir da cena do crime com o assassino atrás dele, Nico atravessa a rua e é atropelado mortalmente por um caminhão.
 Vinte e cinco anos mais tarde e sob um mesmo céu encoberto pela mesma tempestade elétrica, Vera (Adriana Ungarte), seu marido David (Alvaro Morte) e a menina Gloria (Luna Fulgencio) estão mudando-se para a mesma casa. Lá Vera encontra guardado em um armário, a velha filmadora e um aparelho de TV de Nico empoeirado pelo tempo. 


Vera descobre que pode se comunicar com Nico naquele exato momento de 1989 quando ele dedilhava sua guitarra. Essa é a segunda premissa inverossímil do filme, mas a rápida sucessão dos fatos distrai o espectador a não pensar muito nisso: Vera adia a ida de Nico à cena do crime, conseguindo salvar sua vida. 
Mas involuntariamente torna-se vítima de um inesperado efeito borboleta – cria uma realidade alternativa na qual David não mais reconhece ela e Vera jamais foi casada ou teve uma filha chamada Gloria. A partir daí Vera está imersa num apocalipse pessoal e emocional. O que poderá fazer para que mundo (e talvez o cosmos) retornem às configurações inicias da sua própria linha do tempo?
Essas serão as duas únicas esperanças para Vera: reencontrar aqueles velhos dispositivos de 1989 (a TV e a filmadora com o vídeo de Nico) e encontrar o próprio Nico, agora adulto.

O Tempo bergsoniano

O Tempo em Durante La Tormenta é surpreendentemente bergsoniano: a tempestade parece isolar o Tempo criando duração e interpenetração entre 1989 e 2014. Os acontecimentos ocorrem simultaneamente, em diferente linha do tempo. E o único ponto de contado é a velha filmadora VHS com a gravação de Nico dos momentos que antecederam o crime.
Para Henri Bergson em “Matéria e Memória” o Tempo tem a primazia sobre o Espaço: se no espaço há multiplicidade numérica ou quantitativa (a percepção do tempo como uma sucessão fragmenta como passado, presente e futuro), a duração pura do Tempo confere qualidade à experiência – a duração de uma sensação, percepção ou emoção cria uma continuidade entre os momentos na linha temporal. Interpenetração, a duração que liga presente, passado e futuro.


Por isso, a protagonista Vera tem uma característica curiosa em se tratando de filmes gnósticos: ela retém a memória da linha do tempo perdida, enquanto tradicionalmente os protagonistas gnósticos enfrentam o esquecimento – embora ela nada se recorde na realidade alternativa em que está prisioneira, sua atual vida conjugal e seu trabalho como neurologista em um hospital.
A memória ou duração daquele dia em 1989 repercute e interpenetra no futuro, por meio das mediações da tempestade elétrica e da velha filmadora. O tempo bergsoniano, como no clássico Cidadão Kane (1941) no qual a qualidade infantil da experiência com um velho trenó marca o protagonista até a sua morte.
continuum tempo-espaço cria a nossa ilusão teórica de que o tempo é uma sucessão de instantes, como uma contagem numérica em contagem regressiva até a morte. Pelo contrário, o Tempo puro é duração – o movimento temporal na verdade esconde a duração das experiências e da memória.
  Como Bergson afirmava: “há apenas mudança, e não as coisas que mudam”.

  

Ficha Técnica 


Título: Durante La Tormenta
DiretorOriol Paulo
Roteiro:  Oriol Paulo, Lara Sendim
Elenco:  Adriana Ugarte, Chino Darín, Javier Gutierrez, Álvaro Morte
Produção: Atresmedia Cine, Mirage Studio
Distribuição: Netflix
Ano: 2018
País: Espanha

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Cinegnose publica artigo científico sobre o fim do mundo

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Em agosto do ano passado esse editor do “Cinegnose” participou do Simpósio “Do Mundo Arcaico às Cosmologias Modernas” no Rio de Janeiro, apresentando o tema “Por que o mundo tem que acabar? Neoapocalíptica e Escatologias Líquidas”. Uma tentativa de entender o que está por trás (imaginário, sensibilidade ou espírito de época) dessa espécie de midiatização do fim do mundo: a recorrência de produções cinematográficas, literárias, jornalísticas ou documentárias com narrativas apocalípticas sobre profecias, projeções científicas ou pseudo-científicas sobre cataclismas ambientais, cosmofísicos, sociais, biológicos etc. que potencialmente poderiam exterminar a humanidade ou destruir o planeta . O artigo científico, no qual se baseou a apresentação, foi publicado nesse início de ano pela revista “Cosmos & Contexto”. 
  
No ano passado esse humilde blogueiro participou do Simpósio “Do Mundo Arcaico às Cosmologias Modernas”, realizado no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro. O tema levado por este editor do “Cinegnose” foi: “Por que o mundo tem que acabar? Neoapocalíptica e Escatologias Líquidas”.
O tema discutido então no Simpósio era uma síntese conclusiva de uma série de postagens nesse blog entre 2012 e 2017 – motivada naquele momento principalmente pela midiatização de mais uma data para o mundo acabar: a suposta “Profecia do Calendário Maia” de que eventos cataclísmicos ocorreriam em 2012, com interpretações variadas – do próprio fim da existência ao surgimento de uma “Nova Era” na qual os habitantes da Terra sofreriam uma transformação espiritual ou física.
Um frisson midiático que resultou até no filme 2012, analisado pelo Cinegnose– clique aqui.
Nesse ano, a revista “Cosmos & Contexto” publicou artigo científico que embasou a apresentação no Simpósio. A questão principal do texto é essa: Por que essa recorrência de filmes com narrativas apocalípticas no cinema de massas hollywoodiano? Sabendo-se que as narrativas sobre “fim dos tempos” e “juízos finais” estiveram e estão presentes em diversas culturas, religiões por toda História, qual seria a natureza dessas novas narrativas midiáticas sobre o fim?
Abaixo o resumo e link do artigo publicado:

“Por que o mundo tem que acabar? Neoapocalíptica e Escatologias Líquidas”
Wilson Roberto Vieira Ferreira

Diariamente o mundo acaba diante dos nossos olhos, seja no cinema na atual safra de filmes-catástrofe, em séries de TV sobre Nostradamus, previsões “científicas” de algum tipo de futura catástrofe ambiental ou em algum “hoax” descrevendo cometas, asteroides ou planetas errantes que cairão sobre a Terra.  Por que o mundo tem que ser destruído? 
No passado, todas religiões possuíam uma Escatologia: alguma narrativa sobre o fim dos tempos onde os maus seriam punidos e os bons salvos. Mas essas religiões se tornaram “líquidas”: sob os escombros das antigas religiões salvacionistas viraram pastiches que se rendem ao utilitarismo das necessidades do presente - “teologia da prosperidade”, “cabala do dinheiro” ou o islamismo dos homens-bomba. Esqueceram do futuro. Por isso, essa nova religião “líquida” e ecumênica precisa criar uma nova Escatologia, uma narrativa midiática sobre o “fim dos tempos” que junte convicções eco ambientais, geofísica e astrofísica. O componente moral da escatologia que entra em crise com a perda da legitimidade simbólica dessas grandes religiões monoteístas. 
Desde o pós-guerra, sob os escombros das teogonias e escatologias das grandes religiões monoteístas, há o surgimento do misticismo de massas que se convencionou chamar de New Age. As religiões tornaram-se “líquidas”: mescla de fundamentalismo nostálgico com uma colcha de retalhos que vai além do sincretismo religioso – rende-se ao utilitarismo. 
Essa liquefação dos grandes sistemas religiosos do passado corresponde à própria liquidez da infraestrutura econômico-financeira da ordem global – a liquidez ou a financeirização das praças financeiras conectadas em tempo real. A Globalização necessita agora de uma nova religião ecumênica que dê legitimidade às novas bases materiais. Uma nova religião igualmente sem pátria, global, feita a partir do pastiche dos escombros dos grandes sistemas religiosos. 
Palavras-chave: Gnosticismo, Cinema, Crítica da Comunicação, Escatologia. 


Link para o artigo: clique aqui
  

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As 10 táticas de manipulação de Chomsky: esquerda refém das provocações de Bolsonaro

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Principalmente a partir das manifestações de rua em 2013, a esquerda perdeu completamente o controle da sua agenda. Desde então, enquanto permaneceu no governo limitou-se a agir reativamente controlando danos. E fora do poder, limita-se a deixar o sangue subir à cabeça e reagir a cada provocação do clã Bolsonaro, aceitando entrar no jogo da guerra semiótica criptografada. Sem conseguir criar uma agenda própria. A recente foi a ordem de Bolsonaro para as casernas comemorarem o golpe militar de 1964 como uma “revolução popular” – escandalizada, esquerda vai às ruas como se quisesse salvar a própria biografia, enquanto o País marcha para “reformas”, uberização do trabalho e extermínio do futuro de uma geração inteira. O linguista Noam Chomsky diria que a oposição está caindo na primeira tática de manipulação: a Distração. Para depois, por em prática as outras nove táticas de criação de falsos consensos na opinião pública.

                  Escrito pelo linguista Noam Chomsky e o crítico de mídia Edward S. Herman, o livro “A Manipulação do Público” continua bem atual. Nessa obra, são detalhadas as dez técnicas de criação artificial de consenso na opinião pública. 



São elas: Distração (desviar a atenção daquilo que é realmente importante); Método Problema-Reação-Solução (criar uma situação de terra arrasada para impor medidas de suposta solução); Gradação (aplicar medidas impopulares de forma gradativa e imperceptível); Sacrifício Futuro (é mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que imediato); Discurso Infantilizado (tratar a opinião pública de forma afetuosa ou humorística); 
Sentimentalismo e Temor (apelar para o medo e emoção para impedir uma resposta racional ou crítica; Valorizar a ignorância (dar espaço na mídia pessoas medíocres e ignorantes para que o estúpido e o vulgar sejam um exemplo para os mais jovens); Desprestigiar a inteligência (apresentar na produção audiovisual o cientista como vilão e o intelectual como pedante); Incentivar introjeção da culpa (incutir a culpa no indivíduo para dividir a sociedade entre vencedores e perdedores); Monitoramento (pesquisas de opinião e as atual mineração de dados e análises psicométricas em redes sociais para controle de opinião pública). 
É claro que cada uma dessas técnicas é diariamente colocada em ação dos telejornais aos programas de entretenimento – por exemplo, nessa segunda-feira o telejornal da Globo “Bom Dia (?) Brasil” destacou uma matéria sobre como o fato de casais esconderem seus gastos de cartão de crédito para o parceiro prejudica o controle das finanças familiares, criando impacto na própria economia nacional. Num inacreditável exemplo de falácia lógica que, lá na Antiguidade, Aristóteles acusava os sofistas:  reductio ad absurdum, redução ao absurdo ou efeito lógico “bola de neve”, para incentivar a introjeção da culpa no incauto brasileiro pela crise econômica sistêmica.
Introjeção da culpa para criar uma sociedade de vencedores e perdedores

Esquerda hipnotizada

Porém, o atual clã familiar que ocupou o governo prima pela tática da Distraçãoao ocupar a pauta midiática com “caneladas”, provocações, bravatas, arroubos de crenças religiosas misturadas com negócios ministeriais etc. 
Até aqui, OK! É até previsível que um governo, cuja pauta político-econômica (as “reformas”, cuidadosamente escondidas da opinião pública durante a campanha eleitoral) seja impopular, utilize-se de figuras bizarras e tragicômicas para compor os anti-ministérios (ministérios que se voltam contra si mesmos como Família, Educação e Trabalho) para distrair grande mídia e opinião pública.
Mas o preocupante é quando a oposição parece hipnotizada por essa pauta e passa a responder reativamente a cada provocação, não só retro-alimentando mas também dando pertinência pública aos temas.
Nos últimos dias acompanhamos como a grande mídia e a mídia alternativa deram espaço a mais uma provocação do capitão da reserva: a ordem do presidente Bolsonaro para que fosse comemorado neste 31 de março os 55 anos do golpe militar de 1964. Deveriam ser dadas as “comemorações devidas” a uma “revolução” que supostamente teria libertado o País “do pior”, e que, na época, teria contado com “amplo apoio popular”.
E toca a judicialização do tema, aliás, como de costume para qualquer coisa no País: o MPF manifesta-se, juíza proíbe a comemoração atendendo a um pedido de liminar apresentado pela Defensoria Pública... E, enquanto isso, Bolsonaro fala que não é “comemoração”, mas “rememoração”...


Amigo de caipirinhas

Como de costume, repórteres vão atrás da espécie de “presidente-em-exercício”full-time, General Mourão (alçado à condição de reserva nacional de racionalidade), para ouvir dele que os “eventos” seriam “intramuros”... 
TV Globo deu razoável espaço aos protestos em todo o País, nos quais foram lembradas as mortes, torturas e desaparecimentos de pessoas na ditadura. Até a Rádio SulAmérica Trânsito 92.1 FM, sempre tão reticente em relatar os motivos dos protestos que ocasionalmente atrapalham o trânsito, dessa vez foi didática em explicar os motivos das manifestações em São Paulo, na Avenida Paulista e Parque do Ibirapuera.
Bolsonaro acende o rastilho e se manda para um tour em Israel, ao lado do seu amigo de caipirinhas, o Primeiro-Ministro de Israel Netanyahu. Enquanto a mídia alternativa e a esquerda gritam o slogan “Para que não se esqueça, para que não se repita!”, para relembrar, uma a uma, as atrocidades dos governos militares. Como reação a uma suposta tentativa de “reescrever a História”.
Qual a surpresa? Os militares sempre comemoraram “intramuros” a “revolução de 1964”. A questão é que as “bolsonarices” são muito provocativas e fazem subir o sangue da esquerda.


Efeito Pinball

Principalmente desde as grandes manifestações de 2013, a esquerda perdeu definitivamente o controle da própria agenda, resultando no efeito potencializador de bombas semióticas que esse humilde blogueiro chamou, na época, de “efeito Pinball”:
“Bolinhas são seguidamente disparadas: a agenda do mensalão; depois o caos aéreo; a descontrolada inflação do tomate; as manifestações de rua do “gigante que acordou”; o chamado “terceiro turno”; e atualmente o “escândalo do petrolão” e a iminência de um impeachment da presidenta eleita. 
Elas rebatem aleatoriamente nos pinos e flips criando ressonância, recursividade, loopings: numa estratégia reativa de controle de danos o Governo é obrigado a ser o interlocutor, dar respostas em notas aqui e ali. O que dá mais legitimidade ao jogo... e as bolas batem e rebatem... tlim!... tlim!... tlim!.... Pontos são somados num ciclo vicioso infernal” - clique aqui.
Diante dessa guerra semiótica criptografada (isto é, mensagens cujo protocolo de transmissão embaralha o conteúdo, não deixando claro para o público o significado real da mensagem, que fica apenas na superfície) estamos obviamente diante da primeira tática descrita por Chomsky e Herman: a distração. 
Forma de comunicação indireta: o jogo clã Bolsonaro-grande mídia não está atacando a esquerda. Está chamando-a para a sua agenda, o seu jogo, para fazer parte dessa tática diversionista de desviar a atenção da opinião pública para os problemas mais sérios nesse momento – o lento e progressivo desmonte das garantias sociais. 
Por exemplo, cotidianamente estudantes encontram entraves burocráticos e quedas de sistemas para conseguirem crédito educativo, como o Fies. Quando conseguem, dados e crédito não chegam às agências bancárias.
Ao mesmo tempo, remédios desaparecem e estabelecimentos são excluídos do Farmácia Popular.
Enquanto isso, milhões de desempregados marcham para a uberização – contratos intermitentes, flexíveis e sem proteção trabalhista, precarização, desregulamentação do trabalho, salários miseráveis e patrões invisíveis escondidos por plataformas tecnológicas.


O Uber está tão entusiasmado com o Brasil que pretende testar seu táxi voador no País (o primeiro país fora dos EUA), o projeto de táxi aéreo chamado UberAIR – imaginem o assustador quadro de trabalhadores precarizados sendo lançados aos céus e voando sobre nossas cabeças... – clique aqui.
Tudo isso sem falar nas “reformas” que pretendem exterminar o futuro de uma geração inteira. 
Essa preocupação equivocada da esquerda em ficar reativamente paralisada à pauta alimentada todo dia pelo clã Bolsonaro é também criticada pelo colunista Joaquim Xavier: ao invés de pensar no futuro ou no presente, cai na armadilha semiótica da distração e prefere falar do passado:
Os oposicionistas de plantão, mesmo os bem-intencionados, parecem pensar diferente. Gritam histericamente contra a apologia da ditadura morta, porém é sonolenta quando se trata da ditadura de fato em curso. A olhos vistos, está em marcha um movimento de liquidação do Brasil para transformá-lo em Brazil. Mas não se vislumbra uma mobilização à altura deste risco. Mais cômodo falar do passado. – clique aqui.
Distraída, hipnotizada e com o sangue subindo à cabeça a cada provocação do capitão da reserva e seus pitbulls, os oposicionistas parecem muito mais preferir salvar suas biografias do que ocupar a esfera pública (ruas, praças e avenidas) e a opinião pública através de uma contraguerrilha semiótica capaz de criar uma agenda própria.
Distraindo a oposição, desvia a atenção da própria opinião pública. Para quê? Para calmamente colocar em prática as outras nove estratégias de manipulação apontadas por Chomsky e Herman: gradativamente criar uma situação da terra-arrasada para sacrificar o futuro através da culpa e do medo. Infantilizando a opinião pública por meio das “caneladas” e “mitagens” de Bolsonaro e seus asseclas enquanto as redes sociais são monitoradas pelos algoritmos de Steve Bannon e a psicometria de Michal Kosinski.

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Os contos de fadas se vingam da humanidade em "Border"

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Outro filme para cinéfilos corajosos. O filme sueco Border (“Gräns”, 2018) nega ao espectador dois princípios básicos da narrativa hollywoodiana: verossimilhança e identificação. “Border” joga com a curiosidade e repugnância do público diante de um estranho casal de protagonistas: Tina é uma policial alfandegária com a capacidade incomum de farejar medo, culpa ou raiva nos passageiros, conseguindo detectar algo ilegal que estejam portando na passagem da fronteira. E Vore é um estranho viajante que atrai a curiosidade de Tina. A “feiúra” e os hábitos estranhos deles (a instrospecção deprimida de Tina e os risos de Vore como se soubesse de todos os apetites reprimidos de Tina) nos causam distanciamento. Mas um distanciamento necessário para refletirmos sobre o tema da “fronteira”: o que separam os gêneros? Qual a fronteira entre o bem e o mal? Entre humanos e monstros? Em uma atmosfera de fábula, Border mostra como a humanidade é incapaz de dar essas respostas. E como os mitos dos contos de fadas retornam para se vingarem de nós.

Dentro dos cânones do realismo cinematográfico hollywoodiano, a verossimilhança de um roteiro e a construção de um protagonista com o qual os espectadores possam se identificar são quesitos fundamentais. De um lado, embora saibamos que tudo que assistimos é ficcional, o roteiro deve ser “realista” ou “verossímil” o suficiente para que suspendamos a incredulidade e aceitemos a ficção.
E do outro, ver e sentir a narrativa a partir dos olhos do protagonista é talvez a condição fundamental para que sejamos absorvidos pela história e sintamos empatia, alegria, medo e torçamos para o herói.
Por isso, assistir ao filme sueco Border(Gräns, 2018), mesmo para aqueles cinéfilos com a mente mais aberta, não é fácil: uma narrativa romântico-fantástica com uma atmosfera de contos de fadas, porém na acepção mais verdadeira de um “conto de fadas” – sabemos que nas suas versões originais esses contos eram cruéis, violentos, abordando questões psíquicas, edipianas, amor materno e duros ritos de passagem para a vida adulta. Problemas que as modernas histórias infantis evitam.
Com um roteiro para lá de inverossímil (de uma aparente história policial de caça a pedófilos, de repente tudo se transforma em um conto fantástico nórdico) e com um casal de protagonistas com aparência monstruosa, recluso, sociopata e nem um pouco cativantes, Border não é propriamente um filme de entretenimento. Porém, esses elementos nos proporcionam o distanciamento necessário para refletirmos o tema do título do filme: “fronteira” – quais as fronteiras entre gêneros, humanos e monstros e o bem e o mal?


  Num planeta onde a humanidade parece ser uma praga com toda a sua maldade (no filme, uma rede de pedofilia em uma cidade sueca), personagens dos contos de fadas do folclore escandinavo como os Trolls decidem se vingar dessa erva daninha humana que ocupa a crosta terrestre.
A primeira metade de Border desafia qualquer categorização (com uma paleta de cores azul-séptico mostra um mundo frio e anônimo), para depois empurrar o espectador para um macabro conto de fadas.

O Filme

Border é a história de Tina - Eva Melander, com uma impressionante e realista prótese e maquiagem. Com uma sobrancelha pronunciada, bochechas inchadas e dentes irregulares, ela tem um comportamento inexplicável e uma aparência desagradável. Tina é uma policial da alfândega de um porto de entrada de passageiros vindos de países limítrofes da Suécia, inspecionando bagagens e observando cada um dos rostos que passam por ela. 
Tina não é uma policial qualquer porque não precisa de detectores de metais ou equipamentos de raio X. Com o olfato ela é capaz de sentir vergonha, culpa e uma gama de outras emoções nas pessoas. Cada um que passa em frente ao posto alfandegário, Tina fareja à distância e é capaz de acusar portadores de bebidas ilegais, contrabando, armas ou qualquer coisa que esteja portando que, através do cheiro, associe a sentimentos negativos criminosos.
Tina divide sua casa com Roland (Jörgen Thorsson), criador e adestrador de cães destinados a rinhas de luta em casas de apostas. Inexplicavelmente os cães ficam nervosos com a presença de Tina e Roland é indiferente, e mal olha para ela. 
Mas, pelo menos, “tem gente por perto”, como ela diz ao seu pai que beira a perda de memória e demência, ao visita-lo numa clínica de idosos. 


Sua única atividade realmente prazerosa é caminhar descalça na floresta para se integrar à natureza – estranhamente animais como raposas e alces gostam dela e se aproximam. Esse é o mundo de Tina: uma rotina de introspeção deprimida e inadequação. Seu único contato com a sociedade é através do seu super olfato, útil para a polícia alfandegária.
Mas dois fatos vão mudar a sua vida: um homem é flagrado por Tina com arquivos digitais de pornografia infantil e levado preso; e logo depois, Tina sente um estranho cheiro vindo de um homem chamado Vore (Eero Milonoff), com características físicas semelhantes com as de Tina. Ela fareja algo de errado nele, mas não consegue identificar o porquê. Sua curiosidade por Vore aumentará. Afinal, seu senso olfativo jamais falhou. Tina decide conhece-lo melhor, até o ponto que desestabilizara sua rotina e a própria vida.
A partir desse ponto Border gira em torno da investigação da organização de pornografia infantil e o mistério por trás de Vore. O filme joga com o espectador, entre a curiosidade e a repulsa – as características misteriosas dos protagonistas, um certo horror corporal e seus estranhos hábitos nos distanciam e impossibilita qualquer forma de identificação ou empatia.
Mas aos poucos cria-se uma sensibilidade envolvente entre os dois: Tina expõe sua vulnerabilidade e inadequação, certamente resultado de uma história de rejeição pela sua feiura. Enquanto Vore será o motivador para a sua aceitação pessoal, libertação e descoberta da sua verdadeira identidade.


A vingança da Mitologia – Alerta de Spoilers à Frente

Mas Border adquire aspectos ainda mais estranhos quando se transforma em um conto do folclore nórdico, após uma violenta torsão narrativa: Tina e Vore pertencem a uma casta especial de seres fantásticos: os Trolls. Perseguidos pelos humanos para serem cobaias de experimentos científicos desde os anos 1970, eles são alguns dos poucos remanescentes que sobreviveram.
Tina esqueceu e se adaptou ao mundo humano através de uma família postiça. E Vore é um viajante que trama um cruel tipo de vingança contra os humanos – afinal, para ele a humanidade é uma praga que consome o planeta. E mais irônico: não é preciso grande esforço para destruí-los, já que constantemente matam ou exploram uns aos outros. E, para Vore, a organização de pornografia infantil é a prova disso.
Border é mais um filme nórdico sobre narrativas de inadequações e estranhamentos de seres fantásticos diante do mundo humano: o filme norueguês Thelma (2017) e o sueco Deixe Ela Entrar (2008) são produções anteriores dessa espécie de subgênero escandinavo.
Mas Border explicita algo que estava apenas latente nos filmes anteriores: a tese de que a raça humana é uma doença que precisa ser erradicada da face do planeta – a humanidade mente, mata, explora e destrói tudo ao redor. 
Em Border o empreendimento de Roland (criar cachorros para lutas em casas de apostas) e a exploração da pornografia infantil são simbólicos: exemplos da doença humana que assola a Terra.
Parece ser o sintoma desse impasse filosófico pós-moderno: depois da morte dos mitos, de Deus e a tentativa de colocar a Razão (Kant) ou o Contrato Social (Hobbes) como referência do pensamento ético e moral, chegamos a um ponto de esgotamento. Nem a Razão, e nem Contrato Social  deu conta de uma sucessão de tragédias históricas como guerras, violência, exploração e desastres ambientais.
Então, o homem volta-se contra si mesmo. E como nos mostra o filme Border, os velhos mitos dos contos de fadas retornam para o acerto de contas.



Ficha Técnica 

Título: Border (Gräns)
DiretorAli Abbasi
Roteiro:  John Lindqvist, Ali Abbasi
Elenco:  Eva Malander, Eero Milonoff, Jörgen Thorsson, Sten Ljunggren
Produção: Meta Film Stockholm, Spark Film & TV
Distribuição: TriArt Film
Ano: 2018
País: Suécia

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Cinegnose discute, nessa sexta, cinema gnóstico no Simpósio "A Transfiguração em 1900"

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Um estranho vortex abalou o Ocidente na virada do século XIX para o XX: mudanças radicais na vida urbana, nas ciências, tecnologias, artes, filosofia e costumes. E com o cinema não poderia ser diferente, pois estava no centro desse vortex – criou uma experiência perceptiva e sensorial absolutamente nova. O dispositivo cinematográfico acabou se tornando a metáfora do próprio funcionamento da mente na filosofia e ciências, criando uma crise na percepção e na maneira de nós encararmos o tempo e a permanência. Porém, enquanto o cinema revolucionava, ele próprio continuou prisioneiro da Caverna de Platão – um instrumento para a manutenção da ilusão do que entendemos como “realidade”. O surgimento do cinema gnóstico na virada do século XX para o XXI criou a possibilidade dessa emancipação. Esse tema será discutido por esse editor do “Cinegnose” no Simpósio “A Transfiguração em 1900”, nessa sexta-feira, 12/04, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro.

Este humilde blogueiro participará nessa sexta-feira do Simpósio “A Transfiguração em 1900” com o tema “Cinema 1900/2000: da Caverna de Platão à Matrix”. O evento, promovido pela revista “Cosmos e Contexto”, ocorrerá no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), na Rua Dr. Xavier Singaud, 150, Urca, Rio de Janeiro, às 14h.
                  O conjunto de palestras (veja programação abaixo) procurará refletir que estranho vortex emergiu na virada do século XIX para o XX. Fenômeno que mudou radicalmente a vida nas cidades, ciências, artes, filosofia, antropologia e costumes. O Simpósio pretende imergir na vertigem desse importante momento histórico através de um viés metodológico transdisciplinar.



O evento, organizado por Mario Novello e Nelson Job, será gratuito e sem inscrição e fornecerá certificado sob solicitação à revista Cosmos e Contexto pelo e-mail contato@cosmosecontexto.org.br - maiores informações clique aqui.
Esse é o resumo da palestra que será proferida por este editor do “Cinegnose”:

O ano de 1895 foi um marco no espírito do tempo de virada de século. As trinta e poucas pessoas que assistiram à “Arrivé d’un train gare à La Ciotat” (“A Chegada de um Trem a Ciotat”) estavam diante de uma experiência perceptiva e sensorial absolutamente nova. Sem noção do que estava ocorrendo, muitas correram para o fundo da sala com medo de serem atropeladas. O dispositivo cinematográfico mudou não só da sensibilidade humana, mas a própria definição intelectual das categorias de realidade, tempo, mudança e permanência.
Antes do cinema já haviam sido inventados alguns aparelhos de gravação como a fotografia (1820) ou o fonógrafo (1865), mas em nenhum deles era registrado o movimento de máquinas e seres humanos.
Em pouco tempo, esse experimento de final do século XIX dos irmãos Lumière causou profundo impacto. Primeiro em jornalistas, escritores e cronistas da época. Para depois impactar a filosofia, com Henri Bergson (a mente que opera como uma película cinematográfica), Edmund Husserl (a percepção da “realidade evidente” sem o conceito) ou Alfred Whitehead (o “universo que fotografa”).
O físico alemão Robert Jungk disse que a maior crise da virada do século foi a da percepção.
Ao mesmo tempo, muitos pesquisadores acreditam que o dispositivo cinematográfico descende diretamente do Mito da Caverna de Platão: partilharia da construção da irrealidade do mundo. Mas também o dispositivo fílmico poderia ser uma porta da saída dessa caverna com o seu potencial estético antirrealista, como demonstrou Meliés, contrapondo-se ao realismo dos irmãos Lumière.
Se o cinema foi capaz de impactar a filosofia e a cultura na virada de século, por outro lado o destino do cinema no século XX foi transformar-se em indústria, assumindo o realismo cinematográfico hollywoodiano e integrando-se à “caverna” da qual pretendia escapar. 
Cem anos depois, o mesmo drive “espiritual” de final do século XIX (Teosofia, Espiritismo etc.) simultâneo a descoberta do eletromagnetismo e a transformação da eletricidade em informação com o telégrafo, também explode na virada do ano 2000 com o gnosticismo pop no cinema – cosmogonias e teogonias gnósticas do início da era cristã como matéria-prima de produtores e roteiristas no cinema. 
Se o cinema impactou a filosofia e a cultura no século passado, o filme gnóstico tem o potencial de finalmente tirar o cinema da caverna de Platão. Caverna que no século XXI foi transformada numa Matrix com a tecnologia computacional.  

PROGRAMAÇÃO:

11 de abril (quinta-feira)

09:30 – Virginia Fontes (história)
10:30 – José Helayël (mecânica quântica)
11:30 – Gregory Chaitin (lógica)
14:00 – Octavio Bonet (antropologia)
15:00 – Nelson Job (transaberes)
16:00 – Mario Novello (teoria da relatividade)

12 de abril (sexta-feira)

09:00 – Carlos Eduardo (sociologia)
10:00 – Paloma Carvalho (artes plásticas)
11:00 – Luis Granato (psicologia)
14:00 - Wilson Ferreira (cinema)
15:00 – Auterives Maciel (filosofia)

Curta da Semana: "Alternative Math" - a ameaça do anti-intelectualismo e irracionalismo

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2 + 2 é igual a 4. Essa é a verdade do raciocínio lógica da Matemática. Uma verdade factual. Ou será que não? Por que não, igual a 22? Afinal, não vivemos numa sociedade de liberdade de opinião? Então a Matemática e seus professores são espertalhões autoritários querendo impor seus pontos de vista? Eles estão por trás de uma conspiração para tolher a liberdade cognitiva dos estudantes? Esse é o tema do divertido curta “Alternative Math” ("Matemática Alternativa", 2018), uma comédia com diversas camadas interpretativas, mas que também tem um tom assustador sobre o mundo potencialmente terrível que está à nossa espreita: o ressentimento que produz a onda anti-intelectualismo e irracionalismo da pós-verdade – nas mídias sociais, realidades paralelas e bizarras teorias conspiratórias ganham o mesmo status de verdades científicas sob o álibi da liberdade de opinião. Curta sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

O espírito do tempo: estamos acompanhando o crescente desprezo pelo intelecto e a erudição. Em um mundo em que a mais moderna tecnologia de comunicação de toda a História (a Internet e as tecnologias computacionais) despejou para o mundo fake news e a pós-verdades, criando realidades alternativas e bolhas virtuais, o anti-intelectualismo converteu-se na própria atmosfera na qual as redes sociais respiram.
Todas as verdades, descobertas e teorias aceitas pela comunidade científica passaram a ser acusadas de conspirações – a Terra é redonda? Uma conspiração da NASA. Teoria Evolucionista? Coisa de cientistas pedantes e ateus, e até suspeitos de radicalismo político. Teoria da Relatividade? Coisa de um judeu suspeito que não gostava de matemática.
Matemática? Pois até a ciência do raciocínio lógico que estuda quantidades, medidas, espaços e estatísticas, talvez a ciência mais exata (ou que, pelo menos, confere credibilidade científica a teses e hipóteses), pode ser questionada na atual onda de barbárie e regressão. 
O curta dirigido por David Maddox, Alternative Math (“Matemática Alternativa”, 2018), talvez seja um dos mais inteligentes curtas atuais e também uma incrivelmente sofisticada comédia. Uma alegoria com diversas camadas: a primeira de uma comédia inteligente que funciona com non-sensee a lógica insana do reducto-absurdum. Mas também tem um tom assustador de um mundo potencialmente terrível que está à nossa espreita.
O que acontece quando crenças e o senso comum assumem tal poder que o mais básico conhecimento científico passa a ser questionado? O que acontece quando o direito à liberdade de expressão torna-se um álibi para as ideias mais obscuras e medíocres passarem por cima dos fatos e adquirirem o mesmo status de teses científicas?
                  E a camada narrativa mais preocupante de Alternative Math é o destino de professores, intelectuais e cientistas nesse autêntico elogio à burrice e ignorância que toma conta da atualidade.



 A protagonista do curta é uma veterana professora chamada Mrs. Wells (Allyn Carrell) de uma escola fundamental tentando explicar a um pequeno aluno que 2 + 2 é igual a 4. A criança errou essa questão do teste por achar que o resultado é 22. Fazendo birra, o menino vira as costas e vai embora batendo pé irritado.
No dia seguinte, os pais do garoto vêm conversar com a professora: “como ousa censurar uma criança e restringir a aprendizagem”, acusam os pais que ficam cada vez mais agressivos com a insistência da professora em demonstrar que a lógica e o raciocínio matemático são um fato. Tão birrentos quanto o filho, os pais protestam que para cada pergunta há mais de uma resposta. E pior: os pais acham que a professora é tendenciosa e manipuladora. “Quem é você para dizer o que é certo e errado?”, desafiam os pais.
Depois dessa sequência tensa que termina com uma bofetada da mãe na professora, revela-se uma perversa aliança entre a mídia e administração escolar: ao invés do diretor apoiar a professora, acusa-a de perturbar a criança e os pais – o conselho escolar suspende a professora, mas, depois do escândalo que explode na mídia (denunciando um suposto ataque pessoal de um professor a um aluno), a escola decide despedi-la. 

Atrofia da Competência

Ao longo da história a educação de massa surgiu com uma promissora tentativa de democratizar a cultura superior das classes privilegiadas. Mas tudo o que conseguiu foi a formação de uma burocracia educacional e a escola como recrutamento militar ou industrial.
Embora tenha alcançado taxas sem precedentes de educação formal, produziu novas formas de analfabetismo – pessoas cada vez mais incapazes de usar a linguagem com fluência e precisão, fazer deduções lógicas, compreender a História pelo menos em seu aspecto cronológico, além de incapazes de compreender quaisquer textos escritos. A não ser os mais rudimentares em memes ou postagens nas redes sociais – se aparecer um “textão” já é malvisto ...



Mas, por outro lado, são treinadas a trabalhar no capitalismo cognitivo de subempregos e precarização: saber lidar com aplicativos, dispositivos móveis ou plataformas de “bicos” num Uber ou de algum delivery de comida ou supermercado. Não se educa para formar cidadãos exemplares, mas para a futura mão de obra barata, sem direitos ou garantias sociais.
Assim como mostra o curta Alternative Math, o resultado é o que testemunhamos hoje: o ressentimento, por trás de toda desconfiança em relação à intelectualidade e conhecimento. Com a competência atrofiada nos diversos graus do analfabetismo visual, começa a acreditar que tudo está fora do seu alcance.
Política, economia, análise de conjuntura, avaliação de um candidato numa disputa eleitoral ou simplesmente entender o mundo apresentado pelo noticiário torna-se um conhecimento esotérico do qual sentido e propósito lhe escapam.
Ressentido, torna-se alvo fácil de teorias conspiratórias, pós-verdades e as realidades alternativas da Internet – orgulhoso por entender essas narrativas bizarras (terra plana, conspirações de globalistas e LGBTs etc.), por que maniqueístas, brada ser um “conhecimento” tão válido como o científico. 
                  Aliás como intelectuais, cientistas e professores falam uma linguagem igualmente esotérica, o ressentido passa a desconfiar e acreditar em malignas conspirações animando esses sinistros agentes infiltrados em escolas, academias e mídia.



 No curta, os pais ressentidos revoltam-se contra a professora e declaram que toda fórmula matemática não passa de um símbolo por convenção: cada um faz a leitura que quiser e cada questão pode ter diversas respostas – é a pós-verdade.
O álibi é a liberdade de opinião, supostamente violentada não só pela professora, mas pela própria lógica matemática. 
Um álibi oportunista: a união entre mídia, escola e Justiça é a própria aliança populista que hoje acompanhamos traduzido politicamente – o ressentimento traduzido em populismo de direita, por natureza anti-intelectual e irracionalista. 
Mas o divertido e redentor final para a professora protagonista mostra a estratégia ideológica de todo populismo: vende-se para as massas todo esse irracionalismo para alimentar o ressentimento contra a ciência ou a cultura por oportunismo político, enquanto a infraestrutura econômica de exploração ainda é regida pela rígida lógica científico-matemática. Na economia 2 + 2 é realmente 4. E não tem discussão.



Ficha Técnica 


Título: Alternative Math (curta)
DiretorDavid Maddox
Roteiro:  David Maddox, Malcolm Morrison
Elenco:  Allyn Carrell, Cole Whitaker, Mykle McCoslin, Bryan Massey
Produção: Ideaman Studios
Distribuição: Youtube

Transgressão e domesticação do cinema discutido pelo Cinegnose em Simpósio no Rio

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A invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière causou muito barulho na virada do 1900 – abalou o paradigma da estabilidade da realidade com o registro inédito de objetos e pessoas em movimento. Gerou na Filosofia a Fenomenologia de Husserl, Bergson e Whitehead. Mas o potencial transgressivo do primeiro cinema foi domesticado pela indústria cinematográfica com as imagens narrativas. A posterior ascensão do gnosticismo pop no cinema na virada do 2000 teve o potencial de retomar a força transgressiva do dispositivo cinematográfico. Esse foi o tema discutido por este editor do “Cinegnose” no Simpósio “A Transfiguração em 1900” nesse última sexta-feira no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no Rio de Janeiro – “Cinema 1900/2000: Da Caverna de Platão à Matrix”.

Mais de um século depois parece que só agora temos elementos necessários para compreender a intensidade dos acontecimentos que marcaram a verdadeira transfiguração da virada dos 1900: eletricidade transformada em informação no telégrafo e telefone, a modernidade urbana, as descobertas científicas da natureza da luz e do campo magnético que determinaram a configuração da Teoria da Relatividade e a Física Quântica. Além de repercussões no campo da Lógica e da Filosofia.
E o cinema teve um papel importante nessas transformações de virada de século.  Esse foi o tema que este humilde blogueiro levou para o Simpósio “A Transfiguração em 1900” realizado nos dias 11 e 12 de abril no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Urca, Rio de Janeiro, promovido pela Revista Cosmos & Contexto e organizado por Nelson Job e Mário Novello.

Este humilde blogueiro e os palestrantes e organizadores Octavio Bonet, Nelson Job, Mário Novello e Auterives Maciel

Sob o título “Cinema 1900/2000: Da Caverna de Platão à Matrix”, este editor do Cinegnoseprocurou fazer um paralelo entre as duas viradas de século – no final de século XIX, a invenção do cinematógrafo de Lumière e a revelação de uma realidade sensorial até então inédita para as pessoas; e a virada para o século XXI com o apogeu do “Gnosticismo Pop”, o momento em que o mainstream hollywoodiano descobriu as narrativas gnósticas como uma inesperada fórmula de entretenimento.
Ao colocar de forma inédita em movimento pessoas e objetos (até então somente conhecidos nos instantâneos fotográficos, o cinema pôs em crise o paradigma da estabilidade da matéria ao fazer aparecer o mundo descontinuado em fotogramas sucessivos na película.
Como essa nova visão dos recônditos da realidade, como uma espécie de microscópio da vida modernidade urbana, impactou a filosofia e a cultura com o aparecimento da Fenomenologia (a “segunda metafísica”) de Edmund Husserl, Henri Bergson e Alfred Whitehead. O cinema impactou ao mostrar que a realidade é fenômeno, mudança, afecção. Mas que, ao mesmo tempo, guarda segredos no intervalo da realidade descontínua dos fotogramas – a “duração-qualidade”, o “tempo puro”.
Se o dispositivo cinematográfico é a própria atualização da Caverna de Platão (ou seria mesmo a própria consciência de que vivemos em uma simulação ao criarmos nossa própria meta-simulação?), o cinema também revelaria uma dimensão da percepção que nos faria escapar dessa caverna.

Do cinema domesticado ao cinema gnóstico

Mas se o primeiro cinema (1850-1910) tinha esse potencial de revelar segredos do tempo e espaço nos quais se debruçaram Bergson e Whitehead (em busca daquilo que antecede a consciência – Tempo, sensação, afetos etc.),  logo depois ele foi domesticado pela indústria cinematográfica  e o star systemque submeteram às imagens às narrativas – clichês, finais felizes, começo, meio e fim com causas e consequências.
As gags visuais anárquicas que produziam o cinema-acontecimento era perigoso demais: poderia perturbar a rotina lazer-trabalho da ordem cotidiana. Acusado de produzir um “nervosismo insalubre”, logo o cinema foi enquadrado, deixando para trás a energia que impactou a filosofia e a cultura.
O novo revival do Gnosticismo no século XX, após a descoberta dos evangelhos apócrifos gnósticos de Nag Hammadi em 1945, e a repercussão na literatura, cultura pop até chegar ao cinema de massas no final daquele século, deram mais uma vez às imagens cinematográficas a possibilidade de impactar a cultura numa forma análoga à virada de 1900 – e, quem sabe, até colocar em xeque a caverna platônica através das seguintes características:

1 - Mudanças na realidade temporal e espacial

A estrutura narrativa de filmes como Donnie Darko (2002) e O Feitiço do Tempo (The Groundhog Day, 1993) integram mudanças nas estruturas normalmente percebido de tempo e espaço para capturar a essência do dramático através da linha do tempo. Em Feitiço do Tempo, o personagem principal revive o mesmo dia repetidas vezes até que ele atinja uma verdadeira compreensão de si mesmo e do mundo. Em Donnie Darko o protagonista descobre que o plano temporal em que ele vive pode ser revertido e que ele tem poder para fazer isso, isto é, transcender seu plano temporal através de um vórtice e mover-se livremente através de outros planos alterando destinos pré-determinados. O filme chama a atenção pela temporalidade artificial. Predomina uma atmosfera de que a realidade é composta por eventos possíveis que podem ser alterados da perspectiva de outras sequências fabricadas.

2 - A desconstrução da realidade consensual 

A história cuja narrativa percorre a estrutura labiríntica da mente em filmes como Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich,1999) e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), ou a narrativa que percorre as camadas da ilusão da realidade em filmes como Matrix (1999 ) conduz o espectador a questionar a natureza da própria realidade. Em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” seguimos o personagem principal através da eliminação gradual de sua memória e descobrimos que, sem memória, seu mundo, e, talvez o nosso, deixam de existir. Na trilogia Matrix um mundo que se parece muito com o nosso é revelado ser uma alucinação consensual gerada por programa de computador em camadas e camadas de realidades programáveis.

3 – Desconstrução quântica da realidade

Assim como, na física quântica, a realidade é alterada pelo próprio ato de observar, produzindo um paradoxo (vemos uma realidade objetiva ou um evento alterado pelo nosso olhar?), também o cinema vai colocar em xeque o próprio dispositivo da câmera. Filmes como O Quarto Poder (“Mad City”, 1997) e O Pagamento (Paycheck, 2003 ) exploram esse paradoxo. Em O Quarto Podera chegada das câmeras no entorno do museu onde estão reféns altera totalmente a espontaneidade dos fatos, produzidos sucessivas situações metalinguísticas e irônicas. E em O Pagamento a máquina que prevê o futuro paradoxalmente produz o futuro: através de um mecanismo de profecia autorrealizadora o futuro previsto não acontecia porque estava lá, mas porque a sua divulgação fazia o futuro previsto acontecer de fato.

4 - A inter-relação de fatos normalmente percebidos como eventos discretos e sem causalidade 

A narrativa se baseia em estruturas de sincronicidade. Filmes como Magnólia (1999) e Escrito nas Estrelas (Serendipity, 2001) revelam uma misteriosa e mística afinidade entre pessoas aparentemente distintas, situações e eventos. No filme Timecode (2000) esta forma inter-relação da estrutura cinematográfica é levada ao extremo ao filmar quatro histórias diferentes, com personagens distintos e acontecimentos que aparentemente estão relacionados, projetando todas as quatro histórias simultaneamente em uma tela dividida em quatro partes iguais.

5 - A natureza relativa da realidade perceptiva 

Em Amnésia (2000) a perda de memória de curto prazo do protagonista torna-se o tecido e a estrutura da história, levando o público através de um labirinto de desarticuladas experiências perceptivas que levam à revelação a-perspectiva e visceral: a de que nenhuma perspectiva é final.
Portanto, a questão da transcendência no cinema pode ser colocada dentro de uma seguinte tese: como toda obra artística, o cinema trás em sua própria estrutura elementos que buscam a transcendência, o que, por sua vez, acaba criando uma tensão entre a alteridade e as estruturas fixas que a indústria do entretenimento impõe a esse meio.
Por sua natureza de alteridade e de “totalmente outro”, a experiência transcendente causa dor, estranhamento, incômodo e desconforto decorrente da ruptura de uma visão de mundo cotidiana. E é exatamente conter, racionalizar ou minimizar essa experiência latente no medium que busca a indústria do entretenimento. Afinal, após serem acesas as luzes do cinema, devemos voltar à realidade como se nada tivesse acontecido.


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Rádio, viagem no tempo e identidade no filme polonês "The Man With The Magical Box"

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Um filme sobre viagem no tempo com a colcha de retalhos típica da nostalgia pós-moderna: um mix de “Brazil” de Terry Gilliam, “Clube da Luta”, “Blade Runner”, “1984” de Orwell com alusões a “Stalker” de Tarkovsky. É o thriller sci-fi polonês “The Man With The Magic Box” ("Czlowiec z magicznym pudelkiem", 2017) - na Varsóvia de 2030 um homem encontra em seu velho apartamento um antigo rádio de 1950 que misteriosamente transmite músicas do passado com ondas Theta que produzem nele flashs de memória de uma outra vida. Mas um governo nacionalista totalitário monitora qualquer tentativa de fuga por meio de viagens no tempo através da mente. Diferente da maioria das abordagens do cinema sobre a viagem no tempo (como possibilidade de mudança como “segunda chance”), “The Man With The Magic Box” faz o contrário: a viagem no tempo como busca da permanência, duração – a busca da própria identidade.

Dentro da iconografia dos filmes gnósticos, escadas em espiral fazem parte de uma importante simbologia, principalmente se o filme abordar a temática da viagem no tempo. 
espiral partilha de uma complexa simbologia do eixo e da verticalidade. Enquanto forma ela enquadra-se perfeitamente no tema da identidade. Por ser uma forma logarítmica, isto é, por crescer de modo terminal sem modificar a forma total constitui-se no ícone da temporalidade, da permanência do ser através das mudanças. Ao mesmo tempo, o simbolismo da espiral associa-se com o do labirinto, de uma viagem da alma após a morte.
A espiral simboliza, igualmente, a viagem da alma, após a morte, ao longo dos caminhos desconhecidos, mas que conduzem, através dos desvios ordenados, à morada central do ser eterno.
Uma escadaria em espiral num velho edifício residencial é o simbolismo chave do thriller sci-fi polonês The Man With Magic Box (Czlowiec z magicznym pudelkiem, 2017) – num futuro não muito distante em uma Varsóvia distópica governada por Estado nacionalista totalitário, com a ajuda de uma espécie de sociedade secreta, Adam escapa da parte pobre para morar na Cidade Nova. Obtém uma identidade nova, um emprego de faxineiro em uma grande corporação e um apartamento em um prédio antigo com uma imensa escadaria central na forma de espiral.
“O melhor amanhã foi o de ontem” é uma pichação que vemos in passant durante o filme, mas que sintetiza o espírito da produção polonesa: é um filme sobre viagem no tempo, mas não esconde a sua nostalgia pós-moderna: além de ser uma colcha de retalhos de referências, alusões e homenagens (como a cena que emula o final de O Clube Luta e citações aqui e ali de Brazil de Terry Gilliam, Blade Runner de Ridley Scott e as paisagens devastadas de Stalker de Andrei Tarkovsky), esteticamente é um mix de futurismo, vintage e atmosfera retrô. O “clássico” pastiche da nostalgia pós-moderna.
O que num filme sobre viagem no tempo é quase uma metalinguagem. Mas o simbolismo central da identidade, permanência e transformação representado pela recorrente escadaria em espiral confere uma abordagem bem distinta da atual safra da viagem no tempo no cinema: voltar ao passado não é uma maneira de adquirir uma “segunda chance” ou corrigir erros do passado para corrigir o presente. 


Ao contrário: os protagonistas viajam no tempo para lutarem por suas lembranças, a própria identidade e a memória. Lutam através do tempo para permanecerem os mesmos.

O Filme

A narrativa abre com uma sequência ao melhor estilo de filmes de Terry Gilliam como Brazil ou Os Doze Macacos, apenas sem a característica lente em grande angular nervosa do diretor inglês: Goria (Olga Boladz) está sentada diante de autoridades policiais de algum sistema totalitário. Ela foi condenada a ter a memória da vida atual deletada, para ganhar um novo trabalho e identidade.
Corta para Adam (Piotr Polak), atravessando um rio em um pequeno barco conduzido por um guia. Estamos em Varsóvia de 2030 e Adam está sendo levado para iniciar uma vida na Cidade Nova, com uma outra identidade, residência e trabalho. Ela será apenas um faxineiro em uma grande corporação, morando em um edifício antigo sem elevadores: o único acesso é através de uma escadaria em espiral.
No trabalho sente uma imediata atração por Goria, agora trabalhando como chefa do departamento de RH da empresa. Goria é independente, vistosa, sempre expansiva e cínica. Quer apenas sexo casual com alguém com tal baixo status na empresa.
Em seu velho apartamento, Adam encontra um aparelho de rádio da década de 1950 que misteriosamente transmite uma bela música do passado. Mas o que ele não sabe é que aquela “caixa mágica” transmite ondas Theta que fazem Adam de início começar a ter estranhas visões de outra vida – O ano de 1952, na Polônia sob o punho de ferro do stalinismo e fazendo parte de um grupo de técnicos e engenheiros da emissora de TV estatal. Secretamente, fazem experiências com ondas eletromagnéticas e hertzianas da TV e rádio.


Objetivo: atravessar a cortina de ferro e fugir do totalitarismo stalinista. Senão fisicamente, pelo menos através de uma viagem mental pelo tempo, induzido pelas ondas de rádio e TV. Mas há um problema: o governo está monitorando aquele grupo, tanto no passado quanto no futuro, em 2030.
Varsóvia do futuro é retro-equipado como em Blade Runner, num ambiente em que passado e futuro estão fundidos em conjunto reluzente de edifícios corporativos justapostos ao apartamento sujo e antigo de Adam, com seus estranhos vizinhos que parecem que foram abandonados pelo tempo. Mesmo com o visível baixo orçamento, vemos alguns gadgetstecnológicos com efeitos digitais - por exemplo, óculos de realidade aumentada, compra da mobília a partir de móveis holográficos e óculos de realidade virtual que levam o usuário a um divertido passeio por um “País das Maravilhas” de Alice estilizado).
Mas na maior parte do tempo as cenas são escuras e claustrofóbicas com poucas cenas exteriores. Além da narrativa estar contida dentro de uma interessante estrutura de flashback: as cenas de 1952 e 2030 estão ocorrendo simultaneamente e seus desdobramentos influenciando-as mutuamente.


Física quântica e viagens no tempo no cinema prioritariamente são abordados pelo viés da “segunda chance”: realidades alternativas ou voltar o passado como oportunidades únicas para corrigirmos erros e criar presentes alternativos. De Volta Para o FuturoPeg Sue: O Passado a Espera ou os recentes Perdido em Dois Mundos  (2007) ou Coherence(2013) são exemplos dessa abordagem do paradigma da mudança. Porque, naturalmente, achamos que o devir temporal trata-se disso em essência.
Mas The Man With The Magic Box é um dos raros filmes que subvertem esse paradigma: não se trata mais de buscar mudanças ou alternativas, mas encontrar a duração no devir. Aquilo que não muda: memórias e identidade.
Dessa vez um governo totalitário no futuro (que parece ter retomado na Polônia o stalinismo do pós-guerra) quer apagar memórias, embaralhar identidades e condenar cidadãos ao esquecimento. Nesse mundo, o mais revolucionário é procurar aquilo que permanece no tempo: a identidade.
Por isso o simbolismo da espiral e da escadaria, recorrentes nas sequências mais importantes do filme.



Ficha Técnica 


Título: The Man With The Magic Box (Czlowiek z magicznym pudelkiem)
DiretorBodo Kox
Roteiro:  Bodo Kox, Paulina Krajnik 
Elenco:  Olga Boladz, Piotr Polak, Sebastian Stankiewicz
Produção: Alter Ego Pictures, Harine Films 
Distribuição: Artsploitation Films
Ano: 2017
País: Polônia

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